«Pão Nosso de Cada Dia»
107- «PÃO NOSSO DE CADA DIA»
Viviam juntas mãe e filha. Uma encantava pela modéstia;
outra irritava pela toleima – apesar de ser bonita. Certa noite, a mãe, não
podendo adormecer, preocupada a pensar no destino de sua filha, ajoelhou-se e
pediu a Deus que modificasse o feitio de Sília, fazendo-a bondosa e discreta.
Na manhã seguinte, perguntou-lhe:
— Que sonho era aquele, filha, quando esta noite cantavas?
— Ai, sonhava, minha mãe, que um senhor descia de uma
carruagem de cobre e me oferecia um anel com uma jóia tão preciosa e brilhante
que não haverá no céu estrela de maior brilho.
— Foi um sonho de vaidade! — responde a mãe.
E nisto batem à porta. Sília corre e vai abrir: entra um
rico lavrador. Oferece-lhe terras de lavoura, montados, hortas, pomares, uma
infinita riqueza!
— Mesmo que viesses em carro de cobre e me desses uma jóia
mais fulgurante e mais bela do que uma estrela do céu, não casaria contigo.
O lavrador, desiludido, foi-se embora, e, nessa noite, Sília
voltou a sonhar.
— Com quem estás tu a sonhar? — perguntou a mãe,
acordando-a.
— Ai, sonhava, minha mãe, que um senhor descia de uma
carruagem de prata e punha nos meus cabelos valiosíssimo diadema de oiro!
— Que pecado, minha filha! Vai rezar para abrandar esse teu
grande egoísmo!
Na tarde do dia seguinte, um moço esbelto, sadio, apareceu a
oferecer-lhe a sua vida, a sua fortuna, o seu amor.
— Nem que viesses em carro de prata e pusesses nos meus
cabelos formosíssimo diadema de oiro eu casaria contigo!
E o moço partiu tristemente.
— O teu orgulho há-de perder-te! — dizia a mãe para a
filha.
Outra noite, Sília voltou aos seus sonhos de perdição e, ao
ser interrogada pela mãe, contentíssima, exclamou:
— Ai, sonhava que um fidalgo descia de um carro de oiro e,
pedindo-me em casamento, oferecia-me um vestido de rubis e diamantes.
— Não te emendas, minha filha, mas hás-de pagar bem caro
essa fome de grandezas.
Momentos depois, três carros paravam à porta onde residiam
ambas. Um de bronze, outro de platina e outro de cristal. O primeiro puxado a
doze cavalos; o segundo, a vinte cavalos; e o terceiro, a quarenta! Dos carros
de bronze e platina desceram pajens vestidos de seda verde e azul. Do carro de
cristal saiu um lindo rapaz coberto de pedraria. Entrou em casa de Sília e, de
joelhos e humilde, beijou-lhe as mãos num sorriso.
— Finalmente, sou feliz! O meu sonho transformou-se na mais
bela realidade.
E, orgulhosa, foi vestir o vestido de noivado. Partiram para
a Igreja. Os cavalos galopavam num frémito de alegria.
— Vou dar a minha mulher os meus presentes! — dizia ele ao
regressar, e entrando na sala suave do seu palácio de turquesa:
— Tudo isto é para ti.
Sília sorriu e a sorrir foi-lhe dizendo:
— Sabes que já tenho fome?
— Ponham a mesa e sirvam-nos o banquete! — gritou
ele aos seus vassalos.
Saladas de topázio, assados de ametistas e doce de pérolas;
todos comiam e repetiam. Só ela não podia comer. A medo pediu um bocadinho de
pão.
— É a única coisa que não te posso dar! — respondeu ele.
E desatou às gargalhadas, gargalhadas metálicas, cantantes,
porque o seu coração também era de metal.
Ela chorou!
— Chorar para quê? Não desejavas tudo isto? Não tens agora o
que sempre ambicionaste?
Rodeada de riquezas, saía do palácio, à noite, e andava de
porta em porta disfarçada e muito triste, a pedir cheia de fome um bocadinho de
pão.
António Botto
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