segunda-feira, 18 de novembro de 2013

OUTROS CONTOS

«A Morte de uma Poltrona», por Doris Lessing.

Faleceu ontem aos 94 anos, dia 17 de Novembro de 2013, a escritora britânica e Prémio Nobel da Literatura em 2007, Doris Lessing. Nasceu no Curdistão iraniano, a 22 de Outubro de 1919. Hoje, em Outros Contos, presta-se homenagem à escritora que nos deixa obra de teor político e social, intimista e de inspiração surfista ou de ficção científica. Viva a Literatura!
Poet'anarquista
«A Morte de uma Poltrona»
Conto, por Doris Lessing

24- «A MORTE DE UMA POLTRONA»

Houve uma época em que tive um chalé em uma fazenda nas montanhas de Dartmoor, cerca de um quilómetro e meio acima da cidade rural de Okehampton, onde todos os meses aconteciam leilões de móveis, equipamentos de cozinha e maquinário agrícola. Os leilões enchiam os dois grandes mercados públicos que também sediavam festas e feiras e todos os tipos de eventos locais. De fato parecia que o condado de Devon inteiro estava envolvido em comprar e vender fazendas e casas uns para os outros, pois as vendas e leilões de fazendas eram populares entre pessoas que viajavam quilómetros — às vezes também vinham da Cornualha e de Somerset — não necessariamente para comprar ou vender, e sim para encontrar os vizinhos e perambular pelas redondezas para dar uma boa olhada na forma como a outra metade vivia.

No centro de um dos salões estavam as melhores mobílias, arrumadas em salas de jantar, salas de estar e quartos improvisados, cada peça exposta sobre os tapetes e capachos adequados, e foi ali que os negociantes de Londres e Exeter chegaram antes de todo mundo. Aquela parte do leilão, que começava primeiro, era de revendedores disputando lances entre si enquanto o resto de nós observávamos. Mas quando os negociantes pegavam seus troféus e iam embora, havia muitas pechinchas, principalmente no final do dia. Os leiloeiros e seus assistentes passavam o dia transitando entre os lotes, suas vozes parecendo uma canção ou cântico se você os escutasse das últimas fileiras da multidão e, mesmo se estivesse perto, era preciso ouvir com atenção. Nesse ínterim, outros leiloeiros vendiam maquinários agrícolas nos quintais e levantavam as vozes, criando um contraponto. Como a mobília de uma parte do mercado já tinha sido vendida, os compradores entravam para levar embora suas mercadorias ou mandavam os homens que esperavam com vans do lado de fora ao longo daqueles dias de oportunidades; sofás e cadeiras e bricabraques estavam em constante movimento no exterior do drama central dominado pelos leiloeiros. Um cenário de movimentação e impermanência.

Precisava mobiliar meu chalé. Tinha o básico, mas a sala de estar estava meio vazia. Sabia exatamente o que queria, os avistara no começo do dia: um sofá e uma poltrona. Seriam oferecidos muito depois dos móveis bons e eu tinha consciência de que, quanto mais tarde fossem vendidos, maiores as minhas chances de conseguir uma barganha. A multidão rareava, pois as pessoas ficavam entediadas ou passavam tempo demais nos hotéis e preferiam a convivência à aquisição de pechinchas. Bem no final do dia, quando deviam ser oito ou nove horas, quando as luzes estavam acesas e as vozes dos leiloeiros desaceleravam, barganhas inacreditáveis podiam ser compradas por poucos xelins — geladeiras, fogões e banheiras em perfeito estado que tinham sido jogados fora porque os donos queriam modelos mais novos. Uma amiga minha tinha equipado a cozinha e o banheiro de seu chalé de fazenda pela metade do que custaria um único artigo novo.

Levaria muito tempo para que chegassem ao meu lote, que estava na casa das centenas, acho que era o seiscentos e alguma coisa. Saí para almoçar com amigos no hotel e voltei e ainda se passariam mais algumas horas antes que o leilão chegasse ao meu sofá e à poltrona. No velho sofá de cretone estava sentada uma mulher de meia-idade, e lhe informei que daria um lance pelo móvel na esperança de que ela não tencionasse fazê-lo também. Não, ela estava vendendo, e começou a me contar a história do sofá, sem pressa nenhuma. Seu sotaque era puro Devon, e era uma mulher grande, branca, de bochechas coradas que tornava inevitável pensar em seus ancestrais saxões. “Tenho pena de me desfazer dele”, ela declarou, “mas estou de mudança para uma casa menor, agora que meus filhos já estão crescidos e foram embora. Tenho este velho sofá desde que me casei. São quarenta anos. Na época era de cretone, com estampa de rosas, e ele teve um bocado de estofados desde então. É forte como um touro. Foi nele que meu marido fez a sesta todas as tardes de sua vida, e eu mesma já cochilei muitas vezes nele quando estava cansada e não queria subir a escada até o quarto”.

E ela prosseguiu, falando do sofá, e da poltrona também, que adquirira na mesma época. Agora, um trabalhador idoso dormia na poltrona, mas ele não tinha nenhuma relação com ela pois um jovem, provavelmente o neto, veio acordá-lo quando o leiloeiro chegou a um lote próximo. A mulher ao lado de quem eu me sentara, que àquela altura parecia uma velha amiga, já que eu sabia tanto a respeito de sua vida na fazenda de gado leiteiro, se levantou, e suspirou, deu tapinhas no sofá, e disse, “Mas se agarrar às coisas não serve de nada, não quando está na hora de colocá-las para fora.” E ela ficou de pé em um canto, para ver o que aconteceria.

O grupo que acompanhava o leiloeiro não era como o dos espertos que estivera com ele mais cedo, dando lances pelas mercadorias boas. Era formado principalmente de fazendeiros, pela aparência que tinham, e não do tipo rico. A oferta começou pelo sofá, e o homem que disputava os lances comigo desistiu quando chegamos a três libras esterlinas. O que seria isso nos dias de hoje? Naqueles, o salário médio ainda era de menos que vinte libras por semana. Ninguém queria a poltrona. Era muito grande e pesada e não se deslocava com facilidade sobre o chão de cimento. E o estofado, de cotelê marrom desbotado, fora rasgado e picotado pelas garras de vários gatos.

O leiloeiro começou em dez xelins, e foi a este preço que a consegui. Meia libra. 
O custo do almoço em um pub. 

A esposa do fazendeiro, ou viúva, deu um último tapinha no sofá na hora da partida, mas não se despediu da poltrona, que ela me disse ter vivido anos num quarto de fundos usado pelos cães e gatos da fazenda. “E uma vez pus um cordeiro nela, quando ele estava doente. Fiz uma barreira com um guarda-fogo e ele ficou descansando, até que decidiu viver e botei ele de volta com a ovelha. Ela aceitou, apesar de não ser sempre assim.”

Naquela noite, o velho sofá e a velha poltrona chegaram ao meu chalé. O entregador e seu auxiliar arrastaram a poltrona para dentro, grunhindo e resmungando para impressionar, o que não tinham feito com o sofá, bem mais leve.

Portanto, lá estava minha sala de estar, toda montada. O sofá ganhou uma capa azul-escura e a poltrona foi coberta por um linho marrom-escuro novo, e os gatos se apossaram dela imediatamente. Não sem protestos dos humanos. Era uma poltrona confortável.

Depois tive de vender o chalé, e o sofá e a poltrona foram para Londres. A poltrona poderia muito bem ter sido deixada para trás, devido ao peso e tamanho, mas as pessoas reclamaram que ela era confortável demais para ser jogada fora e portanto ela se juntou ao sofá na van da mudança. Ninguém questionava o sofá, que era fundo e macio e longo o bastante para que se dormisse nele. Muitas pessoas tinham feito isso. 

Estava de mudança para um apartamento pequeno, e serrei as pernas do sofá para que ele coubesse em um determinado lugar. A poltrona mereceu xingamentos por parte dos homens que a carregaram até o andar de cima — não eram muitos os degraus, mas eles disseram que eu devia me livrar dela. Dez anos depois eu me mudei de novo, e dessa vez a poltrona quase foi deixada para trás, de tanto ódio que os homens da transportadora tiveram dela. Em sua casa nova, ela teve de subir vários lances de escada e depois uns degraus estreitos com uma curva e eu tive que dar dinheiro extra aos homens. O conselho que me deram era queimá-la: para quê a senhora quer um velho elefante branco se pode comprar uma bela poltrona nova?
A volumosa poltrona ficou no canto do meu quarto, e os diversos gatos usavam-na para afiar as garras. Tive vislumbres dos antigos estofados por meio dos retalhos, e das diversas cores diferentes. Bem, eu havia comprado o objeto em meados da década de sessenta, e a mulher da fazenda o tivera por quarenta anos. Já não era novo na época, ela dissera. Ela havia se casado em meados dos anos vinte. Olhando por este prisma, poderia glorificar a poltrona chamando-a de antiguidade, que soa melhor do que muito velha. Estava claro que as pessoas tinham muito mais espaço naqueles tempos. Que monstro era aquela enorme poltrona desajeitada. E eu estava bem no alto da casa, em um quarto em que minha cama ficava longitudinalmente contra as janelas de batentes. A poltrona ficava aos seus pés. Era necessário se espremer ou pular por cima dela para ir até a janela. Chegou uma hora que resolvi que tinha de me livrar dela. Mas ninguém iria comprá-la, eu tinha certeza disso. E como eu acharia alguém para levá-la para baixo, até a área da lata de lixo? Custaria dinheiro pagar a alguém para descê-la, bem mais do que valia a pena.

Enquanto isso, se a poltrona era um problema, o sofá saía-se bem. Sempre que eu pedia às pessoas que o estofassem outra vez, ou que o mudassem de posição, elas exclamavam que ninguém fabricava móveis como aquele atualmente: tão sólido, tão resistente, com molas tão maravilhosas. Quando encomendei a troca das molas, o estofador disse que, quando eu quisesse vendê-lo, tinha de telefonar para ele, mas eu seria louca se quisesse vendê-lo, era um objeto muito valioso.

Agora, a poltrona. Seria possível passar cordas em volta dela e pendurá-la da varanda para a qual as janelas se abriam? E dali descê-la até o telhado? Mas o telhado era de ardósia, e aquele peso monstruoso tiraria as telhas do lugar, ou talvez até atravessasse o telhado. Adiei e protelei e continuei desviando da poltrona e subindo nela até que um dia finalmente descobri a solução. Eu serraria a velha poltrona em pedaços. Eu a desmembraria e depois embrulharia os pedaços em sacos de lixo que poderiam ser levados até a lixeira sem problema algum. Para atacar a poltrona, me paramentei com uma serra, tesouras afiadas e martelo de unha. Comecei arrancando o estofado marrom que eu tinha colocado: fácil. Havia usado tachas feitas para móveis e cola e costurado de qualquer jeito tudo junto nas costas, assim ninguém veria os pontos enormes. Debaixo, havia o estofado marrom de cotelê grosso que tivera em Devon e que servira de lar para cães e gatos de fazenda. Isso para não mencionar o carneiro.

Sob o cotelê marrom havia outro estofado: um azul florido, bem-ajustado, não um serviço amador como as duas primeiras camadas. Aquela camada azul tivera uma vida longa. Estava puída e desbotada. Em que ano estávamos agora? Quarenta anos, ela dissera. Não havia como saber — mas existiam pistas. Sob o azul havia um pano laranja com estampa “jazz”: era assim que este tipo de estampa era descrito nos anos trinta. Lembro-me das cortinas e almofadas anunciadas como “jazzísticas”, uma palavra que garantia arrojamento: “Deixe seus móveis vistosos com nossas novas estampas jazzísticas. Estão disponíveis em tons laranja, amarelo e verde, as cores da moda.” O material era linho “nodoso” — havia uma mancha na trama. Era nítido que o estofado fora obra de um profissional, assim como o anterior, que era de cetineta cinza, com franja e plissado, de florzinhas. O tecido era grosso e macio, não fora muito usado. O que eu encontraria debaixo dele? Foi difícil cortar essa camada, de tão bem-ajustada que era ao enchimento. Ainda não conseguia sentir a madeira da estrutura. Resolvi que iniciaria serrando o espaldar da poltrona. Parei atrás dela e comecei. Que burrice a minha achar que acabaria todo aquele processo em uma hora. A serra não passava pelos enchimentos grossos. Tentei a tesoura de novo, retirando camadas de material até chegar à madeira, furando vários centímetros. A madeira era lisa — tinha sido aplainada e lixada e meus dedos corriam por ela tranquilamente, mas não dava para entrar muito, pois o acolchoado tinha sido preso com aqueles pregos fininhos que parecem cravo.

Estava me saindo muito bem com aquela velha poltrona teimosa. Não restava dúvida de que faziam coisas sólidas naquela época — tanto empenho por uma poltrona que passaria pelo menos metade da vida servindo de cama para animais de fazenda. Finalmente consegui passar a serra pelas camadas densas até alcançar a madeira tampada por ela e fui adiante até que pude ver que já tinha terminado o encosto. Agora já me arrependia de ter começado, embora ainda não entendesse exatamente o que havia sob minhas mãos. Decidi serrar um dos braços, imaginando que pelo menos ele se desprenderia totalmente. A dificuldade era todo aquele enchimento. Consegui tirar uma parte, mas a última camada estava sob uma capa de calicô fino e eu não conseguia tirá-lo. Meu martelo de unha era desajeitado e grande demais para ter alguma utilidade.

Voltei ao centro do espaldar, que permanecia firme apesar de ter sido serrado ao meio. Comecei cortando chumaços das camadas de material, até chegar à cetineta cinza, e então eu vi — não, não era o calicô da última camada do enchimento, era algo pálido e brilhante, mas não com o brilho vistoso da cobertura de cetineta. Essa camada, que a poltrona tivera quando nova, era de seda em tom rosa claríssimo. E agora eu começava a desconfiar. Seda rosa! O que havia sido aquela poltrona, na época de juventude, antes de ter sido coberta e recoberta por materiais grosseiros e deselegantes, estranhos à sua verdadeira natureza?
Usei a tesoura sem piedade e pouco depois a delicadeza do encosto rosa da poltrona se revelou. Ali estava a poltrona, sob o meu teto no alto da casa, quase toda coberta com os trapos e tecidos de suas diversas camadas rasgadas e cortadas, mas a única coisa que eu era capaz de enxergar agora era a aparência que devia ter tido outrora, brilhando palidamente — e posicionada onde? Catei o material que já tinha conseguido arrancar, levei para a lixeira e voltei para contemplar minha bela poltrona, aquela poltrona outrora maravilhosa, agora ferida em dois lugares. Como ela começara a vida? Quando as pessoas tinham poltronas com estofado de seda rosa-claro na sala de visitas? Ou quiçá fosse uma poltrona de quarto, talvez ficasse junto à lareira em um ambiente cheio do tipo de mobília para a qual não sobra espaço hoje em dia, e tivesse presenciado o estilo de vida sobre o qual lemos ou vemos, digamos, em uma peça de Oscar Wilde. Ficara sobre carpetes grossos por onde se espalhavam tapetes aqui e ali, e... quiçá fosse uma poltrona de amamentação?

Não era tarde demais, ainda poderia ligar para o negociante. Mas a armação tinha ficado bastante comprometida, em dois lugares, e a seda estava rasgada e irregular. Seria fácil consertar a estrutura, mas nada poderia salvar aquela seda, e o ponto essencial da poltrona era a perfeição luzidia da seda. Era tarde demais para ligar para um negociante. Se ao menos eu tivesse removido os estofamentos antes de começar a serrar... Minha única opção era seguir em frente com meu ato de vandalismo e destruir aquela maravilha de poltrona.

Primeiro, o espaldar, e fui imediatamente afligida por uma questão: por que a seda era perfeita, como se tivesse acabado de chegar da loja? A seda não demora muito a ficar puída e a perder o brilho, mas naquela ali não havia sinais disso.

Sob a seda rosa havia um forro de linho puro, de tom creme, que me fez pensar no linho diáfano que os egípcios da Antiguidade vestiam. Era rígido e não se esticava, nem mesmo nas curvas. Debaixo dele havia o calicô leve, e depois o enchimento que consistia em três camadas: a de cima era fina, como uma lanugem, a outra era mais áspera, e a última era um acolchoado de algodão. Tirei tudo isso do espaldar da poltrona e descobri a madeira cor de chá ralo. As tiras largas que seguravam o enchimento no lugar eram de fitas brancas e duras que se cruzavam como no entrelaçamento de uma cesta, as pontas presas à madeira com pregos minúsculos, em várias fileiras, formando o padrão que contornava o encosto da poltrona. Meu martelo de unha não conseguia nem chegar perto daqueles pregos. Cada uma das camadas do enchimento tinha sido pregada a essa rede com enormes pontos corridos que também formavam um padrão de fileiras em V. Imaginei o artesão que tinha feito a poltrona se ajoelhando ao lado dela, em um banquinho, com sua agulha curva de aço, fazendo aquele padrão em V que ninguém jamais veria, dando marteladinhas naqueles preguinhos perfeitos... mas não era eu quem as via e pensava nele? Ele já estava morto havia muito tempo, mas suas fileiras de pregos ainda reluziam feito prata, e os fios da costura cintilavam à luz de minhas janelas grandes.

E agora os braços. Primeiro, desnudei o braço que eu já tinha cortado — um braço firme e liso, com cerca de trinta centímetros de extensão. O enchimento dele era denso e abundante. Os braços, assim como o encosto, tinham o mesmo estofamento de tecido semelhante a linho que encobria o calicô para manter o enchimento no lugar. A seda rosa que cobria os braços era tão bem-ajustada e costurada com pontos tão miúdos que mal dava para vê-los. Será que o homem que fez aqueles engenhosos pontos corridos também era o feitor desses pontos graciosos? A agulha que usou devia ser fina como um fio de cabelo e o fio da seda mais fino ainda. Mas chega: basta do estofado de seda, do enchimento e dos farrapos das camadas de suas várias encarnações. Ali estava a estrutura, com as costas recheadas de tecido, mas cortada, e os braços desnudos. Havia muito entulho para enfiar nos sacos e era doloroso ver os pedaços da bela seda rosa. No entanto, me lembrei da esposa do fazendeiro dizendo: “Mas se agarrar às coisas não serve de nada, não quando está na hora de colocá-las para fora.”

Agora, ao assento. Assim que levantei a almofada de seda, vi que ela tinha sido virada: a parte de baixo fora manchada por algo preto — uma mancha grande, que preenchia a superfície quase toda. Imaginei ainda poder sentir o cheiro de uma substância azeda e corrosiva, forte o bastante para queimar a seda, que na região da mancha descarnava e rasgava, feito papel queimado, e que nas bordas apodrecia. Algum tipo de remédio? Óleo de lamparina? 

Então, a gloriosa poltrona havia sofrido um acidente em seus primeiros anos de vida e era por isso que a seda nunca tinha puído ou perdido o brilho. Os donos da poltrona tinham virado a almofada por causa da mancha, mas depois decidiram — bem, o quê? Almofadas podem ser cobertas. Por que os donos não chamaram especialistas e encomendaram um estofado novo em folha? Deixo minha imaginação funcionar. Será que aconteceu algo ruim? Um divórcio? — pouco provável, naquela época. Morte? O lar tinha sido diluído? Foi alguma doença terrível? Alguém, envolto em lençóis, se sentara nessa poltrona para morrer? Associada a uma calamidade, a poltrona tivera de ser posta para fora? Quantas paradas a poltrona tinha feito nessa casa ou naquela outra antes de se tornar uma poltrona de fazenda em Devon e virar local de descanso de cães e gatos, e do carneiro?

Aquela poltrona havia sobrevivido à Primeira Guerra Mundial, digamos que em Londres, mas durante a Segunda Guerra Mundial ela estava em Devon, bem distante dos bombardeios. Por alguma razão, aquela mancha desgraçara a poltrona, que se viu deixada de lado — talvez até em uma loja de entulhos, onde foi adquirida por alguém que se encantou por seu pálido brilho sedoso, mas depois resolveu que a seda rosa era boa demais para ser verdade e mandou estofá-la com a luzidia cetineta cinza com estampa de florzinhas.
Desejei ter o endereço da fazendeira de Devon para poder lhe mandar uma carta contando o que eu tinha descoberto, mas já haviam se passado quase quarenta anos desde o leilão de Okehampton e naquela época ela já tinha a poltrona havia quarenta anos.

Pus a almofada indecorosa no saco de lixo e prossegui na empreitada da demolição. A almofada não se encaixava nas ripas de madeira ou em alguma espécie comum de base. Na verdade, havia uma camada frouxa de forro branco e sob ela uma treliça, e na treliça nove molas robustas, todas costuradas com um fio forte e alicerçadas em punhados de lã de carneiro para que não colidissem umas com as outras. Independente da força com que alguém se sentasse, não se ouviria nenhum som de molas se chocando ou rangendo.

Quanto tempo foi preciso para fazer essa poltrona? Imaginei um artesão maduro e seu aprendiz, ajoelhados lado a lado junto à estrutura da poltrona. Tinham aplainado e lixado a madeira e ao redor deles, no chão, em cima de jornais, estavam dispostos os pedaços já cortados de seda rosa. Uma caixa escorava os martelos, tenazes, tesouras e pregos. Caixas menores guardavam os minúsculos pregos prateados, os pregos que pareciam cravos miúdos, os carretéis de diversas espessuras de fio de seda rosa, algodão rosa, fio branco. O rapaz teria olhado para os pregos minúsculos, as agulhas, curvas e retas, e em seguida para as mãos grandes do mentor, segurando tais ferramentas com segurança, o enchimento, o forro; ele se perguntava, “Será que um dia essas minhas mãos desajeitadas vão ser capazes de...?” Esta cena, naqueles tempos de artesãos e aprendizes, devia acontecer todos os dias, em dezenas de lugares. E o mais velho devia dizer, “E só observar, você vai conseguir pegar o jeito, você vai ver.” 

Há muito tempo essa cena aconteceu, junto a essa poltrona, no mínimo um século atrás. A poltrona tinha um ar imponente, sereno, autoconfiante — mas não agressivo, não. Era espaçosa. Era feita para saias volumosas e pessoas corpulentas.

Outro saco plástico de entulho foi parar na lixeira.
Depois peguei a serra e pus mãos à obra.

Doris Lessing 

Sem comentários: