«A Instrumentalina»
Conto de Lídia Jorge
106- «A INSTRUMENTALINA»
«Quem diria? Escondida no saco das reservas proibidas, havia
anos e anos que não a soltava do seu lugar de abrigo, ainda que por vezes o seu
selim, a sua roda pedaleira, ou a imagem caprina do seu retorcido guiador me
aparecessem como coisas desgarradas. Era inevitável. Quem uma vez percorreu os
caminhos do paraíso num transporte de delícia, jamais pode esquecer a imagem do
objecto condutor.
[…]
Ora a Instrumentalina se me tinha levado até ao campo das
margaridas, no dia em que meu tio Fernando me havia chamado Greta Garbo, ela
mesma me tinha traído e amarrotado, e criado o meu primeiro desgosto. No
entanto, passados tantos anos, reunida, como se pudesse ter-se mantido
unificada pelo tempo, visitava-me rodando sobre o gelo como antigamente, nos
campos de calor e de poeira.»
[...]
Com as mãos agarradas à cintura dele, tombando para a
direita e para a esquerda como sobre um cavalinho que voasse, corríamos e
corríamos sem parar. Correndo, sentia as pernas do meu tio girarem, e a sua
camisa encher de ar, à medida que corríamos. E a terra a mover-se e a passar.
Mas até onde correríamos nós? Acaso poderíamos correr indefinidamente assim? Se
não, porque não?”
«O meu tio retirou a máquina fotográfica do seu estojo, fez
experiências contra o sol, fechou os olhos, tapou os olhos com a pala do boné,
andou às arrecuas, para os lados, ajoelhou, e depois finalmente, mandou-me que
o olhasse.
“Mas antes colhe um ramo de margaridas!”
Colhi-as, fiz um ramo, olhei para ele contra o sol, de lado,
sentada no meio das flores, de perto, de longe, com e sem chapéu, e quando
cheia de soberba por me sentir rainha, olhei de três quartos, com a boca unida,
cheia de silêncio, meu tio gritou.
“Isso, isso, não te mexas, Greta Garbo!”
E depois, meu tio, que só tinha doze chapas, disparou as seis
que lhe restavam.»
«Era de facto madrugada. O comboio apareceu com o seu olho
grande, fazendo estremecer a linha da estação. O tio levava uma pequena mala e
deu um abraço demorado ao seu amigo. Depois elevou-me nos seus braços de rapaz
e apertou-me de encontro ao peito, durante um instante. Passou a mão pelos meus
pés descalços. “Volto logo, miúda. Vou e volto. Logo, logo.”
Mas seria mentira, absoluta mentira o que o meu tio dizia.
O antigo dono da Instrumentalina tinha subido os três
degraus do comboio, havia entrado, e depois, acenando, acenando sempre,
desaparecera no perfil da carruagem. Assim desaparecera.»
«Era a hora exacta, marcada no final das duas linhas
deixadas por ele no cacifo, e a sala estava cheia de gente loira como palha,
derretendo ao calor da lareira, a alegria contida pelo gelo. Uma coisa fria
como se o meu coração se dirigisse não para um homem mas para um lago,
empurrava-me a vista na direcção do bengaleiro. Preparava-me para um encontro
singular como nunca havia imaginado ser possível. Ele ali estava. Devagar, um
cavalheiro de meia idade atrás do vidro transparente retirava o seu abafo,
dobrava-o, entregava-o com as luvas, e abrindo a porta, como quem acaba de
correr numa bicicleta, poisava o seu olhar mediterrânico na minha mesa.
“Cresceste, miúda, cresceste. Mas a tua cara é ainda a
mesma…”
Conseguiu por fim o tio dizer, duma só vez.»
Lídia Jorge
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