«Germinal»
Romance de Émile Zola
464- «GERMINAL»
[7 Excertos]
I
«Foi por essa época que Etienne começou a compreender as
ideias que lhe fervilhavam na cabeça. Até então não passara de um revoltado
instintivo absorvendo a surda fermentação dos companheiros. Uma gama variada de
perguntas confusas não o deixava em paz: por que havia tanta miséria de um lado
e tanta riqueza de outro? Por que estes tinham de viver escravizados àqueles
sem a menor esperança de um dia mudarem de posição? A primeira etapa vencida foi
a da compreensão de sua ignorância. Uma vergonha secreta, um desgosto oculto
começaram a atormentá-lo: nada sabia, não ousava falar sobre essas coisas que
eram a sua paixão, a igualdade entre os homens, a justiça que exigia que os
bens da terra fossem repartidos entre todos. Por isso começou a estudar, sem
métodos, como fazem aqueles que são ignorantes mas têm sede de saber.»
II
«Desde que começara a instruir-se, a promiscuidade da aldeia
mineira chocava-o. Então eram animais para viverem assim, amontoados, uns por
cima dos outros, com tanto campo em volta, a ponto de não se poder trocar a
camisa sem ter que mostrar o traseiro ao vizinho? E que bem fazia para a saúde
essa promiscuidade, com moças e rapazes apodrecendo juntos!
-Ora! - Respondeu Maheu. - Se houvesse mais dinheiro viveríamos melhor...Mas de
facto, só pode fazer mal viver amontoado desse jeito. Sempre termina com homens
bêbados e mulheres grávidas.»
III
«Trabalhavam como bestas numa coisa que antes só era feita
pelos condenados às guilhotinas, morriam ali, muito antes de ter chegado a sua hora,
e tudo isso para nem sequer terem carne no jantar. Ainda comiam, claro, mas tão
pouco, apenas o suficiente para seguirem sofrendo, cheios de dívidas,
perseguidos como se tivessem roubando o pão que não os deixava morrer de fome. Aos
domingos sucumbiam exaustos. Os únicos prazeres eram embriagar-se e fazer
filhos na mulher. E ainda por cima a cerveja fazia crescer a barriga, e os
filhos, mais tarde, renegavam os pais. Não, não, a vida não tinha graça
alguma.»
IV
«Uma aclamação rolou até ele, vindo dos
confins da floresta. A lua agora, iluminava toda a clareira, recortava com
arestas brilhantes o mar de cabeças por toda a confusa lonjura da mata de corte
e por entre os enormes troncos cinzentos. E naquele ar glacial havia um ricto
feroz nos rostos, olhos faiscantes, bocas abertas... Era todo um povo em delírio
de possessão, homens mulheres e crianças famélicos, pronto para o assalto justo
aos antigos bens de que estavam sendo esbulhados. Já nem sentiam mais frio,
aquelas palavras religiosas fazia-os pairas sobre a terra, era a febre da
esperanças dos primeiros cristãos da Igreja esperando o reino próximo da
justiça.»
V
«A turba tinha visto Maigrat
esgueirando-se pelo teto do galpão .Na sua ânsia, apesar do seu peso , ele
subira agilmente pela latada, sem se preocupar com as ripas que quebravam; e
agora espichavam-se ao longo das telhas, esforçando-se para atingir a janela .
Mas a inclinação era muito forte, sua barriga os estorvava, suas unhas estavam
sendo arrancadas. Assim mesmo teriam-se arrastado até a cumeeira, se não
tivesse começado a tremer de medo de receber alguma pedrada, já que a multidão,
que ele não conseguia ver, continuava a gritar lá em baixo:
- Pega o gato, pega o gato! Vamos fazê-lo em pedaços!
E bruscamente suas duas mãos se soltaram, ele rolou como uma
bola, bateu na biqueira e caiu atravessado na parede-meia, tão desastradamente
que foi espatifar-se na rua, onde abriu o crânio no ângulo de um marco. O
cérebro esguichou. Estava morto. Sua mulher no alto, pálida e assustada por
trás dos vidros continuava olhando.
Houve um momento de estupor. Etienne tinha parado e o
machado escorregara de suas mãos. Maheu, Levaque, e os outros todos esqueceram
o armazém, os olhos voltados para a parede, de onde escorria lentamente um
filete vermelho. Os gritos tinham cessado, abateu-se um silêncio pesado, na
escuridão que aumentava.
Em seguida recomeçara os gritos. Eram as mulheres que se
precipitavam, presas da embriaguez do sangue.
- A justiça tarda mais não falha! Ah porco, morreste, enfim!
Rodearam o cadáver ainda quente e começaram a insultá-lo com
gargalhadas de coisa imunda, sua cabeça despedaçada, berrando na cara da morte
o longo rancor de suas vidas sem pão.
- Eu te devia sessenta francos, já está pago, ladrão!- gritou a mulher de Maheu, tão enfurecida quanto as outras.
- Nunca mais vais negar-te a me vender fiado... Espera! Espera!
Vou engordar-te mais ainda...
Começou a cavar a terra com as duas mãos, tomou os dois punhados e os enfiou violentamente
na boca do cadáver.
- Vai come! Vamos come, come, tu, que nos comias!
As injúrias eram cada vez mais violentas, enquanto o morto,
estendido de costas, olhava com seus grandes olhos vidrados o céu imenso de
onde descia a noite. Aquela terra enfiada na sua boca, era o pão que ele tinha
recusado. E de agora em diante, só comeria deste pão. Esfomear os pobres não
lhe trouxe felicidade.
Mas as mulheres ainda queriam vingar-se. Rodeavam-no,
farejando como lobas. Todas arquitetavam um ultraje que as desafogasse.
Ouviu-se a voz áspera da Queimada:
- Vamos castrá-lo como a um gato!
- Vamos! Ao gato! Mãos à obra! Esse asqueroso já fez demais o
que não devia!
Imediatamente a filha de Mouque começou a abrir-lhe a
braguilha e a puxar-lhe as calças, enquanto a mulher de Levaque, levantava as
pernas do morto. E a Queimada, com suas mãos secas de velha, abriu-lhe as coxas
nuas e empunhou a virilidade morta. Segurou tudo e fez tal esforço para
extirpar o membro que suas costas magras se distenderam e seus braços enormes
estalaram. Mas a pele mole resistia, ela teve de atracar-se novamente e acabou
arrancando o despojo, um pedaço de carne cabeluda e sangrenta que agitou no ar
com uma gargalhada de triunfo:
- Pronto, aqui está!
Vozes esganiçadas saudaram com impregnações o horrível
troféu.
- Ah desgraçado! Não engravidarás mais as nossas filhas!
- Chega! Não te pagaremos mais com a nossa carne! Nunca mais
teremos de abrir as pernas para conseguir um pão!
- Olha eu te devo seis francos... Queres fazer uma brincadeira
por conta? Eu estou pronta, se tu ainda podes!
Este gracejo sacudiu-as com uma gargalhada feroz. Passavam
umas às outras a carne pingando sangue, como a um animal tinhoso que cada uma
tivera de suportar e que acabavam de esmagar, que agora tinham ali, inerte, à
sua mercê. Cuspiam em cima, arreganhavam os dentes repetindo, numa furiosa
explosão de desprezo:
- Ele não pode mais! Ele não pode mais! Já não é mais um homem
que vai para a cova! Começa logo a apodrecer inútil.
A Queimada, então, espetou o naco de carne na ponta da sua
vara e, levantando-o bem ao alto, como um estandarte, empreendeu a marcha,
seguida pela debandada ululante das mulheres. O sangue gotejava sobre elas, o
despojo horripilante pendia como um pedaço de carne no gancho de um açougue. E
a chusma de mulheres saiu estrada afora com o animal tinhoso, o animal decepado
na ponta da vara.»
VI
«Um homem pode ser valente, uma multidão
que morre de fome não tem força pra nada.»
VII
«Mas ele ficou onde estava e tomou-a
pela cintura, numa carícia de tristeza e pena. Em camisola, apertados um ao
outro, sentiram o calor de sua pele nua, à beira daquela cama tépida do sono da
noite. O primeiro movimento dela fora afastar-se, depois pôs-se a chorar
baixinho, agarrando-o pelo pescoço para mantê-lo contra si, num abraço
desesperado. E ficaram assim, sem outro desejo, com o passado dos seus amores
infelizes, que não tinham podido satisfazer. Estava então tudo acabado, não
ousariam amar-se um dia, agora que eram livres? Um pouquinho de felicidade
seria o bastante para dissipar sua vergonha, esse mal-estar que os impedia de
seguirem juntos, devido a uma infinidade de ideias, que nem eles mesmos sabiam
o que era.
- Vai deitar-te - murmurou ela- Não quero acender a luz para
não acordar a mamã... Já está na hora, vai...
Mas ele não escutava, abraçava-a desesperadamente, o coração
imerso em profunda tristeza. Uma necessidade de paz, um invencível desejo de
ser feliz invadia-o. E via-se casado, numa casinha limpa, sem outra ambição do
que a de viverem e morrerem assim, juntos. Só pão lhe bastaria; e mesmo que
houvesse apenas para um, esse pedaço seria para ela. Para quê mais? A vida
valeria mais que isso?»
Depois confessou, voltava pra a mina. Sim, tinha jurado, mas não era vida
esperar de braços cruzados que as coisas, talvez dentro de cem anos,
acontecessem; além disso, razões suas tinham feito com que decidisse.
Suvarin escutara-o arrepiado. Agarrando-o por um braço,
empurrou-o de volta à aldeia.
- Volta já pra casa!
Catherine se aproximou, ele reconheceu-a também. Etienne
protestou, declarou que ninguém tinha o direito de julgar seus atos. E os olhos
do mecânico foram da moça ao companheiro, enquanto recuava um passo, com um
gesto brusco de desistência. Quando um homem tinha uma mulher no coração,
estava liquidado, podia morrer. Talvez tenha visto, numa rápida visão, lá em Moscou, sua amante enforcada, o último
laço carnal que cortara, que o tornara livre da vida dos outros e da sua . Disse
simplesmente:
- Vai»
Émile Zola
Émile Zola
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