«O Retrato»
Conto de Manuel da Fonseca
101- «O RETRATO»
Certa manhã, meu pai ordenou-me inesperadamente:
- Diz a tua mãe que te vista o fato novo para ires tirar o retrato.
Admirei-me:
- Mas hoje não é dia dos meus anos...
- Pois não. Mas lá em Beja precisam de dois retratos teus. É para te
identificarem.
- Identificarem?
- Sim. Para saberem que és tu e não outro.
- Não percebo - recomecei, desconfiado.
- Como podem eles supor que vai outro em meu lugar?
Daqui por diante, a conversa complicou-se de tal modo que meu pai perdeu a
serenidade; gritou-me:
- Faz o que te digo, rapaz!
Fiz. Nada mais havia a replicar quando meu pai me chamava rapaz. Era uma regra
que, à custa de alguns sopapos, eu acabara por introduzir nas nossas relações.
Respeitando a regra, fui, pois, a minha mãe, que me vestiu de ponto em branco.
Daí a pouco, com grande escândalo dos meus amigos, passei pelo largo, a caminho
de casa do Sr. Rodrigo. Passei vestido «à mamã», expressão que entre nós
designava, não apenas o fato, mas certos rapazitos, medrosos e tímidos, quase
sempre vestidos daquele modo e que, por isso, achávamos que não sabiam brincar
nem prestavam para nada. A peça de roupa que mais caracterizava um «mamã» era o
colarinho gomado aberto sobre o casaco e tapando-o até aos ombros. E eu, tido e
respeitado como um rapaz às direitas, lá ia de enorme colarinho de goma, ao
fado de meu pai.
Nem olhava para ninguém.
E, ainda hoje, após tantos anos, sinto vergonha. Não já pela gola, mas pelo
rosto de estarrecido espanto com que fiquei no retrato.
As coisas são como são - não temos que nos queixar. A horrível fotografia aí
está na primeira folha da minha caderneta de aluno do liceu. Sempre é um
documento que gostamos de mostrar às pessoas conhecidas, e eu estou impedido de
fazê-lo. Não quero que vejam aquela cara. Principalmente depois que, por um
acaso infeliz, Delinha, a rapariga que eu amo, a folheou: - Como tu eras...! -
exclamou ela, surpreendida.
Ora esta impressão a meu respeito não corresponde à verdade. A culpa de tudo
foi de eu ter crescido muito, de ter ido a Beja fazer exame e de o Sr. Rodrigo,
o fotógrafo, viver uma vida de loucos sobressaltos. Foi isso e mais nada. Daí o
espanto que ficou na minha fotografia tirada no momento preciso em que se desencadeou
qualquer coisa como um terramoto, e a mim me pareceu que tudo se ia modificar
na face da Terra.
De facto, as coisas modificaram-se; depois que entrei para o liceu, o mundo
deixou de ser o que era. Tornou-se imenso e agreste. E, como agora já não posso
reviver os doces dias da infância, aborrece-me a desolada expressão com que a
abandonei. Mas basta olhar o retrato para ver quanto é triste deixar de ser
criança.
Fui, pois, fazer exame a Beja. Ao terminar, todos acharam que sim, que ficara
bem. A professora disse:
- Apenas erraste duas coisas. Mas não deve ter importância...
Meu pai, que me acompanhou, foi da opinião que eu podia ter respondido certo.
Repetiu as perguntas e eu respondi certo.
- Ora vês como sabias? Hum... acho que te não vão reprovar por isso... Estava
pois assente que eu ficara bem. Mas só quando daí a um imenso quarto de hora
afixaram os resultados, desapareceu de vez aquele retraimento que pesava sobre
nós. A professora beijou-me exclamando:
- Eu não disse! Pois claro que foi um belo exame! Só tiveste um defeito:
falaste demasiado, nunca te calavas. Olha que quem muito fala... Mas, enfim, já
podes entrar para o liceu.
Meu pai passava-me os dedos pelo cabelo. Pusera-se muito sério e pálido. Só
então vi quanto era profunda a sua alegria; tive vontade de chorar.
Subitamente, ele, erguendo a mão, disse:
Vou mandar um telegrama!
E correu para a estação.
Ao ver-me rodeado de caras risonhas, os dias anteriores, tão enervantes e
difíceis, perderam o sentido. Da minha memória desapareceram as regras da
Gramática, os problemas, os rios, as linhas dos comboios e as grandes figuras
históricas. E as guerras, com datas e heróis, decorados um a um, sumiram-se-me
da cabeça. Senti-me límpido e feliz, de novo criança. A vida era bela, e diante
de mim abriam-se caminhos radiosos: ia voltar a ser um pequeno rei na minha
vila.
Como estava bem longe de pensar que, meses depois, uma grande tristeza me
assombraria!
Saímos de Beja na manha seguinte. Estrada fora, olhando através da janela do
carro para a imensidão dos plainos, reparei que o mundo era bem maior do que eu
imaginava. E a Geografia, que tanto trabalho me dera a decorar, começou a ter
para mim um certo jeito de coisa, afinal, verdadeira. «Talvez que a Terra seja
redonda, e tão grande como o livro diz», pensei eu, resignado.
Quando chegámos, minha mãe chorou; a avó comoveu-se um pouco. Depois, apesar de
os dias correrem, todos os meus falavam ainda do exame e de Beja. Mas falavam
de tal modo que, por fim, me pareceu que era meu pai, minha mãe e a avó que iam
para o liceu cursar o primeiro ano. Cá por mim só pensava no jogo da bola e nas
correrias pelo largo.
Veio pois aquela manhã, quase no fim do Verão, em que meu pai me levou a casa
do Sr. Rodrigo. Até aí, eu só tirara retratos no dia do meu aniversário. Meu
pai escrevia a data na parte de trás; dava um à avó, outro aos meus padrinhos,
e guardava os restantes. Às vezes, o Fotógrafo, pintura de Hipólito Clemente
mostrava-os às visitas. Eram todos eu, desde a idade dos cueiros até ao
horrível colarinho de goma, tirado no ano anterior. Em nenhum havia nada de
especial: apenas a cara que eu tinha quando os tirei.
Agora, ia para Beja, para longe da família; meu pai já me tinha dito várias
vezes que a minha vida ia levar uma grande volta, que estava um homenzinho e
tinha de proceder de outro modo: passar a ter juízo.
Ter juízo! Naquele mesmo instante, rua fora, me ia repetindo tais palavras.
Claro que eu não caminhava com o à-vontade do costume; o fato vincado e a gola
dura em volta do pescoço faziam-me caminhar contrafeito. Tinha de conservar o
tronco hirto, de modo a adaptar o corpo à solenidade do vestuário.
- Pai... - murmurei eu - lá em Beja tenho de andar sempre assim?
- Pois claro que tens!
Pensei ainda repetir a pergunta de modo a saber se, além de andar daquela
maneira, teria que vestir sempre aquele fato. Mas achei inútil. Pois não ia eu
para o liceu, não ia eu tirar o retrato para que gente estranha visse bem se
era eu ou não o tal que já era um homenzinho e estava em Beja, distante de tudo
que me era querido, e cheio de juízo?
Entrei com graves suspeitas em casa do fotógrafo.
Na verdade, o Sr. Rodrigo ia tirar o retrato ao fim da minha infância. Era como
se alguma parte de mim morresse e a fotografia viesse a ser o meu rosto nesse
momento de morte. Tudo isto, mais o que depois aconteceu, foi a origem daquela
expressão que tanto alarmou Delinha. Felizmente que há coisas que se podem
remediar; e eu creio ter apagado já da memória da minha noiva a desgraçada
imagem dos meus últimos dias de menino.
O Sr. Rodrigo recebeu-me com cara de poucos amigos, que era a que tinha para
quem quer que fosse. Alto e magro, de bigode com as pontas reviradas para cima,
os olhos abriam-se-lhe desmesuradamente por detrás dos óculos de aros de ouro,
e o rosto, envelhecido, parecia sempre carregado de espanto e de ira contra
tudo que via à sua volta. Falava aos gritos, abrindo ainda mais, se é possível,
os olhos negros e redondos.
Tinha chegado à vila, havia muitos anos, com uma máquina fotográfica às costas.
Ia a casamentos, a baptizados e às feiras. Um dia, tais manobras fez em volta
da máquina e por debaixo do enorme pano preto ao fotografar, de corpo inteiro,
a família do lavrador da Chancuda, que a filha deste, a quem chamavam a
Chancudinha, e era tímida, ficou apaixonada. Casaram. E, quando o Sr. Rodrigo
já estava habituado a viver dos rendimentos do sogro, o lavrador e a filha
enlouqueceram quase ao mesmo tempo. Foi a avarenta da sogra quem passou a mandar
em tudo. E que mão de ferro ela tinha!
Desde aí a vida do Sr. Rodrigo transformou-se num inferno. Pai e filha levavam
o tempo a fazer tropelias. Partiam loiça, móveis; corriam pela casa, atirando
cadeiras ao chão. Só depois de muito cansados se aquietavam.
Então, adquiriam a expressão, entre medrosa e inocente, de duas pobres crianças
que apenas haviam andado a divertir-se um pouco. Mas quando o Sr. Rodrigo
julgava que ia passar o resto do dia em sossego, recomeçavam as correrias, os
desatinos. Muita vez vi o lavrador da Chancuda, de grandes suíças brancas, a
cantar alegremente, à janela:
- Ó Rodrigo, com quem dormes tu?
Depois, a filha aparecia na varanda e, imitando a voz do marido, acabava o
verso. E riam com tanto gosto, na cara do Sr. Rodrigo, que nem pareciam doidos.
Também a vila achava imensa graça àquela cantiga. O Sr. Rodrigo, esse,
esfalfava-se, correndo o dia inteiro atrás da mulher e do sogro, a fechar
portas e janelas. De vergonha, quase que não saía à rua.
Insensível a tudo, a sogra recebia os feitores, dava-lhes ordens, e arrecadava
os dinheiros a sete chaves.
Teve de voltar, desalentado, à antiga profissão, o fotógrafo. E lá ia
esperando. Mas os anos corriam, a mulher e o sogro estragavam-lhe os dias, e a
sogra parecia cada vez mais fresca e cheia de saúde. Tais factos, por certo,
influíam na maneira como o Sr. Rodrigo encarava o mundo.
Posto isto, reparem que estou sentado na cadeira fatídica, diante da complicada
máquina cujo fole foi esticado ao máximo, como de propósito para não perder nada
da minha atrapalhação. E pois este homem, que espera com raiva a morte da
mulher, do sogro e da sogra, principalmente da sogra, quem vai, sem se
aperceber, fotografar a morte da minha infância.
Ponho-me quieto, não há que fugir, e componho uma expressão de circunstância.
Assim uma cara de acordo com aquela seriedade que meu pai exige de mim, lá em
Beja. De resto, a goma endurecida da gola facilita muito esta atitude; um ar
formalizado, rígido; boca séria, olhos graves. Até o cabelo, sempre revolto, está
cuidadosamente penteado.
Sou, pois, uma criança cheia de infinita amargura, especada e sem jeito, diante
do olho redondo e sinistro que me vai matar.
Ferozmente, o Sr. Rodrigo analisa-me. Acima de tudo, ele é um artista que não
consente que qualquer fedelho o deixe mal colocado.
Quase nem respiro.
O Sr. Rodrigo avança, torce-me a cabeça com dureza, puxa-me o queixo,
empurra-me a testa para trás. Recua e ordena-me brutalmente:
- Sorria com naturalidade!
Sucumbi num esgar contrafeito de choro. Mas o Sr. Rodrigo exclamou:
- Exactamente! Quieto! Olhe para aqui! Revirei os olhos, numa agonia.
-Um...! Dois...! Três!
Nesse momento, tive a impressão que a casa desabava: o estuque caiu do tecto,
numa chuva branca; um ruído enorme abanou as paredes - oscilei na cadeira, como
se fosse cair para sempre. Ouvia-se uma correria desordenada, gritos, patadas
contra o soalho, risos dementes.
-Já está! - berrou num nervosismo feroz o Sr. Rodrigo, avançando para mim.
Pulei da cadeira, e saí dali tão desnorteado que mal ouvi meu pai desculpar os
«pobres de Deus», como ele chamou à mulher e ao sogro do fotógrafo.
Por muito tempo, andei sorumbático, alheado. Ao chegar a hora da partida, senti
que me afastavam de tudo quanto amava. Já longe, no alto das Cumeadas,
voltei-me para as casas, para o largo, para as estradas em volta da vila. Os
olhos arrasaram-se-me de lágrimas, e chorei longamente.
Chorei como se nunca
mais voltasse.
Depois, quando dei por mim, estava em Beja, sozinho, estranho no meio daquela
gente, e os professores gabavam-me o juízo e a aplicação ao estudo. Foi uma
alegria para meus pais. Dela não comparticipei, pois não podia esquecer os meus
amigos de infância, livres e felizes, lá no largo!
Manuel da Fonseca
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