«Vinte Cinco a Sete Vozes»
Contos de Alice Vieira
23- «VINTE CINCO A SETE VOZES»
Olhe que foi mesmo por acaso! Quando saí de casa, nem
pensava em passar por aqui. Mas depois tive de ir ali ao Montepio levantar a
minha pensão, e lembrei-me de dar uma palavrinha ao Paulito. Para mim
ele há-de ser sempre o Paulito... Olhe que foi dos melhores alunos que eu
tive! Uma pena não ter continuado a estudar, uma pena! Se fosse hoje, nada
disso tinha acontecido, mas naquele tempo... E eu lembro-me que a família dele
passava muitas dificuldades, o pai ora estava empregado ora desempregado, e
além disso sofria do coração, havia dias que quase nem se podia mexer. A gente
bem lhe dizia para ele ir ao médico, mas onde é que havia médico, e onde é que
havia dinheiro para médico. «Isto é tudo nervos», dizia ele. Só quando morreu
é que se soube que era do coração que sofria.
Mas então a nossa conversa vai ser sobre o 25 de Abril de
1974, não é? Nessa altura eu já não estava na escola onde o Paulo andou, tinha
sido colocada mais cá para baixo, numa aldeia chamada Vale de Mu, lá para a
serra do Caldeirão. Aquilo era uma terra onde não havia nada, nem vinha no
mapa, a escola não tinha condições nenhumas, mas nenhumas! Agora já estou
reformada, como deve calcular, mas quando ainda estava no activo e ouvia
colegas meus queixarem-se das más condições das escolas onde ensinavam, só tinha
vontade de os levar a Vale de Mu para eles verem o que era uma escola
degradada. Não que as nossas escolas de agora estejam todas bem, não é isso,
mas comparadas com a de Vale de Mu são o paraíso! Se calhar essa escola hoje
até já nem existe, se calhar até já fechou, como tantas por esse país fora.
Como já referi a escola não tinha nada. E quando eu digo nada, é nada mesmo. Olhe que nem sequer o retrato do Américo Tomás e do Marcelo Caetano ela tinha! A menina é muito nova, e se calhar não sabe estas coisas, mas antes do 25 de Abril todas as escolas primárias... Agora elas já não se chamam assim, acho que se chamam escolas do ensino básico, mas para mim continuam sempre a ser escolas primárias! Mas dizia eu que todas as escolas tinham na parede o retrato do presidente da República e do presidente do Conselho. Eu ainda apanhei escolas com o retrato do Carmona, depois o Carmona morreu e veio o retrato do Craveiro Lopes, que foi o presidente a seguir, e depois o do Américo Tomás, que foi o que esteve até ao 25 de Abril, como a menina sabe. Ao lado do retrato do presidente da República, estava sempre o retrato do Salazar, que foi presidente do Conselho mais de quarenta anos. Um dia, em 1969, como a menina também deve saber, o Salazar caiu de uma cadeira abaixo, bateu com a cabeça no chão e teve de ser substituído pelo Marcelo Caetano, que ficou até ao 25 de Abril. Isto em traços muito largos, claro, porque pelo meio houve histórias e mais histórias, mas agora não vêm ao caso.
Pois lá em Vale de Mu nem o retrato do Marcelo Caetano nem o
do Américo Tomás havia. Nem isso, que o Ministério queria sempre que não
faltasse, para os meninos saberem logo de pequeninos quem é que mandava em
todos!
Não é que os retratos dos homens me fizessem falta, quanto
menos olhasse para eles, melhor. Mas isto é só para a menina ver como aquela
escola era desprezada. Olhe que não havia um pau de giz! Nem sequer o mapa de
Portugal! Eu queria dar aritmética e geometria, e nem uma caixa com os pesos ou
com as figuras geométricas lá havia, como havia noutras escolas. Nada. O que
se chama nada.
Então eu, pacientemente, escrevia todos os meses uma carta
ao Ministério e explicava que a escola não tinha material, e sem material como
é que eu podia ensinar as crianças, e lá dizia também, para ver se os comovia,
que a escola nem os retratos do senhor presidente da República e do senhor
presidente do Conselho tinha nas paredes, e que era uma vergonha para o país
uma escola naquele estado, santo Deus.
E do Ministério, nada. O silêncio mais completo.
E lá vinha outro mês, e lá voltava eu a escrever para o
Ministério, a mandar ofícios, a fazer pedidos a toda a gente – e do Ministério
apenas o silêncio.
Foram anos terríveis. Eu já não sabia como inventar maneiras
de ensinar os miúdos. Já viu como é que se ensina Geografia de Portugal sem um
mapa? Ensinar-lhes as serras, os rios, as linhas de caminho-de-ferro – sem lhes
mostrar no mapa onde ficavam? Coitadinhos, eles sabiam tudo de cor, mas não
faziam a mínima ideia onde é que tudo aquilo era! E o meu ordenado, claro, tão
pequeno que nem dava para pagar o material do meu bolso. Ainda paguei muitos
paus de giz, e um apagador para o quadro, e alguns cadernos para aqueles que
não tinham mesmo possibilidades nenhumas, mas não podia ir muito além disso.
Tinha dois filhos para criar, e fiquei viúva muito cedo, como o Paulo lhe deve
ter dito. A vida era muito difícil também para mim.
Mas nunca desisti. Todos os meses lá ia a carta para o
Ministério. Isto durante anos! Só em selos devo ter gasto uma pequena fortuna!
Até que um dia, já eu desesperava de tudo, aparece-me junto
da escola uma carrinha, a trazer, finalmente, material que o Ministério
mandava. Só não deitei foguetes porque não os tinha, mas senti-me rebentar de
felicidade. Até que enfim eu ia poder ser uma professora a sério! Estava tão
feliz, mas tão feliz, que nem estranhei a pressa que o chofer tinha em despachar
aquilo, e nem liguei, quando ele disse que em Lisboa tinha havido qualquer
coisa esquisita, tinha encontrado muita tropa na rua quando de lá saíra, e
aquilo não lhe parecera normal.
Acho mesmo que nem ouvi bem o que ele disse. O que eu queria
era abrir os pacotes, ver o material, colocá-lo na sala, e poder dar, finalmente,
uma aula decente às crianças.
A menina até pode nem acreditar, porque esta história parece
mentira, mas juro que foi assim mesmo que aconteceu: a senhora Aurora, que era
quem limpava a escola, a chegar ao pé de mim e a dizer que na rádio se falava
de uma revolução, de um Movimento das Forças Armadas que tinha ido prender
o governo todo, e eu a abrir os pacotes cheia de alegria, e a dar de caras com
os retratos do Américo Tomás e do Marcelo Caetano! Nem um pau de giz, nem um
mapa, nem formas geométricas, nada de nada, a não ser os retratos daqueles dois
para pendurar na parede. A senhora Aurora, coitada, aflitíssima, «senhora
Professora, há uma revolução em Lisboa!», e eu a olhar para os retratos no
chão e a pensar, «e agora, o que é que eu faço com estes dois?»
Ainda hoje, que já se passaram 25 anos, de cada vez que
vejo, na televisão, documentários sobre o 25 de Abril, com o chaimite que levou o Marcelo Caetano e o
Américo Tomás do Quartel do Carmo, só me lembro do retrato deles, no chão, à
entrada da escola, e do meu espanto no meio de tudo.
Alice Vieira
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