«A Doida e os Miúdos»
Soeiro Pereira Gomes, In Esteiros
252- «A DOIDA E OS MIÚDOS»
Certa noite, Sagui acordou em sobressalto, ao barulho de
alguém que resmungava. Mirrou-se mais contra as pedras, tapou a cabeça com a
manta de retalhos. Mas a voz trespassava a roupa, tanto como os baques do
coração sob a caverna do peito. «Quem seria, àquela hora?... Talvez ladrão que
descobrira o esconderijo da fruta, ou espião mandado pelo senhor Castro».
A voz, aguda e áspera, parecia de mulher. «Se calhar era algum dos companheiros
disfarçado, por brincadeira... » Espreitou por um rasgão da manta.
A fraca claridade da lua definia um vulto escuro, estendido
sobre monte de caliça, como que à espreita também. Sagui sentiu saudades da
palhota da vinha em que dantes dormia, e onde nada mais chegava que latidos de
cães.
«...E se aquele vulto fosse de cão raivoso?» Um calafrio
gelou-lhe o corpo e as pedras da cama. «Não. A voz era de mulher.» Ouvia agora
gemidos abafados e palavras sem nexo... Depois, o silêncio pesou-lhe nas
pálpebras. Fechou os olhos, esquecido; mas logo voltou a fixá-los no vulto
imóvel. Por fim, cansado, adormeceu profundamente.
Quando acordou, o dia dormitava ainda, e o vulto também.
Aproximou-se dele. Era a Doida. Ao primeiro impulso pensou em fugir, antes que
ela tivesse algum daqueles ataques em que corria, à pedrada e aos gritos, os
garotos da rua. Mas viu-lhe o rosto pálido, empastado de sangue. Lembrou-se da
mulher que veio na lancha, chorosa, a engalhar o menino morto – e apiedou-se.
Levemente, estancou-lhe a ferida com um trapo molhado. Ela
abriu para ele os olhos tontos, susteve-o nos braços, chamou-lhe meu menino.
Sagui quis libertar-se daquelas mãos frias que o afagavam; mas, por medo,
deixou-se embalar como criança de colo, fitando a Doida, de esguelha. Pelo
decote da blusa, via-lhe o seio muito branco e uma nódoa negra no pescoço.
– Estás tão crescido, meu menino...
O sorriso dela era um esgar de amargura. Sagui esboçou uma
carícia que se perdeu no ar, e voltou mais a cara para o lado. Os olhos, porém,
continuavam hipnotizados pela nesga do seio. Contra vontade, a mão prendeu-se
também no decote, trémula e suplicante... A Doida beijou-o. E ele esqueceu-se
que era menino ao colo de mãe...
No dia seguinte, Sagui não vendeu fruta. Mas os companheiros andaram pelas portas, como de costume.
– Quer laranjas? Uma dúzia dez tostões.
– Se calhar são roubadas...
Gaitinhas corava sempre, enquanto que os companheiros
protestavam:
– Nã sou ladrão. Fui comprá-las às Areias.
Guedelhas palmilhava três quilómetros de estrada, para
vender a fruta toda noutra vila, de manhã. Depois, ia treinar-se com bolas de
trapos, crente de que em breve lhe dariam admissão no clube desportivo. Os
outros acompanhavam-no, ou então jogavam o chinquilho no Mirante.
Foi lá que Sagui lhes falou, embaraçado, com olheiras
profundas no rosto.
– Hoje nã vendi nada...
– Tás doente, pá?
– Não. Andaram uns gajos a ver a capela.
O bando assustou-se.
– Disseram-te alguma coisa?
– Perguntaram só se eu morava ali. O melhor é arrecadar as
laranjas noutro sítio.
– Adonde?
– No telhal do Zé Vicente.
– Tás parvo. Qualquer dia vão pra lá arranjar o forno...
Gineto pôs termo à discussão. – Mudam-se logo à noite,
pronto.
– É melhor de dia – contestou Sagui. – Se os gajos desconfiaram,
são capazes de lá aparecer logo, outra vez.
Gineto começou a duvidar das palavras atabalhoadas do
pequeno companheiro.
«Outra história» – pensou.
Seguiu-lhe as passadas toda a tarde. Viu-o entrar na capela
com embrulhos misteriosos, e depois correr as ruas como que à procura de
alguém. Entusiasmado pela perseguição, escondeu-se atrás dumas pedras, entre
ruínas, e, enquanto esperava, desejou ser polícia, mais do que ladrão de fruta.
Um polícia assim como o «Rei dos Cow-Boys», que fazia justiça por
suas mãos, nas fitas de cinema.
Mas Sagui apareceu com a Doida, que ria e gesticulava. Da
boca do Gineto quase se desprendeu um assobio de pasmo, tão longe estava
daquele desfecho.
«Ai o gajo!... Misturado com a Doida sem dizer nada aos
amigos...». Riu-se.
«E a comer com ela as laranjas da quadrilha...».
Não sossegou enquanto não falou ao Sagui.
– Atão tu, grande impostor, inganchas-te na Doida e vens pra
cá enganar a gente.
– Eu?!
– Nã te faças de novas, que eu vi vocês dois, na capela.
Sagui embatucou por momentos.
– Tive medo que tu lhe fizesses mal... A gaja até faz pena.
Olha que às vezes nem parece que é maluca.
– Eu só quero é trincar também. Já sabes... – declarou
Gineto, impaciente.
– Mas não digas aos outros...
– Digo nada.
Uma semana depois, todos os componentes da quadrilha
gastavam os lucros do negócio
em prendas para a Doida.
Soeiro Pereira Gomes
em prendas para a Doida.
Soeiro Pereira Gomes
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