«Amor Verdadeiro»
Conto de Isaac Asimov
468- «AMOR VERDADEIRO»
Meu nome é Joe. É assim que meu colega, Milton Davidson, me
chama. Ele é um programador e eu sou um programa de computador. Faço parte do
complexo Multivac e estou conectado com todas as suas outras partes espalhadas
pelo mundo inteiro. Eu sei tudo. Quase tudo.
Eu sou o programa particular de Milton. O seu Joe. Ele
entende mais sobre programação do que qualquer outra pessoa no mundo, e eu sou
o seu modelo experimental. Ele me fez falar melhor do que qualquer outro
computador.
– É só uma questão de emparelhar sons com símbolos, Joe –
ele me disse. – E esse o modo como funciona no cérebro humano, embora ainda não
saibamos que símbolos existem no cérebro. Mas eu conheço os seus símbolos e
posso fazê-los corresponder a palavras, um por um.
– Ainda vou encontrá-la, Joe. Encontrarei a melhor de todas.
Vou ter um verdadeiro amor e você vai me ajudar. Estou cansado de aperfeiçoá-lo
para resolver os problemas do mundo. Resolva o meu problema. Encontre-me
um amor verdadeiro.
– O que é um amor verdadeiro? – disse eu.
– Não importa. Isso é abstrato. Apenas me encontre a garota
ideal. Você está conectado com o complexo Multivac, por conseguinte tem acesso
aos bancos de dados de cada ser humano no mundo. Vamos eliminar todos eles por
grupos e classes até ficarmos com apenas uma pessoa. A pessoa perfeita. E ela
será minha.
– Estou pronto – disse eu.
– Elimine todos os homens primeiro – disse ele.
Isto foi fácil. Suas palavras ativaram símbolos em minhas
válvulas moleculares. Eu pude amplificar-me para entrar em contato com os dados
acumulados sobre cada ser humano no mundo. Conforme suas palavras, afastei-me
de 3.784.982.874 homens. Continuei em contato com 3.786.112.090 mulheres.
– Elimine todas as que tiverem menos de vinte e cinco anos –
disse ele – e todas as com mais de quarenta. Depois, elimine todas com um QI
inferior a 120, todas com uma altura inferior a um metro e cinqüenta e superior
a um metro e setenta e cinco.
Deu-me medidas exatas, eliminou mulheres com filhos vivos,
eliminou mulheres com várias características genéticas.
– Não estou certo quanto à cor dos olhos – disse Milton. –
Por enquanto, deixe isso de lado. Mas nada de cabelos ruivos. Não gosto dessa
cor de cabelo.
Duas semanas depois tínhamos baixado para 235 mulheres.
Todas falavam muito bem o inglês. Milton disse que não queria um problema de
linguagem. Ou nos momentos íntimos, até a tradução por computador entraria no
meio.
– Não posso entrevistar 235 mulheres – disse ele. – Levaria
muito tempo e o pessoal descobriria o que estou fazendo.
– Isso traria problemas – disse eu. Milton tinha me mandado
fazer coisas que eu não estava projetado para fazer. Ninguém sabia disso.
– Isso não é da sua conta – disse ele, e a pele do seu rosto
ficou vermelha. – Escute aqui, Joe, vou lhe trazer holografias e você vai checar
a lista por similaridades.
Ele trouxe holografias de mulheres.
– Essas aí são três vencedoras de um concurso de beleza –
disse. – Veja se alguma das 235 corresponde.
Oito eram correspondências muito boas.
– Ótimo – disse Milton. – Você tem os seus bancos de dados.
Estude suas exigências e necessidades em termos de mercado de trabalho e
providencie para tê-las aqui numa entrevista. Uma de cada vez, é claro. – Ele
pensou um pouco, moveu os ombros para cima e para baixo, e completou: – Ordem
alfabética.
Isto é uma das coisas para que não fui projetado para fazer.
Deslocar pessoas de emprego para emprego, por razões pessoais, chama-se
manipulação. Só pude fazer isso porque Milton tinha me ajustado para agir
assim. No entanto, não poderia fazer isso para ninguém a não ser ele.
A primeira garota chegou uma semana mais tarde. O rosto de
Milton ficou vermelho quando a viu. Ele falava como se tivesse dificuldade em
fazê-lo. Ficaram juntos muito tempo e ele não prestou atenção em mim. Num certo
momento, ele disse–.
– Deixe-me levá-la para jantar.
– De certo modo não foi bom – Milton me disse no dia
seguinte. – Estava faltando alguma coisa. É uma mulher bonita, mas não senti
nenhum toque de verdadeiro amor. Tente a próxima.
Aconteceu o mesmo com todas as oito. Eram muito parecidas.
Sorriam muito e tinham vozes agradáveis, mas Milton sempre achava que não
estava bem.
– Não consigo entender, Joe – disse ele. – Você e eu
selecionamos as oito mulheres que, no mundo inteiro, parecem ser as melhores
para mim. Todas ideais. Por que elas não me agradam?
– Você as agrada? – disse eu.
Ele enrugou a testa e esmurrou com força a palma da mão.
– É isso aí, Joe. É uma via de mão dupla. Se não
sou o ideal delas, não podem agir de modo a serem o meu ideal. Eu preciso ser,
também, o verdadeiro amor delas, mas como fazer isso?
Ele pareceu pensar todo aquele dia.
Na manhã seguinte, se aproximou de mim e disse:
– Vou deixar você cuidar do assunto, Joe. Tudo por sua
conta. Você tem meu banco de dados, e vou contar tudo que sei sobre mim mesmo.
Você completará meu banco de dados nos mínimos detalhes, mas guarde todos os
acréscimos para si mesmo.
– E depois, o que vou fazer com seu banco de dados, Milton?
– Depois você vai fazê-lo corresponder com as 235 mulheres.
Não, 227. Esqueça as oito que encontramos. Arranje para que cada uma seja
submetida a um exame psiquiátrico. Complete seus bancos de dados e compare-os
com o meu. Encontre correlações. (Arranjar exames psiquiátricos é outra coisa
contrária às minhas instruções originais.)
Durante semanas, Milton conversou comigo. Ele me falou de
seus pais e parentes. Contou-me de sua infância, seu tempo de escola e
adolescência. Contou-me das jovens que tinha admirado a uma certa distância.
Seu banco de dados aumentou e ele ajustou-me para ampliar e aprofundar minha
chave simbólica.
– Veja só, Joe – disse ele. – À medida que você absorve mais
e mais de mim, eu vou ajustando-o para corresponder cada vez melhor comigo.
Você começa a pensar cada vez mais como eu, por conseguinte, vai me
compreendendo melhor. Quando você me compreender suficientemente bem, aquela
mulher, cujo banco de dados for uma coisa que você entenda igualmente bem, será
meu verdadeiro amor.
Ele continuava conversando comigo e eu passava a
compreendê-lo cada vez mais.
Eu conseguia formar frases mais longas e minhas expressões
se tornavam mais complicadas. Minha fala começou a ficar muito parecida com a
dele, tanto em vocabulário quanto na ordenação das palavras e no estilo.
Certa vez, eu disse a ele:
– Veja você, Milton, não é apenas um problema de adequar uma
moça a um ideal físico. Você precisa de uma moça que seja pessoal,
temperamental e emocionaimente adequada. Quando isso acontece, a aparência é
secundária. Se não pudermos encontrar uma que sirva nestas 227, devemos
procurar entre as outras. Acharemos uma que também não se preocupará com a
aparência que você ou qualquer outra pessoa tiverem, desde que a personalidade
seja adequada. O que significa a aparência?
– Absolutamente nada – disse ele. – Eu saberia disso se
houvesse tido mais contato com mulheres. Evidentemente, pensando bem, tudo
parece mais claro agora.
Sempre concordávamos, cada um pensava exatamente como o
outro.
– Não vamos ter mais nenhum problema, Milton, se você me
deixar fazer-lhe algumas perguntas. Posso ver onde, em seu banco de dados, há
espaços brancos e irregulares.
O que veio a seguir, Milton dizia, era o equivalente de uma
meticulosa psicanálise. É claro. Eu havia aprendido com os exames psiquiátricos
de 227 mulheres, a totalidade das quais eu continuava observando intimamente.
Milton parecia muito feliz.
– Falar com você, Joe, é quase como falar com outro eu.
Nossas personalidades chegaram a uma combinação perfeita. O mesmo acontecerá
com a personalidade da mulher que escolhermos.
E eu a encontrei. Afinal, era uma das 227. Chamava-se
Charity Jones e trabalhava como contadora na Biblioteca de História, em
Wichita. Seu extenso banco de dados se ajustava perfeitamente ao nosso. Todas
as outras mulheres tinham sido descartadas por um ou outro motivo à medida que
seus bancos de dados aumentavam, mas com Charity havia uma crescente e
espantosa ressonância.
Não precisei descrevê-la para Milton. Ele tinha coordenado
meu simbolismo tão intimamente com o seu, que foi suficiente relatar pura e
simplesmente a ressonância. A escolha se adequava.
Em seguida, era o problema de ajustar as folhas de serviço e
exigências de trabalho de modo a conseguir que Charity tivesse uma entrevista
connosco. Isto devia ser feito muito delicadamente, para que ninguém viesse a
saber que estava ocorrendo uma coisa ilegal.
Evidentemente, Milton conhecia a manobra. Foi ele quem
arranjou a coisa, foi ele quem cuidou de tudo. Quando vieram prendê-lo, em
virtude de mau procedimento em trabalho, foi, felizmente, por algo que tinha
acontecido há dez anos. Ele me informara sobre tudo, é claro, mas aquilo foi
fácil de arranjar. E ele não comentará nada sobre mim, pois seu delito se
tornaria muito mais grave.
Milton foi embora, e amanhã é 14 de fevereiro, Dia dos
Namorados. Charity chegará então com suas mãos calmas e sua voz suave. Vou
ensiná-la a me manejar e a cuidar de mim. O que importará a aparência quando
nossas personalidades ressoarem juntas?
Eu direi a ela:
– Eu sou Joe e você é meu verdadeiro amor.
Isaac Asimov
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