«Uma simples flor nos teus cabelos claros»
Mulher com flor no cabelo/ Cynthia Castejón
18- UMA SIMPLES FLOR NOS TEUS CABELOS CLAROS
«Mas a meio caminho voltou para trás, direita ao mar. Paulo
ficou de pé no areal, a vê-la correr: primeiro chapinhando na escuma rasa e depois contra as ondas, às arrancadas, saltando e sacudindo os
braços, como se o corpo, toda ela, risse.
Uma vaga mais forte desfez-se ao correr da praia, cobriu na
areia os sinais das aves marinhas, arrastou alforrecas abandonadas pela maré. Eram
muitas, tantas como Paulo não vira até então, espapaçadas e sem vida ao longo do
areal. O vento áspero curtira-lhes os corpos, passara sobre
elas, carregado de areia e de salitre, varrendo a costa contra as dunas, sem
deixar por ali vestígios de pegada ou restos de alga seca que lhe resistissem.»
«Marcaste o despertador»
«Hã?»
«O despertador, Quim. Para que horas o puseste?»
«...E tudo à volta era névoa, fumo do mar rolando ao lume
das águas e depois invadindo mansamente a costa deserta. Havia esse sudário fresco, quase matinal, embora,
cravado no céu verde-ácido, despontasse já o brilho frio da primeira estrela do
anoitecer...»
«Desculpa, mas não estou descansada. Importas-te de me
passar o despertador?»
«O despertador?»
«Sim, o despertador. Com certeza que não queres que eu me
levante para o ir buscar. És de força, caramba.»
«Pronto. Estás satisfeita?»
«Obrigada. Agora lê à vontade, que não te torno a incomodar.
Eu não dizia? Afinal não lhe tinhas dado corda... Que horas são no teu relógio?
Deixa, não faz mal. Eu regulo-o pelo meu.»
«- Mais um mergulho - pedia a rapariga.
A dois passos dele sorria-lhe e puxava-o pelo braço;
- Só mais um, Paulo. Não imaginas como a água está
estupenda. Palavra, amor. Estupenda, estupenda, estupenda.
Uma alegria tranquila iluminava-lhe o corpo. A neblina
bailava em torno dela, mas era como se a não tocasse. Bem ao contrário: era
como se, com a sua frescura velada,
apenas despertasse a morna suavidade que se libertava da pele da rapariga.
- Não, agora já começa a arrefecer - disse Paulo. - Vamo-nos
vestir?
Estavam de mãos dadas, vizinhos do mar e, na verdade, quase
sem o verem. Havia a memória das águas na pele cintilante da jovem ou no eco discreto
das ondas através da névoa; ou ainda no
rastro de uma vaga mais forte que se prolongava, terra adentro, e
vinha morrer aos pés deles num distante fio de espuma. E isso era o mar,
todo o oceano. Mar só presença. Traço de água a brilhar por instantes num rasgão do nevoeiro.
Paulo apertou mansamente a mão da companheira;
- Embora?
- Embora - respondeu ela.
E os dois, numa arrancada,
correram pelo areal, saltando poças de água, alforrecas mortas e tudo o mais, até
tombarem de cansaço.»
«Quim... »
«Outra vez?»
«Desculpa, era só para baixares o candeeiro. Que maçada,
estou a ver que tenho de tomar outro comprimido.»
«Lê um bocado, experimenta.»
«Não vale de nada, filho. Tenho a impressão de que estes
comprimidos já não fazem efeito. Talvez mudando de droga... É isso, preciso de mudar de droga.»
«- Tão bom, Paulo. Não está tão bom?
- Está óptimo. Está um tempo espantoso.
Maria continuava sentada na areia. Com os braços envolvendo
as pernas e apertando as faces contra os joelhos, fitava o nada, a brancura que
havia entre ela e o mar, e os olhos iam-se-lhe carregando de brilho.
- Tão bom - repetia.
- Sim, mas temos que ir.
Com o cair da tarde a névoa desmanchava-se pouco a
pouco. Ficava unicamente a cobrir o mar, a separá-lo de terra como uma muralha
apagada, e, de surpresa, as dunas e o pinhal da costa surgiam numa claridade
humilde e entristecida. Já de pé, Paulo avistava ao longe a janela iluminada do
restaurante.
- O homem deve estar à nossa espera - disse ele. - Ainda não
tens apetite?
- E tu, tens?
- Uma fome de tubarão.
- Então também eu tenho, Paulo.
- Ora essa?
- Tenho, pois. Hoje sinto tudo o que tu sentes. Palavra.
«Se isto tem algum jeito. Qualquer dia já não há comprimidos
que me cheguem, meu Deus.»
«Faço ideia, com essa mania de emagrecer... »
«Não, filho. O emagrecer não é para aqui chamado. Se não
consigo dormir, é por outras razões. Olha, talvez seja por andar para aqui
sozinha a moer arrelias, sem ter com
quem desabafar. Isso, agora viras-me as costas. Nem calculas a inveja que me
fazes.»
«Pois.»
«Mas sim, fazes-me uma inveja danada. Contigo não há
complicações que te toquem. Voltas
as costas e ficas positivamente nas
calmas. Invejo-te, Quim. Não calculas como eu te invejo. Não acreditas?»
«Acredito, que remédio tenho
eu?»
«Que remédio tenho
eu... É espantoso. No fim de contas ainda ficas por mártir. E eu? Qual é o
meu remédio, já pensaste? Envelhecer estupidamente. Aí tens o meu remédio.»
«Partiram às gargalhadas. À medida que se afastavam do mar,
a areia, sempre mais seca e solta, retardava-lhes o passo e, é curioso, sentiam
as noite abater-se sobre eles. Sentiam-na vir, muito rápida, e entretanto
distinguiam cada vez melhor, as piteiras encravadas
nas dunas, a princípio pequenas como galhos secos e logo depois maiores do que
lhes tinham parecido à chegada. E ainda as manchas esfarrapadas dos chorões rastejando pelas ribas arenosas, o restaurante ermo, as traves; de madeira roídas pela
maresia e, cá fora, as cadeiras de verga,
que o vento tombara, soterradas na areia.
- O mar nunca aqui chega - tinha dito o dono da casa. -
Quando é das águas vivas, berra lá
fora como um danado. Mas aqui, não senhor. Aqui não tem ele licença de chegar.»
«A verdade é que são quase duas horas e amanhã não sei como
vai ser para me levantar. Escuta...»
«Que
é?»
«Não estás a ouvir passos?»
«Passos?»
«Sim. Parecia mesmo gente lá dentro, na sala. Se soubesses
os sustos que apanho quando estou com insónias. A Nanda lá nisso é que tem
razão. Noite em que não adormeça veste-se e vai dar uma volta com o marido, a
qualquer lado. Acho um exagero, eu nunca seria capaz de te acordar... mas,
enfim, ela lá sabe. O que é certo é que se entendem à maravilha um com o outro. E isso,
Quim, apesar de ser a tal tipa, que
tu dizes. Também, ainda estou para ter uma amiga que na tua boca não seja uma
tipa ou uma galinha.»
José Cardoso Pires
1 comentário:
Lindo conto!
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