«Silêncio, Hospital»
Conto de Chico Anysio
473- «SILÊNCIO, HOSPITAL»
Nos primeiros tempos de casamento ele aparentava uma saúde
de ferro mas, de uns anos pra cá, mostrava-se tão frágil, tão susceptível às
doenças, que Dona Belinha, sua esposa, intranquilizava-se cada vez mais.
— Qualquer coisinha o Pirilo hospitaliza-se — choramingava
às amigas. — Tão frágil, tão doentinho…
E assim era. Por um simples sintoma de gripe ou resfriado, o
Pirilo pegava um pijama, escova de dentes, pente e chinelos, metia-os numa
maleta branca e hospitalizava-se.
— O que é que você tem, Pirilo? — perguntava a esposa
preocupada, vendo o marido fazer a mala para mais uma ida à casa de saúde.
— Nada, minha velha.
— E se não tem nada, por que você vai para o hospital,
Pirilo? — insistia Dona Belinha, mais preocupada do que nunca.
— Com saúde não se facilita. Não tenho nada agora, mas estou
esperando uma gripe de uma hora para outra.
E se internava por quatro, cinco dias. Proibia as visitas e
não aceitava flores ou maçãs. “Se eu morrer, não quero ninguém no velório. Na
doença e na morte, longe os parentes”, era a teoria que defendia e a que a
família obedecia.
— Chama-se isso de hipocondria — explicou um médico a quem
Dona Belinha secretamente visitou:
— Hipocondria?
— É uma ansiedade habitual relativa à própria saúde —
decifrava o médico. — É muito comum, um caso assim. Há pessoas que não vivem
sem tomar remédio. Seu marido é um caso desses. Só que em estado mais grave,
porque ele chega a ir para o hospital. Mas não se preocupe. Os hipocondríacos
são os que vivem mais.
— Isso pega, doutor? — inquiriu Dona Belinha, quase
desejando que sim, para poder acompanhar o marido, de quem sentia muita falta,
durante os dias de nosocómio.
— Pegar, não digo, mas quem convive com um hipocondríaco,
sendo de espírito fraco, pode-se contagiar por esta mania.
E ela muito rezava e pedia que lhe fosse dado este contágio.
— Belinha, traz a mala.
— Pra onde você vai, Pirilo?
— Vou-me hospitalizar.
— O que é que você está sentindo?
— Hoje, fazendo as unhas, tirei sangue da cutícula. Isso
pode infeccionar, dar tétano, gangrenar, sei lá. Com saúde não se brinca.
E, de mala branca na mão e infalível chapéu preto à cabeça,
lá ia o Pirilo para o Hospital dos Estrangeiros, onde tinha conta corrente
(pagava por semestre) e apartamento quase fixo.
— O apartamento de sempre, Sr. Pirilo? perguntava a
enfermeira, como se aquilo fosse um hotel.
— Não. Desta vez quero um no terceiro andar, com vista para
a encosta.
E por uma semana, muitas vezes, curtia o seu hospitalzinho,
de camisola e tudo, com exames de pressão arterial, termômetros sob a axila,
colheita de urina, sangue, fezes, escarro, etc. Uma semana depois, sentindo-se
recuperado, voltava ao seio da família, dizendo-se outro homem.
Ao mesmo tempo em que os filhos cresciam, desenvolvia-se a hipocondria
do Pirilo, que se internou pelos motivos mais burlescos, de tão banais:
furúnculo, cisco no olho, mau jeito no braço, aerofagia, topada.
A conselho médico a mulher nem tocava mais no assunto,
tentando meter na cabeça do marido que ele não sofria de coisa alguma (“Isso
pode piorar, porque ele fica irritado e…”). Ao ver Pirilo chegar e entrar em
casa sem tirar o chapéu preto, a mulher já sabia que era caso de hospital. E,
por conta própria (disso o médico não teve culpa), já até colaborava com a hipocondria
do marido.
— Não está passando bem, Pirilo?
— Ainda bem que você notou. Hoje arrotei duas vezes, depois
de tomar uma Coca-Cola. Faz a mala.
E o pijama, com pente, chinelo e escova de dentes, era
enfiado na mala branca que Pirilo conduzia ao Hospital dos Estrangeiros, onde
era mais conhecido do que muitos dos médicos que lá operavam ou davam plantão.
— Terceiro andar, para a encosta?
— Segundo andar, de frente.
— 214 — informava a enfermeira, dando-lhe a chave.
Tantas foram as vezes que Pirilo se internou que,
ultimamente, já ia sozinho da portaria para o quarto. Ir uma enfermeira com ele
para quê, se ele conhecia os corredores e apartamentos mais do que a maioria
delas? De hospital, ele dava aula. E era um custo para aceitar a alta do
médico.
— Pode ir embora hoje, Sr. Pirilo.
— De jeito nenhum. Antes de quinta-feira ninguém me tira
daqui.
— Mas o senhor já está bom. Os gases…
— Os gases acabaram, mas… e essa unhazinha?
— Que tem a unha? — perguntava o médico, segurando-lhe a
falange do pé que Pirilo lhe exibia.
— Repare na unha, veja bem.
— Está bem.
— Ora, doutor, enganar ao Pirilinho? A unha está encrava,
não encrava. Antes de quinta-feira eu não saio, a não ser que a unha se
resolva.
De tanto Pirilo se ausentar para os hospitais, apareceu um
arquitecto desquitado com óptimos planos e projectos para Dona Belinha com os
quais ela concordou, de tanta distância que já sentia do marido hipocondríaco.
Saiu ganhando, pois amava agora um homem formado, enquanto
Pirilo continuava amante de uma ajudante de enfermeira do Hospital dos
Estrangeiros, que um dia dava plantão no terceiro andar, de frente para a
encosta, no outro dia no segundo andar, de frente para a frente…
Os hipocondríacos merecem cuidados!
Chico Anysio
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