«Corpos Incompletos»
Conto de Mário de Carvalho
466- «CORPOS INCOMPLETOS»
Restaurada de fresco, a estátua do marechal Saldanha, na
praça do mesmo nome, começou logo a sentir melhorias de vista. Distinguia
pormenores muito afastados e considerou que tinha valido a pena aquela maçada
de tapumes, andaimes, lixívias, abrasivos, químicos fedorentos. Um arrumador de
automóveis recolhia uma moeda ao pé do centro comercial e, cá de longe, a
estátua lia perfeitamente: “República Portuguesa, Cem Escudos”.
Nesse estado de deslumbramento, interessou-se por um jovem
que dentro do autocarro lia um livro. Eram contos do catalão Pere Calders,
sobre personagens que habitavam as próprias estátuas e à noite saiam para
arejar. O engarrafamento foi tão demorado que deu para a réplica do marechal
ler o texto completo, ler e indignar-se. Era como se as estátuas fossem
invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma. E
deliberou manifestar-se.
Como toda a gente sabe, as estátuas de Lisboa comunicam
facilmente umas com as outras. Um não sei que fluido, transportado em bicos de
pássaros, em rumorejo de folhas, em volutas de metano, em brisas atlânticas,
mantém entre elas uma conversação satisfatória. O Adamastor, ali a Santa
Catarina, não tardou, e resmungava: “lá está o Saldanha com as dele” e o leão
do Marquês emitiu um subtil rugido. O cavalo de D. José pisou mais uma víbora e
o monarca, frívolo como era, sorriu-lhe a ideia do movimento. Mas todas as
estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito
hirto, lá nas alturas do castelo. D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes
de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao
fim dumas horas, de que era um rei enérgico. E proferiu: “Sus, sus!” Era o que
todas as estátuas queriam ouvir, para abandonar os pedestais. A noite já ia
adiantada.
“Meu chefe, meu chefe!”. O jovem soldado da GNR, Malaquias
de Sousa, entrava esbaforido no gabinete do superior, na casa da guarda da
Assembleia da República. O sargento, e outros, não correram, voaram para ver.
Todo aquele largo era um mar de estátuas paradas fitando o edifício, algumas em
pose ameaçadora. A espada de Saldanha muito nervosa parecia pronta a trucidar.
A Maria da Fonte sorria, sinistra, de pistolas ao léu. E as figuras da guerra
peninsular arrastavam um canhão basto suspeito. O pior é que os dois leões das
escadarias andavam por ali à solta e deitavam olhares rancorosos para o leão do
Marquês de Pombal. “Passe aí o telemóvel”, ordenou o sargento em voz trémula.
Era uma situação que exigia consulta aos superiores.
Ainda Eça de Queirós, na cauda da manifestação, tagarelava
com Camilo Castelo Branco, na presença da Nudez Forte da Verdade, quando um
frémito percorreu o arvoredo da Estefânia. Não chegou a turbilhão, mas foi
suficientemente sensível para que um sujeito que comia um bife na Portugália
exclamasse: “Ena, pá!” O busto de Cesário Verde convocava o de Guerra Junqueiro
e desafiava-o para um desfile. E de busto em busto se transmitiu que não era
justo que as estátuas em corpo inteiro se manifestassem e que os bustos se
ficassem. Afinal, se nos bustos havia um corpo incompleto, a verdade é que
exibiam “mais concentração do espírito”. A frase foi do busto de um poeta, mas
não me parece que tenha sido Junqueira ou Verde. E, alinhados na Alameda de D.
Afonso Henriques, os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos
saltinhos, muito alegretes. Aquilo ressoava alto, e houve moradores que
telefonaram para a polícia a protestar. Alguns agentes ainda estão hoje a
consultar legislação e regulamentos camarários. Mas é duvidoso que encontrem
qualquer disposição legal que proíba um busto ou uma estátua de circular pela
cidade por seu próprio pé, base ou coto.
A notícia chegou a altas instâncias e ao governo. O ministro
competente, farto de chamadas, ia dizendo: ”deixem lá, isto passa!”! E tinha
razão. As estátuas cansaram-se de estar ali, a olhar. Nem sequer chegou a haver
bulha de leões porque o Marquês deitou-lhes cá um olhar que eles sentaram-se
logo, muito domésticos.
Quando os bustos, rua de S. Bento afora, chegaram à
Assembleia da República, numa revoada de clipocloques, as estátuas decidiram
retirar-se, com dignidade. Não queriam aquela companhia, nada de misturas. Os
bustos, desacompanhados, deram umas voltas, provocaram os leões com
assobiadelas e voltaram para os seus pedestais. A manhã foi encontrar estátuas
e bustos voltados para o lado oposto ao do costume. Não se tratou de combinação
prévia. Foi uma convergência objectiva.
Houve em Lisboa quem se interessasse pelo assunto. A própria
comunicação social chegou a ter informação e preparou-se para noticiar:
“Insegurança: vandalismo generalizado desloca monumentos”. No entanto, nessa
noite, um jogador de bola agrediu a própria mãe, ceguinha, e mobilizou as
parangonas.
Quando, um mês depois, estátuas e bustos se preparavam para
nova manifestação, foram surpreendidos por uma directiva comunitária proposta
por Portugal e aceite por unanimidade. Todos os bustos e estátuas da Europa
passaram a ser obrigatoriamente amarrados com cabos de aço.
A alguns formadores de opinião a medida pareceu pateta e,
sobre isso, dispendiosa. Mas talvez tivesse valido a pena, pelos desassossegos
que se pouparam.
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