sábado, 2 de agosto de 2014

OUTROS CONTOS

«Boca de Sapo», por Isabel Allende.

«Boca de Sapo»
Conto de Isabel Allende

222- «BOCA DE SAPO»

Os tempos eram duros no Sul. Não no Sul deste país, mas do mundo, onde as estações mudaram e o Inverno não é no Natal, como nas nações cultas, mas a meio do ano, como nas regiões bárbaras. Pedra, colmo e gelo, extensas planícies que até à Terra do Fogo desfazem-se num rosário de ilhas, picos de cordilheira nevada fechando o horizonte ao longe, silêncio instalado ali desde o nascimento dos tempos e interrompido por vezes pelo suspiro subterrâneo dos glaciares deslizando lentamente para o mar. É uma natureza áspera, habitada por homens rudes. Nos princípios do século nada havia ali que os Ingleses pudessem levar, mas obtiveram concessões para criar ovelhas. Em poucos anos os animais multiplicaram-se de tal forma que ao longe pareciam nuvens agarradas rente à terra, comeram toda a vegetação e pisaram os últimos altares das culturas indígenas. Era nesse lugar que Hermelinda ganhava a vida com jogos de fantasia.

No meio do descampado erguia-se, como uma torta abandonada, a grande casa da Companhia Pecuária, rodeada por um relvado absurdo, defendido contra os rigores do clima pela esposa do administrador, que não pôde resignar-se a viver fora do coração do Império Britânico e continuou a vestir-se de gala para cear a sós com o marido, um fleumático cavalheiro perdido no orgulho de tradições obsoletas. Os peões crioulos viviam nas barracas do acampamento, separados dos patrões por cercas de arbustos espinhosos e rosas silvestres, que tentavam em vão limitar a imensidão da pampa e criar para os estrangeiros a ilusão de uma suave campina inglesa.

Vigiados pelos guardas da gerência, atormentados pelo frio e sem tomar uma sopa caseira durante meses, os trabalhadores sobreviviam à desgraça, tão desamparados como o gado a seu cargo. Pelas tardes não faltava quem pegasse na guitarra e então a paisagem enchia-se de canções sentimentais. Era tanta a carência de amor, apesar da pedra-lume posta pelo cozinheiro na comida para apaziguar os desejos do corpo e as urgências da recordação que os peões fornicavam com as ovelhas e até com alguma foca, se ela se aproximava da costa e conseguiam caçá-la. Estes animais têm grandes mamas, como seios de mãe, e ao tirar-lhes a pele, quando ainda vivas, quentes e palpitantes, um homem muito necessitado pode fechar os olhos e imaginar que abraça uma sereia. Apesar destes inconvenientes os operários divertiam-se mais que os seus patrões graças às brincadeiras ilícitas de Hermelinda.

Era a única mulher jovem em toda a extensão daquela terra, salvo a dama inglesa, que só passava a cerca das rosas para matar lebres a tiro de espingarda, vislumbrando-se nessas ocasiöes apenas o véu do seu chapéu no meio de uma poeirada de inferno e uma barulheira de cães perdigueiros. Hermelinda, pelo contrário, era uma fêmea próxima e precisa, com uma mistura atrevida de sangue nas veias e uma óptima disposição para festejar. Tinha escolhido esse ofício de consolo por pura e simples vocação, gostava de quase todos os homens em geral e de muitos em particular. Reinava entre eles como uma abelha-mestra. Amava neles o cheiro do trabalho e do desejo, a voz rouca, a barba de dois dias, o corpo vigoroso e ao mesmo tempo tão vulnerável nas suas mãos, a índole combativa e o coração ingénuo. Conhecia a fortaleza ilusória e a debilidade extrema dos seus clientes, mas não se aproveitava de nenhuma dessas condições, pelo contrário, compadecia-se de ambas. Na sua natureza bravia havia traços de ternura maternal e, frequentemente, a noite encontrava-a cosendo remendos numa camisa, cozinhando uma galinha para algum trabalhador enfermo ou escrevendo cartas de amor para noivas remotas. Fazia a sua fortuna sobre um colchão de lã crua, debaixo de um tecto de zinco ondulado que produzia música de flautas e oboés quando o vento o atravessava.

Tinha as carnes firmes e a pele sem mácula, ria-se com gosto e sobravam-lhe desejos, muito mais do que uma ovelha aterrorizada ou uma pobre foca sem couro podiam oferecer. Em cada abraço, por breve que fosse, revelava-se como uma amiga entusiasta e travessa. A fama das suas sólidas pernas de ginete e suas mamas invulneráveis ao uso havia percorrido seiscentos quilómetros de província agreste e os seus namorados viajavam de longe para passar um bocado na sua companhia. As sextas-feiras chegavam a galopar à rédea solta de lugares tão afastados que os animais, cobertos de espuma, caíam desmaiados. Os patrões ingleses proibiam o consumo de álcool, mas Hermelinda lá fazia por destilar uma aguardente clandestina com a qual melhorava o ânimo e arruinava o fígado dos seus hóspedes, mas que também servia para acender as suas lâmpadas à hora da diversão. As apostas começavam depois da terceira rodada de licor, quando se tornava impossível concentrar a vista ou agudizar o entendimento.

Hermelinda tinha descoberto a maneira de obter benefícios seguros sem armadilhas. Salvo as cartas e os dados, os homens dispunham de vários jogos, e sempre o único prémio era a sua pessoa. Os que perdiam entregavam-lhe o seu dinheiro e também os que ganhavam, Mas obtinham o direito de desfrutar um pedaço breve da sua companhia, sem subterfúgios nem preliminares, não porque a ela lhe faltasse boa vontade, mas porque não dispunha de tempo para dar a todos uma atenção mais esmerada. Os participantes na Galinha Cega tiravam as calças, mas conservavam os coletes, os gorros e as botas forradas de pele de cordeiro, para se protegerem do frio antárctico que assobiava por entre os tabuöes. Ela vendava-lhes os olhos e a perseguição começava. às vezes armava-se tal alvoroço que as risadas e os arquejos cruzavam a noite mais para lá das rosas e chegavam aos ouvidos dos Ingleses, que ficavam impassíveis, fingindo que se tratava só do capricho do vento na rampa, enquanto continuavam a beber lentamente a sua última chávena de chá-de-ceilão antes de irem para a cama. O primeiro que punha a mão em cima de Hermelinda dava um cacarejo exultante e louvava a sua sorte, enquanto a aprisionava em seus braços. O Baloiço era outro dos jogos. A mulher sentava-se numa tábua pendurada no tecto por duas cordas. Desafiando os olhares apreciadores dos homens flectia as pernas e todos podiam ver que não tinha nada por debaixo dos saiotes amarelos. Os jogadores, dispostos em fila, tinham uma só oportunidade de a atacar e quem conseguia o objectivo via-se apanhado entre as coxas da bela, numa agitação de saias, balançando, embalado até aos ossos e, finalmente, levado ao céu. Mas muito poucos conseguiam isso e a maioria rebolava pelo chão por entre as gargalhadas dos outros.

No jogo do Sapo um homem podia perder em quinze minutos o ordenado de um mês. Hermelinda desenhava no chão uma marca de giz e a quatro passos de distância traçava um grande círculo,dentro do qual se deitava, com os joelhos abertos e as pernas douradas à luz dos candeeiros de aguardente. Aparecia então ocentro escuro do seu corpo, aberto como uma fruta, como uma alegre boca de sapo, enquanto o ar do quarto se tornava denso e quente. Os jogadores ficavam por detrás da marca de giz e atiravam procurando acertar no alvo. Alguns eram exímios atiradores, de pulso tão seguro que podiam deter um animal assustado em pleno galope atirando-lhe entre as patas duas bolas de pedra atadas por uma corda. Mas Hermelinda tinha uma maneira imperceptível de fugir com o corpo, de escapar-se para que no último instante a moeda perdesse o rumo. As que caíam dentro do círculo de giz pertenciam à mulher. Se alguma entrasse na porta, dava ao seu dono um tesouro de sultão, duas horas detrás da cortina, sozinho com ela, em completo regozijo, para procurar consolo por todas as penúrias passadas e sonhar com os prazeres do paraíso. Diziam, os que tinham vivido essas duas horas preciosas, que Hermelinda conhecia antigos segredos de amor e que era capaz de levar um homem até à porta da morte e trazê-lo de volta transformado em sábio.

Até ao dia em que apareceu Paulo, o asturiano, muito poucos tinham ganho essas duas horas prodigiosas, embora vários tivessem desfrutado algo semelhante mas não por uns cêntimos, mas por metade do salário. Por essa altura ela tinha acumulado uma pequena fortuna, mas a ideia de se retirar para uma vida mais convencional não lhe tinha ainda ocorrido, na verdade tirava muito partido do seu trabalho e sentia-se orgulhosa das faíscas felizes que podia oferecer aos peöes. Paulo era um homem seco, de ossos de frango e mãos de menino, cujo aspecto físico contradizia com a tremenda tenacidade do seu temperamento. Ao lado da opulenta e jovial Hermelinda ele parecia um tipo metediço, envergonhado, mas aqueles que ao vê-lo chegaram a pensar que podiam rir-se um bom bocado à sua custa, tiveram uma surpresa bem desagradável. O pequeno forasteiro reagiu como uma víbora à primeira provocação, disposto a bater-se com quem lhe ficasse pela frente, mas a briga esgotou-se antes de começar, porque a primeira regra de Hermelinda era que debaixo do seu tecto não se lutava. Estabelecida a sua dignidade, Paulo sossegou. Tinha uma expressão decidida e algo fúnebre, falava pouco e quando o fazia tornava-se evidente a sua pronúncia espanhola. Tinha saído da sua pátria escapando à Polícia e vivia do contrabando através dos desfiladeiros dos Andes. Até então tinha sido um eremita carrancudo e brigão, que se estava nas tintas para o clima, as ovelhas e os Ingleses. Não pertencia a nenhum lado e não reconhecia amores nem deveres, mas já não era jovem e a solidão ia-lhe entrando nos ossos. Por vezes despertava ao amanhecer sobre o chão gelado, embrulhado na sua manta negra de Castela e com a sela por almofada, sentindo que lhe doía todo o corpo. Não era uma dor de músculos entumecidos, mas de tristezas acumuladas e abandono. Estava farto de vaguear como um lobo, mas também não estava feito para a mansidão doméstica. Chegou àquelas terras, porque ouviu o boato de que no fim do mundo havia uma mulher capaz de torcer a direcção do vento, e quis vê-la com os seus próprios olhos. A enorme distância e os perigos do caminho não conseguiram fazê-lo desistir e quando por fim se encontrou na adega e teve Hermelinda ao alcance da mão, viu que ela era feita do mesmo metal rijo que ele e decidiu que depois de uma viagem tão longa não valia a pena continuar a viver sem ela. Sentou-se num canto do quarto a observá-la com cuidado e a calcular as suas possibilidades.

O asturiano tinha tripas de aço e pôde emborcar vários copos do licor de Hermelinda sem que as lágrimas lhe viessem aos olhos. Não aceitou tirar a roupa para a Roda de São Miguel, para o Mandandirun-dirun-dán nem para as outras coisas que lhe pareceram francamente infantis, mas no final da noite, quando chegou o momento culminante do Sapo, cuspiu o mau sabor do álcool e juntou-se ao coro de homens à volta do círculo de giz. Hermelinda pareceu-lhe formosa e selvagem como uma leoa das montanhas. Sentiu acordar o instinto de caçador e a vaga dor do desamparo, que lhe tinha atormentado os ossos durante toda a viagem, tornou-se gostosa antecipação. Viu os pés calçados com botas curtas, as meias grossas presas com elásticos abaixo dos joelhos, os ossos grandes e os músculos tensos daquelas pernas de ouro entre as ondas dos saiotes amarelos e soube que tinha uma oportunidade de a conquistar. Tomou posição, fincando os pés no chão e inclinando o corpo até encontrar o próprio eixo da sua existência, e com uma olhadela rápida paralisou a mulher no seu lugar e obrigou-a a renunciar aos seus truques de contorcionista. Ou talvez as coisas não sucedessem assim, talvez tivesse sido ela que o escolheu entre os outros para a aquecer com o presente da sua companhia. Paulo aguçou a vista, expirou todo o ar do peito e depois de alguns segundos de concentração absoluta atirou a moeda. Todos a viram fazer um arco perfeito e entrar certeira no lugar preciso. Uma salva de palmas e assobios de inveja celebrou a façanha. Impassível o contrabandista ajeitou o cinturão, deu três grandes passos em frente, agarrou na mão da mulher e pô-la de pé, disposto a provar-lhe em precisamente duas horas, que também ela já não podia prescindir dele. Saiu quase a arrastando e os outros ficaram a olhar os relógios e a beber, até que passou o tempo do prémio, mas nem Hermelinda nem o estrangeiro apareceram. Passaram três horas, quatro, toda a noite, amanheceu e soaram os sinos da gerência chamando para o trabalho, sem que se abrisse a porta.

Ao meio-dia os amantes saíram do quarto. Paulo não trocou um só olhar com ninguém, selou o seu cavalo, outro para Hermelinda e uma mula para carregar a bagagem. A mulher vestia calças e casaco de viagem e levava atada à cintura uma bolsa de lona cheia de moedas. Tinha uma nova expressão nos olhos e um bambolear satisfeito no traseiro inesquecível. Acomodaram cuidadosamente os objectos no lombo dos animais, montaram e começaram a andar. Hermelinda fez um gesto vago de despedida aos seus desolados admiradores e seguiu Paulo, o asturiano, pelas planícies desoladas sem olhar para trás. Nunca mais regressou.

Foi tanta a consternação provocada pela partida de Hermelinda que para divertir os seus trabalhadores a Companhia Pecuária instalou baloiços, comprou dardos e flechas para o tiro ao alvo e mandou vir de Londres um enorme sapo de loiça pintado com a boca aberta, para que os peöes afinassem a pontaria atirando-lhe moedas. Mas face à indiferença geral, estes brinquedos acabaram por decorar o terraço da gerência, onde os Ingleses ainda os usam para combater o tédio dos fins de tarde.

Isabel Allende

Sem comentários: