«A Pechincha»
Ilustração de António Modesto
247- «A PECHINCHA
Várias coisas no marido irritavam a sra. Chase. Por exemplo,
a voz: ele sempre falava como se estivesse apostando num jogo de póquer. Ouvir
aquela fala arrastada e indiferente era exasperador, sobretudo agora, que,
conversando com ele por telefone, ela própria falava de forma estridente de
tanta empolgação. "Claro que eu já tenho um, sei disso. Mas você não
entende, querido — é uma pechincha", explicou, enfatizando a última
palavra, depois fazendo uma pausa para deixar a magia dela crescer. Só ouviu
silêncio. "Puxa, você podia dizer alguma coisa. Não, não estou numa loja,
estou em casa. Alice Severn vem para o almoço. É sobre o casaco de Alice que
estou tentando lhe falar. Você deve se lembrar dela." A memória esburacada
do marido era outra fonte de irritação, e, embora ela lhe lembrasse que lá em
Greenwich Village eles tinham visto com frequência Arthur e Alice Severn,
chegaram até a receber o casal em sua casa, ele fingiu não conhecer aquele
nome. "Não importa", ela suspirou. "Só vou dar uma olhada no
casaco. Tenha um bom almoço, querido."
Mais tarde, ao se aborrecer com as ondas precisas de seu cabelo retocado, a
sra. Chase admitiu que realmente não havia motivo para o marido se lembrar dos
Severn com tanta clareza. Deu-se conta disso quando, com sucesso parcial,
tentou evocar uma imagem de Alice Severn. Pois bem, quase conseguiu: uma mulher
rosada e desengonçada, com menos de trinta anos, que sempre dirigia uma
caminhonete, acompanhada por um setter irlandês e por duas bonitas crianças de
cabelos louros avermelhados. Dizia-se que o marido dela bebia; ou seria o
contrário? Além disso, eles eram considerados maus pagadores, ao menos a sra.
Chase lembrou de certa vez ter ouvido falar de dívidas incríveis, e alguém,
teria sido ela própria?, descrevera Alice Severn como simplesmente boémia
demais.
Antes de se mudarem para a cidade, os Chase mantiveram uma casa em Greenwich
Village, que era um tédio para a sra. Chase, porque ela detestava os sinais de
natureza dali e preferia o divertimento das vitrines de Nova York. Em Greenwich
Village, em algum coquetel, na estação de trem, vez por outra encontravam os
Severn, e não passou disso. Nem éramos amigos, ela concluiu, um tanto surpresa.
Como costuma acontecer quando de súbito se ouve falar de uma pessoa do passado,
e alguém conhecido num contexto diferente, ela fora induzida a uma sensação de
intimidade. Mas, pensando melhor, parecia extraordinário que Alice Severn, a
quem ela não via fazia mais de um ano, tivesse telefonado oferecendo à venda um
casaco de vison.
A sra. Chase parou na cozinha a fim de pedir sopa e salada para o almoço:
jamais lhe ocorria que nem todo mundo estava de dieta. Encheu um decantador de
xerez e o levou consigo até a sala de estar. Uma sala verde-esmeralda, o mesmo
gosto excessivamente juvenil das roupas dela. O vento fustigava as janelas,
pois o apartamento ficava num andar alto, com uma vista de avião do centro de
Manhattan. Colocou um disco do Linguaphone na vitrola e sentou-se em posição
não relaxada, ouvindo a voz forçada pronunciar frases francesas. Em abril, os
Chase planejavam comemorar o vigésimo aniversário de casamento com uma viagem a
Paris; por essa razão, ela começara as aulas do Linguaphone, e, por essa razão
também, cogitou no casaco de Alice Severn: seria mais prático, achou, viajar
com um vison de segunda mão; mais tarde, poderia mandar transformá-lo numa
estola.
Alice Severn chegou alguns minutos mais cedo, uma casualidade decerto, pois não
era uma pessoa ansiosa, pelo menos a julgar por seus modos contidos e
cautelosos. Usava sapatos comuns, um casaco de tweed que já vira dias melhores,
e carregava uma caixa amarrada com um barbante puído.
"Fiquei encantada quando você telefonou esta manhã. Deus sabe, faz um
tempão que não nos vemos, mas, claro, não vamos mais a Greenwich Village."
Embora sorrindo, sua visita permaneceu calada, e a sra. Chase, que assumira um
tom efusivo, ficou um tanto sem graça. Quando as duas sentaram, os olhos dela
apreenderam a mulher mais jovem, e ocorreu-lhe que, se tivessem se encontrado
por acaso, poderia não tê-la reconhecido, não porque sua aparência tivesse se
alterado tanto, mas porque a sra. Chase se deu conta de que nunca antes olhara
atentamente para ela, o que parecia estranho, pois Alice Severn era alguém que
chamava a atenção. Se fosse menos comprida, mais compacta, as pessoas poderiam
ignorá-la, talvez reparando que era atraente. Mas, do jeito que era, com seus
cabelos vermelhos, a impressão de distância nos olhos, o rosto sardento,
outonal, e as mãos magras e fortes, havia nela certa peculiaridade difícil de
ignorar.
"Xerez?"
Alice Severn assentiu com a cabeça, que, equilibrada precariamente sobre o
pescoço fino, parecia um crisântemo pesado demais para seu talo.
"Cream-cracker?", ofereceu a sra. Chase, observando que alguém tão
esguio e alongado devia comer feito um cavalo. Sua frugalidade de sopa e salada
despertou-lhe um súbito receio, e ela contou a seguinte mentira: "Não sei
o que Martha está preparando para o almoço. Sabe como é difícil, em cima da
hora. Mas conte, querida, o que está acontecendo em Greenwich Village?".
"Em Greenwich Village?", ela disse, entrecerrando as pálpebras, como
se uma luz inesperada refulgisse na sala. "Não tenho a menor ideia. Não
moramos mais lá faz algum tempo, seis meses ou mais."
"Oh?", fez a sra. Chase. "Veja como estou desactualizada. Mas
onde você está morando, querida?"
Alice Severn ergueu uma das mãos ossudas e desajeitadas e apontou para a
janela. "Lá fora", respondeu, de forma estranha. Sua voz era clara,
mas tinha um tom de esgotamento, como se ela estivesse pegando um resfriado.
"Quer dizer, no centro. Não gostamos muito, sobretudo Fred."
Com a mínima inflexão, a sra. Chase perguntou: "Fred?", pois lembrava
perfeitamente que Arthur era o nome do marido da visita.
"Sim, Fred, meu cachorro, um setter irlandês, você deve tê-lo visto. Está
acostumado com espaço, e o apartamento é tão pequeno, só um quarto."
Dias difíceis deviam ter sobrevindo para que todos os Severn estivessem morando
num único quarto. Por mais curiosa que fosse, a sra. Chase se controlou e não
indagou a respeito do assunto. Provou seu xerez e disse: "Claro que me
lembro do seu cachorro; e das crianças: todas as três cabecinhas vermelhas
espiando pela janela da caminhonete".
"As crianças não têm cabelos vermelhos. São louras, como Arthur."
A correcção, com tão pouco senso de humor, provocou na sra. Chase uma risadinha
intrigada. "E Arthur, como vai?", perguntou ela, preparando-se para
se levantar e conduzir a visita até o almoço. Mas a resposta levou-a a
sentar-se de novo. Sem mudança alguma na expressão placidamente desornada de
Alice Severn, consistiu apenas em: "Mais gordo".
"Mais gordo", ela repetiu após um momento. "A última vez que o
vi, acho que só uma semana atrás, estava atravessando uma rua feito um pato. Se
ele tivesse me visto, eu teria de rir: ele sempre foi tão preocupado com a
aparência."
A sra. Chase pôs as mãos na cintura. ''Você e Arthur. Separados? É simplesmente
incrível."
"Nós não estamos separados." Ela esfregou as mãos no ar como que para
remover teias de aranha. "Eu o conheço desde criança, desde que nós dois
éramos crianças: você acha", disse tranqüilamente, "que poderíamos
algum dia estar separados um do outro, sra. Chase?"
O uso exato de seu nome pareceu afastar a sra. Chase; por um momento, ela se sentiu
isolada, e, ao caminharem juntas até a sala de jantar, imaginou uma hostilidade
circulando entre elas. Possivelmente foi a visão das mãos desajeitadas de Alice
Severn tentando abrir um guardanapo que a persuadiu de que aquilo não era
verdade. Excepto por algumas palavras corteses, elas comeram em silêncio, e ela
começava a temer que não haveria nenhuma história.
Enfim Alice Severn disse abruptamente: "Na verdade, nos divorciamos em
agosto passado".
A sra. Chase esperou; depois, entre a descida e a subida de sua colher de sopa,
disse: "Que horrível. Por causa da bebedeira dele?".
"Arthur nunca bebeu", ela respondeu com um sorriso agradável mas
espantado. "Ou melhor, nós dois bebíamos. Por prazer, não por vício. Era
gostoso no verão. Costumávamos descer até o riacho, colher hortelã e preparar
um coquetel de uísque com hortelã em enormes potes de frutas. Às vezes, nas
noites quentes em que não conseguíamos dormir, enchíamos de cerveja gelada as
garrafas térmicas e acordávamos as crianças, depois íamos de carro até a praia;
é divertido beber cerveja e nadar e dormir na areia. Bons tempos; lembro que
uma vez ficamos lá até o sol raiar. Não", disse, alguma idéia séria
retesando sua face. "eu vou lhe contar. Sou quase uma cabeça mais alta que
Arthur, e acho que isso o preocupava. Quando éramos crianças, ele sempre achou
que me ultrapassaria, mas isso nunca aconteceu. Ele detestava dançar comigo, e
olha que ele adora dançar. E gostava de um monte de gente ao redor, gente
baixinha de voz alta. Não sou assim, preferia que ficássemos só os dois. Nesse
aspecto eu não era agradável para ele. Pois bem, lembra de ]eannie Bjorkman?
Aquela de rosto redondo e cabelo encaracolado, mais ou menos da sua
altura".
"Lembro, sim", respondeu a sra. Chase. "Esteve no comitê da Cruz
Vermelha. Horrorosa."
"Não", replicou Alice Severn, reflectindo. "Jeannie não é
horrorosa. Éramos óptimas amigas. O estranho é que Arthur costumava dizer que a
odiava, mas tenho a impressão de que sempre foi louco por ela, com certeza
agora é, e as crianças também. Eu queria que as crianças não gostassem dela,
embora devesse estar feliz por gostarem, já que têm de viver com ela."
"Não acredito: seu marido casado com aquela horrorosa da Bjorkmanl"
"Desde agosto."
A sra. Chase, fazendo primeiro uma pausa para sugerir que fossem tomar o café
na sala de estar, disse: "É deprimente você estar vivendo sozinha em Nova
York. Pelo menos devia ter ficado com os filhos".
"Arthur quis ficar com eles", respondeu Alice Severn simplesmente.
"Mas não estou sozinha. Fred é um de meus melhores amigos."
A sra. Chase gesticulou, impaciente: não gostava de fantasias. "Um
cachorro. Loucura. A verdade é que você é uma tola: se algum homem tentasse me
passar para trás, eu cortava os pés dele em pedacinhos. Vai ver que você nem
exigiu", hesitou, "uma pensão."
"Você não entende, Arthur não tem dinheiro algum", disse Alice Severn
com o desânimo de uma criança que descobriu que os adultos, afinal, não são
muito lógicos. "Teve até de vender o carro, e vai e volta a pé da estação.
Mas, sabe, acho que está feliz."
"O que você precisa é de um bom beliscão", disse a sra. Chase como se
estivesse pronta para realizar o serviço.
"É Fred que me preocupa. Está acostumado com espaço, e, com uma única
pessoa, não sobram muitos ossos. Você acha que, quando terminar meu curso,
consigo arrumar um emprego na Califórnia? Estou estudando administração, mas
não sou muito rápida, sobretudo na máquina de escrever, meus dedos parecem
detestar aquilo. Deve ser como tocar piano, você tem de aprender quando é
jovem." Ela olhou curiosa para suas mãos, suspirando: "Tenho aula às
três; importa-se se lhe mostrar o casaco agora?".
A festividade de coisas saindo de uma caixa em geral alegrava a sra. Chase,
mas, quando ela viu a tampa ser retirada, um mal-estar melancólico dominou-a.
"Pertenceu à minha mãe."
Que deve ter usado essa tralha durante sessenta anos, pensou a sra. Chase,
encarando um espelho. O casaco dava nos seus tornozelos. Ela passou a mão pela
pelagem opaca, quase sem pêlos: estava mofada, fedida, como se tivesse
permanecido num sótão à beira-mar. Fazia frio dentro do casaco, ela estremeceu,
ao mesmo tempo um rubor aqueceu-lhe o rosto, pois foi aí que notou que Alice
Severn olhava sobre seus ombros e na expressão dela havia uma expectativa tensa,
humilhante, antes inexistente. Quanto à solidariedade, a sra. Chase praticava a
parcimônia: antes de oferecê-la, tomava a precaução de amarrar um barbante nela
para, em caso de necessidade, pegá-la de volta. Quando ela fitou Alice Severn,
porém, foi como se o barbante tivesse sido cortado, e dessa vez ela se
confrontou com as obrigações da solidariedade. Hesitou mesmo assim, procurando
uma escapatória, mas seus olhos colidiram com aqueles outros olhos, e ela
percebeu que não havia nenhuma. A lembrança de uma palavra das aulas do
Linguaphone facilitaram uma pergunta: "Combien?".
"Isso não vale nada, não é?" Havia confusão na pergunta, não
franqueza.
"Não, não vale", ela respondeu, cansada, quase irritada. "Mas
pode ter alguma utilidade." Não repetiu a pergunta; estava claro que
estipular o preço fazia parte de sua obrigação.
Ainda arrastando o incômodo casaco, dirigiu-se a um canto da sala onde havia
uma escrivaninha e, com movimentos nervosos e ressentidos, preencheu um cheque
da sua conta pessoal: preferia que o marido não soubesse. Mais que a maioria, a
sra. Chase detestava o sentimento de perda; uma chave fora do lugar, uma moeda
caída, despertavam sua consciência do roubo e das trapaças da vida. Sensação
semelhante acompanhou-a quando entregou o cheque a Alice Severn. Esta,
dobrando-o sem olhar para ele, enfiou-o no bolso do traje. Era um cheque de
cinqüenta dólares,
"Querida", disse a sra. Chase, carrancuda com a falsa preocupação,
"você tem de telefonar e contar como andam as coisas. Não deve se sentir
solitária."
Alice Severn nem agradeceu, e na porta não disse "tchau". Em vez
disso, segurou uma das mãos da sra. Chase e deu um tapinha nela, como se
estivesse delicadamente recompensando um animal, um cachorro. Fechando a porta,
a sra. Chase fitou sua mão, aproximou-a dos lábios. A sensação da outra mão
ainda perdurava, e ela continuou ali, esperando que passasse: logo sua mão
ficou bem fria de novo.
Truman Capote
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