No dia em que se comemora o seu centenário, outra face de Álvaro Cunhal.
«Os Barrigas e os Magriços»
Desenho de Álvaro Cunhal
20- «OS BARRIGAS E OS MAGRIÇOS»
“Esta história que vos vou contar passou-se há muitos anos,
ainda nenhum de vocês tinha nascido. Foi num país em que havia uns homens
conhecidos como os Barrigas e outros conhecidos como os Magriços. Os Barrigas
não tinham este nome por serem todos barrigudos, mas por comerem tanto, tanto,
tanto que nem se percebia onde cabia tanta coisa. Houve até quem dissesse que
para lá caber tanta comida o corpo dos Barrigas lá por dentro devia ser todo
estômago.
Os Magriços também não se chamavam assim por terem nascido
todos magrinhos. Mas porque, em certas épocas do ano, os Barrigas não lhes
davam trabalho, nada lhes pagavam, e passavam tanta fome. E então sim, ficavam
tão magrinhos, só pele e osso, magrinhos como carapaus secos. Os Barrigas
tinham muitos campos, muitas terras, tão grandes, tão grandes, que de uma ponta
nem com binóculo se via a outra ponta. Os Barrigas tinham também moinhos para
moer farinha, lagares para moer azeitona e fabricar azeite. Nesses campos,
nesses moinhos, nesses lagares, trabalhavam os magriços. Mas recebiam tão
pouco, tão pouco, que não lhes dava para comerem eles, suas mulheres e seus
filhos.
E, ainda por cima, eram mesmo maltratados, como se fossem
bichos. Uma vez, um Magriço pediu ao Barriga seu patrão que lhe pagasse mais
pelo seu trabalho. E sabeis vocês o que lhe respondeu o Barriga? O Barriga
riu-se e respondeu: "Se não tens pão, come palha." Isto não se diz a
ninguém. São palavras feias de um homem mau, não vos parece? Outra vez, um
outro Magriço que trabalhava num lagar procurou o Barriga e disse-lhe «Senhor
Barriga, eu fabrico cântaros e cântaros de azeite, mas o senhor fica com todo e
eu não tenho azeite para temperar as batatas». E o Barriga deu uma resposta tão
feia, tão feia, que não sei se aqui a diga. Mas sempre a digo. O Barriga
respondeu: «Se não tens azeite para temperar as batatas faz-lhe xixi por cima.»
Disse isto com palavras ainda piores, mas foi isto que disse.
São também palavras feias de um homem mau, não vos parece?
Isto eram, porém, palavras feias de homens maus, mas as coisas eram ainda
piores. Porque os Barrigas tinham ao seu serviço soldados armados e quando os
Magriços protestavam - um, por exemplo, disse ao Barriga: «O senhor é um homem
mau» - eles diziam aos soldados para prender os Magriços, meterem-nos presos
nuns buracos a que chamavam prisões. Isto e ainda pior.
Uma vez, um Magriço não se cansava de protestar. «Vai-te
embora daqui». E ele disse: «Não vou sem o senhor nos dar razão». O Barriga deu
ordem aos soldados para lhe darem um tiro e ele morreu logo ali. Falando uns
com os outros, os Magriços diziam que as coisas não podiam continuar assim. Mas
havia os soldados. E se eles se revoltavam , os Barrigas diziam aos soldados
para os correrem todos a tiro.
Que fazer? Se algum de vocês fosse um Magriço, o que fazia?
Foi um Magriço que se lembrou. Tinha um amigo que era soldado e disse-lhe
assim: «Olha lá amigo, achas bem isto? O que os Barrigas te mandam fazer?» O
soldado era bom rapaz e disse: «Eu estou de acordo contigo. Mas que posso eu
fazer?»
Lembrou-se então de falar com os outros soldados e todos
pensaram que era preciso ajudar os Magriços a libertar-se de tal situação. Foi
então que os Magriços se juntaram todos, procuraram o mais barrigudo dos
Barrigas e lhes disseram: «Isto não pode continuar assim. O senhor tem tanta
terra que muita está abandonada. Nós vamos trabalhar para lá, cultivá-la, e o
que produzirmos é para nós.»
O Barriga nem queria acreditar. Começou logo a gritar:
«Estais malucos ou quê? Se se atrevem a isso, varro-vos todos a tiro!» Mas os
Magriços não tiveram medo, foram para essas terras abandonadas, começaram a
limpá-la de mato para depois cavarem e semearem. Os Barrigas protestaram,
chamaram nomes aos Magriços, ameaçaram de os mandar matar. Mas o pessoal não se
assustou. O mesmo sucedeu por toda a parte e os Magriços, com o seu trabalho,
desenvolveram rapidamente a agricultura. Asseguraram trabalho a todos os que
dantes passavam metade do ano sem trabalho e sem pão e ganharam para que
ficasse a juventude que fugia. Semearam terras que estavam abandonadas.
Produziram e venderam trigo, tomate, compraram vacas e ovelhas e assim
produziram leite e queijo.
Arranjaram máquinas agricolas.
Arranjaram máquinas agricolas.
O que fizeram os Barrigas? Chamaram os soldados e deram ordem: «vão lá e corram com esses gajos a tiro!» Os soldados foram, lá isso é verdade. Mas não deram tiro nenhum, e até deram os parabéns aos Magriços pelo trabalho que estavam a fazer. E o mesmo se passou nos moinhos e nos lagares de azeite. Os magriços tomaram conta de uns e de outros e quando apareceram os Barrigas a protestar, eles disseram: «Não lhe queremos mal, senhor Barriga. O senhor leva a farinha e o azeite de que precisa para a sua família. E nós levamos o resto para as nossas.»
E o mesmo se passou nas fábricas dos Magriços e em toda a
parte. Passou-se tudo isto na primavera. Calhou começar no dia 25 do mês de
Abril. Por isso, quando se fala no 25 de Abril, é dessa revolta dos Magriços e
do que foram capaz de realizar que se fala.
E, para acabar a história, quero fazer-vos uma pergunta. A
mim, já me têm perguntado: «Ouve lá, se tivesses vivido nessa época, com quem
estarias tu? Com os Barrigas ou com os Magriços?» E eu respondo: com os
Magriços, claro! E penso que conhecendo vocês esta história, dariam a mesma
resposta.”
Álvaro Cunhal
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