«Sermão de Quarta-Feira de Cinzas»
99- «SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS»
“Quando considero na vida que se usa, acho que não vivemos
como mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque
tratamos das coisas desta vida como se esta vida fora eterna. Não vivemos como
imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal
vida.
Ora, senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que
havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da
imortalidade. Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode
haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega que empregar-me todo
na vida que há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre?
Cansar-me, afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei-de deixar, e do que
hei-de lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso! Tantas diligências
para esta vida, nenhuma diligência para a outra vida? Tanto medo, tanto receio
da morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes
vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos quando
entrastes e saístes pelas portas da morte? A morte tem duas portas: Qui
exaltas me de portis mortis. Uma porta de vidro, por onde se sai da vida, outra
porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se
acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem
parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre.
Oh! que transe tão apertado! Oh! que passo tão estreito! Oh! que momento tão
terrível!
Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a
mais terrível é a morte. Disse bem mas não entendeu o que disse. Não é terrível
a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a
porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para
cima, uma escada que chega até o céu; se olhais para baixo, um precipício que
vai parar no inferno, e isto incerto. (…)
(…) Cristãos e senhores meus, por misericórdia de Deus ainda
estamos em tempo. É certo que todos caminhamos para aquele passo, é infalível
que todos havemos de chegar, e todos nos havemos de ver naquele terrível
momento, e pode ser que muito cedo. Julgue cada um de nós, se será melhor
arrepender-se agora, ou deixar o arrependimento para quando não tenha lugar,
nem seja arrependimento. Deus nos avisa, Deus nos dá estas vozes; não deixemos
passar esta inspiração, que não sabemos se será a última. Se então havemos de
desejar em vão começar outra vida, comecemo-la agora: Dixi: nunc caepi.
(…)
(…) Comecemos de hoje em diante a viver como
quereremos ter vivido na hora da morte. Vive assim como quiseras ter vivido
quando morras. Oh! que consolação tão grande será então a nossa, se o fizermos
assim! (…)
(…) De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não
dará uma hora à triste alma?
Padre António Vieira
(Excertos do “Sermão de Quarta-Feira de Cinzas”)
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