quinta-feira, 23 de abril de 2015

OUTROS CONTOS

«O Casamento Enganoso», por Miguel de Cervantes.

«O Casamento Enganoso»
Conto de Miguel de Cervantes

484- «O CASAMENTO ENGANOSO»

 Saía do Hospital da Ressurreição, em Valladolid, além da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como bordão e pela fraqueza de suas pernas e palidez do rosto, denotava claramente – embora a temperatura não fosse tão cálida – que ele deveria ter transpirado em vinte dias toda a disposição que, com toda a certeza, adquirira numa hora. Andava aos ziguezagues, tropeçando a cada momento, como um convalescente e, ao transpor a porta da cidade, percebeu aproximar-se da sua direção um amigo a quem não via há mais de seis meses. Este, benzendo-se, como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

— Que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? é possível que esteja por aqui? Imaginava-o em Flandres, de lança em riste e não por esses lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?

Campuzano respondeu:

— Se estou ou não nesta terra, Senhor Licenciado Peralta, a minha simples presença o diz. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder senão que estou saindo daquele hospital, onde sofri quatorze suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para minha, quando jamais o devia ter feito.

— Quer Vossa Mercê dizer que se casou? — perguntou Peralta.

— Sim — respondeu Campuzano.

— Teria sido por amor? — disse Peralta, acrescentando: — Tais casamentos trazem sempre o arrependimento.

— Não saberei se foi por amor — respondeu o Alferes — embora possa garantir ter sido por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas as da alma não encontro remédio sequer para aliviá-las. Mas Vossa Mercê me perdoará; não posso manter longas conversas neste lugar. Qualquer outro dia, mais comodamente, contar-lhe-ei minhas aventuras; são as mais novas e originais que Vossa Mercê terá ouvido em todos os seus longos dias.

— Não será assim — disse o Licenciado — pois desejo que venha à minha pousada, para ali desabafarmos nossas mágoas. Além disso, tenho lá uma comida própria para convalescentes. Embora tenha sido preparada para dois, meu criado se contentará com um pastel. E se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto servirão para nos abrir o apetite. A boa vontade com que lhe ofereço, não somente agora, mas todas as vezes que Vossa Mercê quiser, está acima de qualquer dúvida.

Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando o convite e os oferecimentos. Foram ambos a São Lorente, onde ouviram missa, e depois Peralta levou o amigo à sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo que repetisse. Mal Campuzano concluíra, pediu-lhe Peralta que narrasse os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado, pondo-se logo a falar.

— Vossa Mercê bem se recorda, Sr Licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.

— Bem me recordo — respondeu Peralta.

— Pois um dia — prosseguiu — quando mal acabávamos a refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de belo porte, acompanhadas por dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar com o Capitão, encostados ambos a um canto da janela. A outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora cortêsmente lhe suplicasse que se descobrisse, não foi possível conseguir tal coisa. E, para completar a história – fosse de caso pensado ou por simples acaso – ela exibiu suas mãos muito brancas, cobertas por excelentes jóias. Por meu lado, estava importantíssimo com aquela grande corrente que Vossa Mercê terá, talvez, conhecido, o chapéu com plumas e cordões, o traje de cores e a arrogância de um militar, tão imponente aos olhos da minha vaidade que me julgava pairando no ar. Com tudo isto, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:

— Não sejais importuno. Tenho minha casa; fazei com que um pajem me siga, pois embora seja mais honrada do que faz crer esta resposta, quero ver se vossa discrição corresponde à vossa galhardia. Folgarei, então, que me vejais.

Beijei-lhe as mãos pela grande mercê que me fazia, em paga da qual lhe prometi punhados de ouro. O capitão concluíra sua conversa. Elas se foram, seguidas pelo meu criado. O capitão disse-me que a dama lhe pedira para levar algumas cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo, mas ele bem sabia não serem senão para o amante. Eu ficara abrasado pelas mãos de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. E assim, no dia seguinte, guiado pelo meu criado,  fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era bela ao extremo, mas era-o de maneira que nos podia render pelo trato, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante, que ia até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios. Blasonei, garganteei, prometi, enfim, dei todas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me benquisto. Mas ela parecia ter sido feita para ouvir semelhantes ou maiores oferecimentos e razões. Era toda ouvidos e nenhuma surpresa. Para concluir: nossos colóquios duraram quatro floridos dias. Continuei a visitá-la sem que chegasse, porém, a colher o fruto ambicionado.

Nos momentos em que a visitei, encontrei a casa livre; jamais percebi traços de parentes reais ou fingidos. Servia-lhe certa moça, mais astuta que simplória. Tratando meus amores como soldado em véspera de partida, apertei finalmente a senhora Dona Estefânia de Caicedo – é este o nome de quem assim me deixou – que respondeu: "Tola seria, Senhor Alferes Campuzano, se quisesse vender-me a Vossa Mercê por santa. Pecadora tenho sido e ainda sou, embora não tanto que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem de meus parentes herdei coisa alguma, mas, apesar disso, o que tenho aqui em casa vale – bem contados – dois mil e quinhentos escudos. E isso em coisas que vendidas se converterão em bom dinheiro. Com esta fortuna procuro marido a quem entregar-me e a quem obedecer. A quem, juntamente com o arranjo da minha vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir. Príncipe algum terá cozinheiro mais cuidadoso ou quem melhor saiba dar o ponto nos guisados. Tanto sei dirigir uma casa como orientar uma cozinha ou receber visitas. Na verdade sei mandar e fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e muito economizo. O dinheiro não vale menos e sim mais, quando gasto sob minha orientação. A roupa branca que possuo, que é muita e da melhor, não foi adquirida em lojas ou vendedores ambulantes; esses dedos e os de minhas criadas fizeram-na, e se fosse possível, tê-la tecido em casa, assim teríamos feito. Digo estas coisas sem modéstia, pois não há mal quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois vá falar por aí... Se Vossa Mercê souber apreciar a prenda que neste momento se lhe oferece, aqui estou à vossa disposição, sujeita a tudo quanto Vossa Mercê ordenar, e isso sem me pôr em leilão, que é a mesma coisa que andar em língua de casamenteiros. Não há nada para consertar o todo como as suas próprias partes.

Eu, que estava com o juízo, não na cabeça, mas nos calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e oferecendo-se-me tão à mão, quantidade tal de bens – já os contemplava convertidos em dinheiro! – sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava lugar a ventura (que me entibiava o raciocínio), respondi-lhe que me sentia muito alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, companheira tal, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus haveres, que não eram tão poucos que não valessem, junto com aquela corrente que trazia no peito e outra joiazinhas que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de dois mil ducados, os quais, junto aos dois mil e quinhentos dela, formavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e ainda possuía alguns bens. Tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o nosso casamento e esclarecemos nossa vida de solteiros. E nos próximos três dias de festas que vieram logo pela Páscoa, fizeram-se os proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como foram as que até então ele dirigira a minha nova esposa. Falava, no entanto, com intenção tão falsa e hipócrita que prefiro ficar calado. Embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.

O criado conduziu meu baú da pousada para a casa de minha mulher. Encerrei nele, diante dela, minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe, também as roupas e chapéus, entregando-lhe para as despesas da casa os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei, calmamente, como genro pobre em casa de sogro rico, a lua-de-mel. Pisei custosos tapetes, amassei colchas de Holanda, alumiei-me com candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo as doze e sesteando as duas. Dona Estefânia e a criada excediam-se em agrados e cuidados. Meu criado, que até ali fora lerdo e preguiçoso, transformara-se num azougue. Os momentos que Dona Estefânia não passava ao meu lado, era fácil encontrá-la na cozinha, toda solícita em ordenar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo Aranjuez de flores, banhados como eram em água de flor de laranjeira.

Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má intenção com que começara aquele negócio. Ao fim deles, certa manhã – quando ainda no leito com Dona Estefânia – chamaram com grandes batidas na porta. Ouço a criada dizer, assomando a janela:

— Oh! Seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que avisara em sua carta...

— Quem é que chegou, mulher? — perguntei.
— Quem? — respondeu ela — Minha Senhora Dona Clementa Bueso, acompanhada por Dom Lope Melendez de Almendárez, dois criados e Hortigosa, a ama.

— Corra, mulher, e abra-lhes a porta, que já vou — disse Dona Estefânia à criada, que parara sem saber que atitude tomar. — E vós, Senhor, pelo amor que me tendes, não os assusteis nem respondais, em meu nome, a coisa alguma que contra mim ouvirdes.

— Mas, quem vos ofenderá, ainda mais em minha presença? Dizei. Que gente é essa que tanto alarma vos causa?

— Não tenho tempo para responder-vos — disse Dona Estefânia: — Sabei somente que tudo o que aqui se passará é fingido e visa a certo desígnio o qual sabê-lo-eis depois.

Quis replicar, mas a Senhora Dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto, arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma qualidade, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas, e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava oculto por um véu leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Melendez de Almendárez, não menos bizarro nem menos ricamente ataviado.

Dona Hortigosa foi a primeira a falar, exclamando:

— Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da Senhora Clementa, e alem disso, com um homem? 

Milagres vejo hoje nesta casa! Não há dúvida de que Dona Estefânia tomou o pé pela mão abusando da amizade de minha senhora.

— Tendes razão, Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que jamais me aborreça novamente por arranjar amigas que não sabem ser senão quando o desejam!

A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:

— Não se aborreça, Dona Clementa, e creia que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa. Quando souber da verdade, sei que ficarei desculpada e Vossa Mercê sem nenhum motivo de queixa.

Nessas alturas eu já vestira as calças e a camisa e Dona Estefânia, tomando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se. Que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe pertencia, e disso tudo pensava fazer seu dote. Uma vez realizado o casamento pouco se lhe dava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope.

— E logo me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal, nem a nenhuma outra mulher que procure marido honrado, embora por meio de um embuste.

Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que tencionava fazer, e que primeiro pensasse bem, porque poderia, depois, sem ter necessidade, precisar da justiça para readquirir seus haveres. Porém ela respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas obrigavam-na a servir Dona Clementa — coisas de pouca importância, é verdade — que embora de má vontade e com remorso na consciência, concordei com o desejo de Dona Estefânia. Assegurou-me ela que a farsa duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e logo, despedindo-se de Dona Clementa e do Senhor Lope, disse a meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem despedir-me de ninguém.

Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, esteve lá dentro um bom tempinho, falando com ela. Depois surgiu uma criada, mandando que entrássemos — eu e o criado. Levou-nos a um pequeno aposento, no qual havia duas camas tão juntas uma da outra que pareciam uma só. Não havia espaço para separá-las; as cobertas pareciam beijar-se. Ali estivemos seis dias e em todos eles não passou uma hora que não tivéssemos alguma discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus pertences, embora fosse para a própria mãe. Durante as discussões, ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fora ver em que pé estavam as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto com ela e o que fizera que tanto a ofendia, sobretudo insistindo em dizer que fora loucura notória e não amizade perfeita. Contei-lhe toda história, falei que me casara com Dona Estefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe disse da grande tolice que fizera em deixar a casa e pertences à Dona Clementa, embora fosse com a boa intenção de conseguir um marido da importância de Dom Lope, começou a benzer-se e a persignar-se com tanta pressa e com tantos "ai! Jesus,  Jesus!" que não pude deixar de ficar grandemente perturbado. Ela então me disse:

— Senhor Alferes: não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o que também nela pesaria se permanecesse calada. Porém, por Deus e pelo Destino, seja o que for: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que Dona Clementa é a verdadeira dona da casa e dos haveres. Mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possui casa nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que traz no corpo. E, para tornar viável esse logro, foi que Dona Clementa andou a visitar parentes seus em Placêncio e dali esteve fazendo uma novena a Nossa Senhora de Guadalupe. Neste espaço de tempo deixou Dona Estefânia para cuidar de sua casa, pois são realmente grandes amigas. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o Senhor Alferes.

Aqui ela deu fim à sua conversa e eu dei princípio ao meu desespero, e sem dúvida o teria prolongado se o meu anjo da guarda não acudisse, dizendo ao meu coração não esquecer que era cristão e que o maior pecado dos homens é o desespero, por ser pecado dos demônios. Esta consideração, ou boa inspiração, conformou-me um pouco, mas não tanto que deixasse de apanhar a capa e saísse à procura de Dona Estefânia, com intenção de dar-lhe exemplar castigo. Porém a sorte, que não saberei dizer se melhorava ou piorava as coisas, ordenou que em nenhum lugar onde pensava encontrá-la, ela estivesse. Fui a São Lorente, encomendando-me à Nossa Senhora; sentei-me, depois, num banco e com o desgosto fui tomado por um sono tão pesado que não despertaria tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de Dona Clementa, e encontrei-a tão à vontade, como senhora que era de seus bens; não ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, a qual me disse haver contado à Dona Estefânia como eu já sabia toda sua hipocrisia e falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara fizera eu com a notícia. Havia-lhe respondido que uma cara muito má e que, segundo o seu modo de ver, eu saíra a procurá-la com ruim intenção e pior determinação. Disse, finalmente, que Dona Estefânia levara tudo quanto havia no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.

Aqui foi a coisa! Aqui teve-me Deus, de novo, em suas mãos. Fui ver o baú, encontrando-o aberto, como um túmulo à espera do cadáver. Com boas razões seria o meu, se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça...

— Bem esperta foi — disse neste momento, o Licenciado Peralta — por haver Dona Estefânia, levado tanta corrente e tantos cintos, pois, como se diz, todos os enterros... etc., etc.

— Nenhuma pena me deu essa falta — respondeu o Alferes — pois também poderei dizer: Pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha caolha e, por Deus, coxo sou eu de um lado...

— Não sei a que propósito pode Vossa Mercê dizer isso — respondeu Peralta.

— O propósito é — disse o Alferes — de que aquele embrulho e aparato de correntes, cintos e brincos, poderia valer, quando muito, dez ou doze escudos.

— Isso não é possível — replicou o Licenciado — porque a corrente que o senhor trazia no pescoço parecia pesar mais de duzentos ducados.

— Assim seria — respondeu o Alferes — se a verdade fosse o que a aparência mostrava; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as correntes, cintos, jóias, brincos, não passavam de imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou o fogo poderiam descobrir sua qualidade.

— Dessa maneira — disse o Licenciado — entre Vossa Mercê e a Senhora Dona Estefânia, houve empate no jogo?

— E tão empate — respondeu o Alferes — que poderíamos voltar a baralhar as cartas. Mas o estrago está, Sr. Licenciado, em que ela poderá desfazer-se de minhas correntes, e eu não do laço em que caí. Sim, porque, embora muito me pese, ela é minha mulher.

— Daí graças Deus, Sr. Campuzano — disse Peralta — que ela se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.

— Assim é — respondeu o Alferes — porém, com tudo isto, embora não a procure, tenho-a sempre em pensamento, e onde quer que esteja está presente a desonra.

— Não sei o que responder — disse Peralta — senão trazendo-lhe à memória dois versos de Petrarca, que dizem: Chi chi prende diletto di far frode, Non sidè lamentar s’altri l’inganna. O que significa em nossa língua: "aquele que tem o costume e o gosto de enganar a outros, não deve queixar-se, quando é enganado."

— Não me queixo — respondeu o Alferes — e sim me lastimo, pois o culpado, nem por reconhecer a culpa, deixa de sentir a pena do castigo. Bem sei que tentei enganar e fui enganado, feriram-me com as minhas próprias armas, mas não posso deixar que tais sentimentos deixem de subir à tona.

Finalmente, o que mais importa no meu romance – que tal nome se pode dar à narrativa das minhas aventuras – é ter sabido que Dona Estefânia se fora com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento, e que tempos atrás fora seu amigo para todas as coisas. Não quis procurá-la, para não encontrar o mal que me faltava. Mudei pousada e cabelo, em poucos dias começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas e cílios, e pouco a pouco foram-se eles. Tornei-me calvo antes do tempo: deram-me uma doença chamada calvície. Achei-me verdadeiramente limpo: não possuía nem cabelos para pentear, nem dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao mesmo passo da minha miséria, e como a pobreza atropela a honra e a uns leva a forca, a outros ao hospital e a outros ainda os faz bater nas portas dos seus inimigos com pedidos e súplicas, o que é uma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer infeliz, e por não ter podido cuidar das roupas que me protegeriam e assegurariam a saúde ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, para ele me dirigi e nele tomei quarenta suadouros. Dizem que ficarei bom, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto, Deus remediará.

Miguel de Cervantes

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