«Boca de Sapo»
Conto de Isabel Allende
222- «BOCA DE SAPO»
Os tempos eram duros no Sul. Não no Sul deste país, mas do
mundo, onde as estações mudaram e o Inverno não é no Natal, como nas nações
cultas, mas a meio do ano, como nas regiões bárbaras. Pedra, colmo e gelo,
extensas planícies que até à Terra do Fogo desfazem-se num rosário de ilhas,
picos de cordilheira nevada fechando o horizonte ao longe, silêncio instalado
ali desde o nascimento dos tempos e interrompido por vezes pelo suspiro
subterrâneo dos glaciares deslizando lentamente para o mar. É uma natureza áspera,
habitada por homens rudes. Nos princípios do século nada havia ali que os
Ingleses pudessem levar, mas obtiveram concessões para criar ovelhas. Em poucos
anos os animais multiplicaram-se de tal forma que ao longe pareciam nuvens
agarradas rente à terra, comeram toda a vegetação e pisaram os últimos altares
das culturas indígenas. Era nesse lugar que Hermelinda ganhava a vida com jogos
de fantasia.
No meio do descampado erguia-se, como uma torta abandonada,
a grande casa da Companhia Pecuária, rodeada por um relvado absurdo, defendido
contra os rigores do clima pela esposa do administrador, que não pôde
resignar-se a viver fora do coração do Império Britânico e continuou a
vestir-se de gala para cear a sós com o marido, um fleumático cavalheiro
perdido no orgulho de tradições obsoletas. Os peões crioulos viviam nas
barracas do acampamento, separados dos patrões por cercas de arbustos
espinhosos e rosas silvestres, que tentavam em vão limitar a imensidão da pampa
e criar para os estrangeiros a ilusão de uma suave campina inglesa.
Vigiados pelos guardas da gerência, atormentados pelo frio e
sem tomar uma sopa caseira durante meses, os trabalhadores sobreviviam à
desgraça, tão desamparados como o gado a seu cargo. Pelas tardes não faltava
quem pegasse na guitarra e então a paisagem enchia-se de canções sentimentais.
Era tanta a carência de amor, apesar da pedra-lume posta pelo cozinheiro na
comida para apaziguar os desejos do corpo e as urgências da recordação que os
peões fornicavam com as ovelhas e até com alguma foca, se ela se aproximava da
costa e conseguiam caçá-la. Estes animais têm grandes mamas, como seios de mãe,
e ao tirar-lhes a pele, quando ainda vivas, quentes e palpitantes, um homem
muito necessitado pode fechar os olhos e imaginar que abraça uma sereia. Apesar
destes inconvenientes os operários divertiam-se mais que os seus patrões graças
às brincadeiras ilícitas de Hermelinda.
Era a única mulher jovem em toda a extensão daquela terra,
salvo a dama inglesa, que só passava a cerca das rosas para matar lebres a tiro
de espingarda, vislumbrando-se nessas ocasiöes apenas o véu do seu chapéu no
meio de uma poeirada de inferno e uma barulheira de cães perdigueiros.
Hermelinda, pelo contrário, era uma fêmea próxima e precisa, com uma mistura
atrevida de sangue nas veias e uma óptima disposição para festejar. Tinha
escolhido esse ofício de consolo por pura e simples vocação, gostava de quase
todos os homens em geral e de muitos em particular. Reinava entre eles como uma
abelha-mestra. Amava neles o cheiro do trabalho e do desejo, a voz rouca, a
barba de dois dias, o corpo vigoroso e ao mesmo tempo tão vulnerável nas suas
mãos, a índole combativa e o coração ingénuo. Conhecia a fortaleza ilusória e a
debilidade extrema dos seus clientes, mas não se aproveitava de nenhuma dessas
condições, pelo contrário, compadecia-se de ambas. Na sua natureza bravia havia
traços de ternura maternal e, frequentemente, a noite encontrava-a cosendo
remendos numa camisa, cozinhando uma galinha para algum trabalhador enfermo ou
escrevendo cartas de amor para noivas remotas. Fazia a sua fortuna sobre um
colchão de lã crua, debaixo de um tecto de zinco ondulado que produzia música
de flautas e oboés quando o vento o atravessava.
Tinha as carnes firmes e a pele sem mácula, ria-se com gosto
e sobravam-lhe desejos, muito mais do que uma ovelha aterrorizada ou uma
pobre foca sem couro podiam oferecer. Em cada abraço, por breve que fosse,
revelava-se como uma amiga entusiasta e travessa. A fama das suas sólidas
pernas de ginete e suas mamas invulneráveis ao uso havia percorrido seiscentos
quilómetros de província agreste e os seus namorados viajavam de longe para
passar um bocado na sua companhia. As sextas-feiras chegavam a galopar à rédea
solta de lugares tão afastados que os animais, cobertos de espuma, caíam
desmaiados. Os patrões ingleses proibiam o consumo de álcool, mas Hermelinda lá
fazia por destilar uma aguardente clandestina com a qual melhorava o ânimo e
arruinava o fígado dos seus hóspedes, mas que também servia para acender as
suas lâmpadas à hora da diversão. As apostas começavam depois da terceira
rodada de licor, quando se tornava impossível concentrar a vista ou agudizar o
entendimento.
Hermelinda tinha descoberto a maneira de obter benefícios
seguros sem armadilhas. Salvo as cartas e os dados, os homens dispunham de
vários jogos, e sempre o único prémio era a sua pessoa. Os que perdiam
entregavam-lhe o seu dinheiro e também os que ganhavam, Mas obtinham o direito
de desfrutar um pedaço breve da sua companhia, sem subterfúgios nem
preliminares, não porque a ela lhe faltasse boa vontade, mas porque não
dispunha de tempo para dar a todos uma atenção mais esmerada. Os participantes
na Galinha Cega tiravam as calças, mas conservavam os coletes, os gorros e as
botas forradas de pele de cordeiro, para se protegerem do frio antárctico que
assobiava por entre os tabuöes. Ela vendava-lhes os olhos e a perseguição
começava. às vezes armava-se tal alvoroço que as risadas e os arquejos cruzavam
a noite mais para lá das rosas e chegavam aos ouvidos dos Ingleses, que ficavam
impassíveis, fingindo que se tratava só do capricho do vento na rampa,
enquanto continuavam a beber lentamente a sua última chávena de chá-de-ceilão
antes de irem para a cama. O primeiro que punha a mão em cima de Hermelinda
dava um cacarejo exultante e louvava a sua sorte, enquanto a aprisionava em
seus braços. O Baloiço era outro dos jogos. A mulher sentava-se numa tábua
pendurada no tecto por duas cordas. Desafiando os olhares apreciadores dos
homens flectia as pernas e todos podiam ver que não tinha nada por debaixo dos
saiotes amarelos. Os jogadores, dispostos em fila, tinham uma só oportunidade
de a atacar e quem conseguia o objectivo via-se apanhado entre as coxas da
bela, numa agitação de saias, balançando, embalado até aos ossos e, finalmente,
levado ao céu. Mas muito poucos conseguiam isso e a maioria rebolava pelo chão
por entre as gargalhadas dos outros.
No jogo do Sapo um homem podia perder em quinze minutos o
ordenado de um mês. Hermelinda desenhava no chão uma marca de giz e a quatro
passos de distância traçava um grande círculo,dentro do qual se deitava, com os
joelhos abertos e as pernas douradas à luz dos candeeiros de aguardente.
Aparecia então ocentro escuro do seu corpo, aberto como uma fruta, como uma
alegre boca de sapo, enquanto o ar do quarto se tornava denso e quente. Os
jogadores ficavam por detrás da marca de giz e atiravam procurando acertar no
alvo. Alguns eram exímios atiradores, de pulso tão seguro que podiam deter um
animal assustado em pleno galope atirando-lhe entre as patas duas bolas de
pedra atadas por uma corda. Mas Hermelinda tinha uma maneira imperceptível de
fugir com o corpo, de escapar-se para que no último instante a moeda perdesse o
rumo. As que caíam dentro do círculo de giz pertenciam à mulher. Se alguma
entrasse na porta, dava ao seu dono um tesouro de sultão, duas horas detrás da
cortina, sozinho com ela, em completo regozijo, para procurar consolo por todas
as penúrias passadas e sonhar com os prazeres do paraíso. Diziam, os que
tinham vivido essas duas horas preciosas, que Hermelinda conhecia antigos
segredos de amor e que era capaz de levar um homem até à porta da morte e
trazê-lo de volta transformado em sábio.
Até ao dia em que apareceu Paulo, o asturiano, muito poucos
tinham ganho essas duas horas prodigiosas, embora vários tivessem
desfrutado algo semelhante mas não por uns cêntimos, mas por metade do salário.
Por essa altura ela tinha acumulado uma pequena fortuna, mas a ideia de se
retirar para uma vida mais convencional não lhe tinha ainda ocorrido, na
verdade tirava muito partido do seu trabalho e sentia-se orgulhosa das faíscas
felizes que podia oferecer aos peöes. Paulo era um homem seco, de ossos de
frango e mãos de menino, cujo aspecto físico contradizia com a tremenda
tenacidade do seu temperamento. Ao lado da opulenta e jovial Hermelinda ele
parecia um tipo metediço, envergonhado, mas aqueles que ao vê-lo chegaram a
pensar que podiam rir-se um bom bocado à sua custa, tiveram uma surpresa bem
desagradável. O pequeno forasteiro reagiu como uma víbora à primeira
provocação, disposto a bater-se com quem lhe ficasse pela frente, mas a briga
esgotou-se antes de começar, porque a primeira regra de Hermelinda era que
debaixo do seu tecto não se lutava. Estabelecida a sua dignidade, Paulo
sossegou. Tinha uma expressão decidida e algo fúnebre, falava pouco e quando o
fazia tornava-se evidente a sua pronúncia espanhola. Tinha saído da sua pátria
escapando à Polícia e vivia do contrabando através dos desfiladeiros dos Andes.
Até então tinha sido um eremita carrancudo e brigão, que se estava nas tintas
para o clima, as ovelhas e os Ingleses. Não pertencia a nenhum lado e não
reconhecia amores nem deveres, mas já não era jovem e a solidão ia-lhe entrando
nos ossos. Por vezes despertava ao amanhecer sobre o chão gelado, embrulhado na
sua manta negra de Castela e com a sela por almofada, sentindo que lhe doía todo
o corpo. Não era uma dor de músculos entumecidos, mas de tristezas acumuladas e
abandono. Estava farto de vaguear como um lobo, mas também não estava feito
para a mansidão doméstica. Chegou àquelas terras, porque ouviu o boato de que
no fim do mundo havia uma mulher capaz de torcer a direcção do vento, e quis
vê-la com os seus próprios olhos. A enorme distância e os perigos do caminho
não conseguiram fazê-lo desistir e quando por fim se encontrou na adega e teve
Hermelinda ao alcance da mão, viu que ela era feita do mesmo metal rijo que ele
e decidiu que depois de uma viagem tão longa não valia a pena continuar a viver
sem ela. Sentou-se num canto do quarto a observá-la com cuidado e a calcular as
suas possibilidades.
O asturiano tinha tripas de aço e pôde emborcar vários copos
do licor de Hermelinda sem que as lágrimas lhe viessem aos olhos. Não aceitou
tirar a roupa para a Roda de São Miguel, para o Mandandirun-dirun-dán nem para
as outras coisas que lhe pareceram francamente infantis, mas no final da noite,
quando chegou o momento culminante do Sapo, cuspiu o mau sabor do álcool e
juntou-se ao coro de homens à volta do círculo de giz. Hermelinda pareceu-lhe
formosa e selvagem como uma leoa das montanhas. Sentiu acordar o instinto de
caçador e a vaga dor do desamparo, que lhe tinha atormentado os ossos durante
toda a viagem, tornou-se gostosa antecipação. Viu os pés calçados com botas
curtas, as meias grossas presas com elásticos abaixo dos joelhos, os ossos
grandes e os músculos tensos daquelas pernas de ouro entre as ondas dos saiotes
amarelos e soube que tinha uma oportunidade de a conquistar. Tomou posição,
fincando os pés no chão e inclinando o corpo até encontrar o próprio eixo da
sua existência, e com uma olhadela rápida paralisou a mulher no seu lugar e obrigou-a
a renunciar aos seus truques de contorcionista. Ou talvez as coisas não
sucedessem assim, talvez tivesse sido ela que o escolheu entre os outros para a
aquecer com o presente da sua companhia. Paulo aguçou a vista, expirou todo o
ar do peito e depois de alguns segundos de concentração absoluta atirou a
moeda. Todos a viram fazer um arco perfeito e entrar certeira no lugar preciso.
Uma salva de palmas e assobios de inveja celebrou a façanha. Impassível o
contrabandista ajeitou o cinturão, deu três grandes passos em frente, agarrou
na mão da mulher e pô-la de pé, disposto a provar-lhe em precisamente duas
horas, que também ela já não podia prescindir dele. Saiu quase a arrastando e
os outros ficaram a olhar os relógios e a beber, até que passou o tempo do
prémio, mas nem Hermelinda nem o estrangeiro apareceram. Passaram três horas,
quatro, toda a noite, amanheceu e soaram os sinos da gerência chamando para o
trabalho, sem que se abrisse a porta.
Ao meio-dia os amantes saíram do quarto. Paulo não trocou um
só olhar com ninguém, selou o seu cavalo, outro para Hermelinda e uma mula
para carregar a bagagem. A mulher vestia calças e casaco de viagem e levava
atada à cintura uma bolsa de lona cheia de moedas. Tinha uma nova expressão nos
olhos e um bambolear satisfeito no traseiro inesquecível. Acomodaram
cuidadosamente os objectos no lombo dos animais, montaram e começaram a andar.
Hermelinda fez um gesto vago de despedida aos seus desolados admiradores e
seguiu Paulo, o asturiano, pelas planícies desoladas sem olhar para trás. Nunca
mais regressou.
Foi tanta a consternação provocada pela partida de
Hermelinda que para divertir os seus trabalhadores a Companhia Pecuária
instalou baloiços, comprou dardos e flechas para o tiro ao alvo e mandou vir de
Londres um enorme sapo de loiça pintado com a boca aberta, para que os peöes
afinassem a pontaria atirando-lhe moedas. Mas face à indiferença geral, estes
brinquedos acabaram por decorar o terraço da gerência, onde os Ingleses ainda
os usam para combater o tédio dos fins de tarde.
Isabel Allende
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