«Famílias Desavindas»
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29- «FAMÍLIAS DESAVINDAS»
Por uma dessas alongadas ruas do
Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há-de encontrar-se um cruzamento alto,
de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina telhados
de ardósia em escama. Faltam razões
para flanar por esta rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um
insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos
a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início
dos anos setenta.
No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier,
jovem engenheiro francês, fracassou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um
autarca do Porto de que inventara um semáforo moderno, operado a energia
eléctrica, capaz de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois
e landós da sociedade. A autoridade
gostou do projecto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia.
Os semáforos estiveram ensejados para a Ponte, mas, de proposta em proposta
(sempre se tratava de uma implantação experimental), acabaram na infrequentada
Rua Fernão Penteado, na intersecção com a travessa de João Roiz Castelo Branco.
O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade,
luminoso. Um homem pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por
suportes de ferro. A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia
gerada vai acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista. Durante a
Primeira Guerra foi introduzida uma melhoria. Uma inspecção da Câmara concluiu
que a roda da frente era destituída de utilidade. Foi retirada.
Houve muitos candidatos ao cargo de samaforeiro, embora um equívoco tivesse
levado à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A
realidade corrigiu o dislate porque acabou por ser escolhido um galego chamado
Ramon, que era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha
pedalado na vida. Mas Ramon era esforçado, cheio de boa vontade. A escolha
foi acertada.
Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da segunda Grande Guerra foi
substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo
neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a
pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo
ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas
da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a
afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se
quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável,
sugerindo que o carreto bastasse.
Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes
semáforos manuais, porque é sempre possível personalizar a relação com o sinal.
Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e o Paco, se estiver
bem-disposto, comuta, facilita.
Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem
sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes
da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai
de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa fama mas transbordava de
espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar os transeuntes: «Está
doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí que eu trato-o.» E
nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava.
Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo
atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.»
Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por
diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E
eis duas famílias desavindas. Felizmente,
nunca coincidiram descendentes casadoiros.
Piora sempre os resultados.
Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o
seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas fazia
questão de orientar os pacientes para um colega que desse uma segunda opinião.
Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido.
Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico passava e
rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem
parar de dar ao pedal: «Xó, magarefe!» Uma
tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo.
Este Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as
queixas dos doentes, com impaciência, e depois impunha silêncio e começava: «As
doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No primeiro caso, chamam-se
viróticas, no segundo, bacterianas.» E estava horas nisto, até o doente
adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele praticava a terapia do sono.
Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir explicar. Alguns até faziam
perguntas. Após a consulta, muito à puridade, o Dr. Paulo pedia aos clientes
que passassem pelo homem do semáforo e lhe dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi assim com
Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco.
Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa-de-ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!» com que insultaria
o semaforeiro, quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um roubo por esticão
um jovem que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco
e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos,
não quis saber de mais nada e dobrou-se para o sinistrado:
«Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três espécies de
instrumentos: contundentes, cortantes, ou
perfurantes.»
Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor
tivesse entrado no capítulo das «manchas de sangue».
Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou
abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do nascer
ao pôr do Sol, a accionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à exaustão.
É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer penitenciar-se,
ser útil, enquanto o Paco não regressa.
Mário de Carvalho
Mário de Carvalho
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