«O Nosso País é Bué»
Conto de Pepetela
485- «O NOSSO PAÍS É BUÉ»
Quando Miúdo Lito irrompeu pela casa, feito bola de futebol
a entrar na baliza do Primeiro d'Agosto, como ele gostava de ver no estádio da
Cidadela, a mãe assustou, que passa, que passa? Eram tempos difíceis, qualquer
notícia podia trazer uma tragédia, qualquer corrida podia significar perigo,
qualquer grito significar agonia.
— Esse país é bué, mãe, esse país é bué!
Dona Fefa bem conhecia os entusiasmos repentinos do filho
pelo país, aprendidos nos livros da escola, embora contrariados constantemente
na rua. Desta vez ele vinha daí mesmo, da rua, se espantava ainda mais ela por
tanto patriotismo. Parou de mexer a colher de pau na panela do feijão com óleo
de palma, limpou as mãos ao avental, disse com voz cansada, explica então como
esse país é bué, que mentira mais te pregaram? Que não era mentira, não, ele
tinha visto mesmo, mãe, petróleo a sair no chão, aí no quintal de Dona Isaura.
— Deixa de brincadeiras, não vês que estou a trabalhar?
Miúdo Lito se encostou na parede mal rebocada da cozinha,
onde se notavam, entre os bocados de barro seco, os troncos tortos de
mandioqueira que seguravam a construção precária. Encolheu os ombros. Falou
mais baixo, mas ainda entusiasmado:
—Vi o petróleo a sair assim do buraco que eles cavaram no
chão, mãe. Afinal tinham tapado aquele bocado com esteiras, nem nos deixavam
entrar lá no quintal. Era para esconder o buraco que andavam cavar. Mas hoje se
distraíram e eu entrei com o Pedro. Vi o buraco. Dona Isaura estava a receber o
balde em cima, o pai do Pedro estava lá dentro do buraco. Quando me viram
berraram bué com o Pedro, que ninguém que podia entrar no quintal, se ele não
sabia já... Depois me pediram muito não conta embora a ninguém.
— E já me estás a contar a mim, ralhou Dona Fefa, seu
fofoqueiro.
— Mas a senhora é minha mãe, posso contar. Até porque também
vamos cavar buraco no quintal. O Pedro me disse que depois vai vender em
garrafas na rua, como os outros estão fazer. Esse petróleo que serve para os
candeeiros que agora se anda a comprar no Roque Santeiro, afinal não vem da
Sonangol, está vir mesmo do chão.
Dona Fefa estava estranhar. Lito não era mentiroso e se
dizia que tinha visto é porque era verdade. De facto já ouvira falar, no
mercado Roque Santeiro vendiam petróleo para candeeiro mais barato que o
tabelado pelo governo. Mas então a amiga Isaura se metia em negócios desses e
nem lhe dizia nada? Sim, o kandengue fez bem em contar. Julgava ela que
conhecia os amigos... Quando cheirava a dinheiro no ar, logo entravam os
esconde-esconde, para não se perder negócio. Então Dona Isaura, quase vizinha,
que só escapou ser comadre porque a menina morreu à nascença, ia lhe convidar
para ser madrinha do segundo filho, essa mesma Dona Isaura que conhecia desde
que se instalaram no bairro na altura da Independência afinal agora esqueceu a
amizade e guardou segredo de que havia petróleo no quintal dela, hum, hum, não
se faz a uma amiga! De facto havia esse cheiro que aparecera de repente no
bairro, parecia vir de todos os sítios ao mesmo tempo. Julgava que vinha da
refinaria, às vezes eles faziam umas limpezas e deitavam os líquidos à toa, até
para o mar. Afinal vinha dos quintais vizinhos e era a prova do que dizia Lito.
Mas se no quintal de Dona Isaura há petróleo, não quer dizer que aqui também
tem, era Dona Fefa a querer duvidar ainda de uma sorte demasiada...
— Mas tem sim, mãe, tem em todos estes quintais da zona. O
pai do Pedro também soube pelos vizinhos e pelo cheiro que vinha do lado. Todos
andam a cavar, só que estão a esconder, têm medo do governo.
A prudência da mãe desconfiou de tanta fartura, se têm medo
do governo é porque estão a fazer coisa má, o que não era no entanto certo,
argumentava o miúdo ainda entusiasmado, só têm medo porque a polícia vem e
fecha os poços à toa, ou a polícia pede gasosa demais. Logo veio acima o
nacionalismo de Miúdo Lito que repetiu este país é bué, aqui nem é preciso
refinar. Isso estudei na escola, o petróleo tem de ser refinado ali na Petrangol,
só depois pode ser utilizado nos candeeiros ou nos carros ou nos aviões. Mas
aqui sai já directo do chão para o candeeiro, não sei se também dá prós carros.
E bué mesmo, ninguém que aguenta esta terra.
Miúdo Lito saiu disparado para a rua, com o mujimbo a encher
o peito. Dona Fefa ficou a pensar, então a vizinha Isaura vai mandar o Pedro
vender petróleo na rua? É capaz de dar bom dinheiro. E que jeito lhe dava,
também a ela. Viúva, obrigada a trabalhar de lavadeira para criar o filho, sem
mais família na cidade e sem saber onde anda a que deixou no mato, perdida
pelas guerras... uns garrafões de petróleo todos os dias podiam ajudar muito.
Mas como cavar um buraco no quintal? Ela sozinha? O miúdo podia ajudar, mas não
chegava. E para essas coisas não se pode contratar um roboteiro, aproveitam
logo nas exigências e acaba por ficar muito caro. Nem dá pedir a um vizinho,
não é mesmo coisa que se peça a um vizinho, por muita intimidade que haja. A
latrina fora cavada há anos pelo marido e levou muito tempo, pois não é fácil
cavar um buraco fundo. E Lito tinha dito que o pai do Pedro desaparecia no buraco
para encher o balde, imagine-se a altura do buraco. Abanou a cabeça. Era uma
tentação aproveitar a riqueza que jazia em baixo do quintal, lá isso era. E não
estava a roubar ninguém, o petróleo estava na terra, era de quem apanhasse. Ou
não?
Esperou que o feijão apurasse e foi falar à vizinha Isaura,
saber mesmo das coisas, o coração dela estava a doer e mais doía se não tirasse
a coisa a limpo. Avizinha que lhe desculpasse o atrevimento, mas o miúdo
contou, sabe como são os miúdos, não podem guardar segredo, e o assunto é tão
importante que merece mesmo o risco de criar incómodo entre amigos. A vizinha
Isaura compreendeu, ficou muito embaraçada no princípio, até estava mesmo para
contar à Dona Fefa, só que o meu marido disse, espera ainda mais um pouco para
ver se sai alguma coisa, muitas vezes as promessas não se cumprem, mas era
verdade mesmo, tinha saído petróleo, a amiga podia vir no quintal ver e
cheirar, cheira mesmo a petróleo, logo mais vamos vender na rua e Dona Fefa
também devia cavar um buraco, se tornar proprietária de um poço de petróleo,
ainda vamos ser uns nababos a andar de Mercedes e fumar charuto, vizinha. Uma
gargalhada de Isaura fugiu para as ralas nuvens no céu azul. Dona Fefa tinha
dúvidas, e se a polícia sabe? Esse de facto era o problema, os vizinhos que
tinham poços clandestinos andavam a discutir muito isso, disse Dona Isaura,
porque para uns garimpo de petróleo é proibido, os angolanos não podem ter
poços, só os estrangeiros, o que é evidentemente uma injustiça os donos da
terra serem afastados dessas riquezas, outros no entanto diziam não, agora já
há garimpo livre, não só de diamante mas de tudo, não há mais partido único,
nem garimpo único, é a democracia petrolífera. E o que está no subsolo não tem
dono. Ainda preciso de pensar bem, rematou Dona Fefa, sozinha como vou cavar,
mesmo com o Lito a ajudar? E voltou às suas enegrecidas panelas.
Não teve tempo de tomar uma decisão. Miúdo Lito e os outros
miúdos da zona passaram o mujimbo e não aguentaram o peso de o reterem, eram
tão patriotas que tiveram de o transmitir a vizinhos mais longe, para estes
também se congratularem com o país que tinham, de modo que a notícia chegou a
uma rádio, depois a outra, a cidade ficou a saber, o país e o mundo. Depois a
polícia também soube e veio no bairro proteger a empresa encarregada de tapar
os buracos à força, dizendo que afinal andava a morrer gente com explosões e
incêndios provocados por esse petróleo que não era petróleo bruto e não saía da
terra só assim, afinal antes tinha passado pela refinaria e depois se
infiltrado pelo chão vermelho por algum tubo gasto, formando um lençol
subterrâneo. Então não ouviram falar de Só Afonso, aquele fazedor de tijolos já
velho mas sempre rijo, que morreu numa explosão a acender o candeeiro? Era
desse líquido aí, mistura de gasolina com outro produto, um perigo para todos,
sobretudo as crianças. Os supostos donos dos poços ainda tentaram resistir aos
homens da empresa e aos polícias, até porque agora somos proprietários e não
podemos ser tratados como deslocados de guerra sem voz, têm de nos ouvir, a
nós, os micrempresários, agentes económicos. Mas as autoridades disseram, esse
produto tem dono, saiu da refinaria ou de tubos da refinaria ou de outro sítio
qualquer, além disso é perigoso, já morreu gente, portanto, senhores
micrempresários, se insistem, chamamos os ninjas, eles sabem dar cabo
rapidamente de qualquer resistência à autoridade. Foi o ponto final no garimpo
de petróleo, que de facto era gasolina adulterada pela muita ferrugem dos
canos. Mais tarde veio a explicação nos órgãos de comunicação social, a
refinaria era velha e há muito tempo não tinha manutenção a sério, daí as fugas
de líquido.
Miúdo Lito ficou desiludido. Não por ter desaproveitado a
riqueza que dormia no seu quintal. Mas porque afinal o país não era assim tão
bué como imaginara.
Pepetela
Pepetela
1 comentário:
E a refinaria era de facto coisa velha. Gostei da estória. E o Miúdo Lito!? Que personagem interessante!
O Pepetela não ia inventar uma coisa destas. Alguma coisa certamente se passou.
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