(Introdução à obra de Mário de Sá-Carneiro - A Confissão de Lúcio)
A
António Ponce de Leão
…assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo
bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro viveria…
Fernando Pessoa
Na Floresta do Alheamento
Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei
e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonho:
nada podendo já esperar e coisa alguma desejando - eu venho fazer enfim a minha
confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu
interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo. Não
tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo, quem esteve dez anos
preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta.
E àqueles que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: «
Mas por que não fez a sua confissão quando era tempo? Por que não demonstrou a
sua inocência ao tribunal?», a esses responderei: - A minha defesa era
impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por um
embusteiro ou por um doido… Demais, devo confessar, após os acontecimentos em
que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado que a prisão se me
afigurava uma coisa sorridente. Era o esquecimento, a tranquilidade, o sono.
Era um fim como qualquer outro - um termo para a minha vida devastada. Toda a
minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha
sentença.
De resto, o meu processo foi rápido. Oh! o caso parecia bem
claro… Eu nem negava nem confessava. Mas quem cala consente… E todas as
simpatias estavam do meu lado.
O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um «crime passional».
Cherchez la femme. Depois, a vítima um poeta - um artista. A mulher romantizara-se
desaparecendo. Eu era um herói, no fim de contas. E um herói com seus laivos de
mistério, o que mais me aureolava. Por tudo isso, independentemente do belo
discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes. E a minha
pena foi curta.
Ah! foi bem curta - sobretudo para mim… Esses dez anos
esvoaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter
acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido
o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas,
nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as
criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou -
apenas - os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho
instante. Os que o não vivem, têm a paz - pode ser. Entretanto, não sei. E a
verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes.
Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.
Mas ponhamos termos aos devaneios. Não estou escrevendo uma
novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E, para a clareza,
vou-me lançando em mau caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira
ser, a minha confissão resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais
perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um
pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como
o que tento explanar, a luz só pode nascer de uma grande soma de factos. E são
apenas fatos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões.
Por mim, declaro que nunca experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo
é que só digo a verdade. Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade -
mesmo quando ela é inverosímil.
A minha confissão é um mero documento.
Mário de Sá Carneiro
«A Confissão de Lúcio»
Mário de Sá-Carneiro
21- «A CONFISSÃO DE LÚCIO»
Ao Leitor:
Acabou de ler a introdução à obra de Mário de Sá Carneiro - A
Confissão de Lúcio. É um início estranho e misterioso. Propomos que
acompanhe a leitura orientada do primeiro capítulo que conta uma história
que pode ser importante para a compreensão do crime (?) que Lúcio não
cometeu.
(ou cometeu?)
CAPÍTULO I
«Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na
Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após
ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido -
sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital. Logo me embrenhei
por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal conhecia
de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade
essa de grande artista falido, ou antes, predestinado para a falência.»
(...) No dia seguinte - uma esplêndida tarde de inverno,
tépida, cheia de sol e céu azul -, tomando um fiacre, lá nos dirigimos ao
grande restaurante. Sentamo-nos; mandou-se vir chá… Dez minutos não tinham
decorrido, quando Gervásio me tocava no braço. Um grupo de oito pessoas entrava
no salão - três mulheres, cinco homens. Das mulheres, duas eram loiras,
pequeninas, de pele de rosas e leite; de corpos harmoniosos, sensuais - idênticas
a tantas inglesas adoráveis. Mas a outra, em verdade, era qualquer coisa de
sonhadoramente, de misteriosamente belo. Uma criatura alta, magra, de um rosto
esguio de pele dourada - e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado,
alucinante. A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio. Com
efeito, mal a vi, a minha impressão foi de medo - de um medo semelhante ao que
experimentamos em face do rosto de alguém que praticou uma acção enorme e
monstruosa.
Ela sentou-se sem ruído; mas logo, vendo-nos, correu estendendo as mãos para o
escultor:
- Meu caro, muito prazer em o encontrar… Falaram-me ontem muito bem de si… Um
seu compatriota… um poeta… M. de Loureiro, julgo…
Foi difícil adivinhar o apelido português entre a pronúncia mesclada.
- Ah… Não o sabia em Paris - murmurou Gervásio.
E para mim, depois de me haver apresentado à estrangeira:
- Você conhece? Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas…
Que nunca lhe falara, que apenas o conhecia de vista e, sobretudo, que admirava
intensamente a sua obra.
(...) a conversa deslizou, não sei como, para a
voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
- Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus
amigos, a voluptuosidade é uma arte - e, talvez, a mais bela de todas.
Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham
cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de
ânsia - não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago
calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de
bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar
esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém
pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem
em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah!
mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a
voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não altearia!… Tinha o fogo, a
luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas -
tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser
esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os
maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios
misteriosos das luzes, dos fogos multicolores - e que a vossa carne, então,
sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a
dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha
voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da
luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual - mas de
desejos espiritualizados de beleza - ao mergulhar as minhas pernas todas nuas
na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu
corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me,
não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e
artistas que presumam aparentar!
Depois da ceia, é o espectáculo - o meu Triunfo! Quis
condensar nele as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos,
aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada
em ouro!
Porém nada valeu em face da última visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em
jorros, do alto da cúpula - e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao
som de uma música pesada, rouca, longínqua - ela surgiu, a mulher fulva…
E começou dançando…
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente.
Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou
a seus pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde
conter um grito de assombro…
Quimérico e nu, o seu corpo subtilizado, erguia-se litúrgico entre mil
cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam
dourados - num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo
escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então, numa última
perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo
áureo - terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…
Vencedora, tudo foi lume sobre ela…
E, outra vez desvendada - esbraseada e feroz, saltava agora por entre
labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a
cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como
um meteoro - ruivo meteoro - ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas
esbatiam de azul cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada,
ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir,
possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao
seu redor…
… Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo
flutuou heráldico sobre as águas douradas - tranquilas, mortas também…
Mário de Sá Carneiro
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