«Anos»
Pintura de Jesus Gómez Costa
249- «ANOS»
Do que eu era então não resta nada: apenas homem, era ainda
um menino. Eu sabia há muito tempo, mas tudo aconteceu no final do Inverno, uma
tarde e uma manhã. Vivíamos juntos, quase escondidos, numa casa que dava para
uma avenida. Sílvia me disse naquela noite que eu tinha que ir, ou ela iria: já
não tínhamos nada que fazer juntos. Supliquei que deixasse que tentássemos de
novo, estava deitado ao seu lado e a abraçava. Ela me disse:
- Para quê? – Falávamos com a voz baixa, às escuras.
Logo Sílvia dormiu e eu fiquei até de manhã com um joelho
colado ao seu. A manhã apareceu como sempre havia aparecido e fazia muito frio;
Sílvia tinha o cabelo sobre os olhos e não se movia. Na penumbra eu olhava
passar o tempo, sabia que passava e corria e que lá fora havia névoa. Todo o
tempo que havia vivido com Sílvia naquele quarto era como um só dia e uma
noite, que agora terminava pela manhã. Então compreendi que nunca voltaria a
sair comigo por entre a névoa fresca.
Era melhor que me vestisse e partisse sem despertá-la. Mas
agora tinha uma coisa em mente para lhe perguntar. Esperei, tentando adormecer.
Quando despertou, Sílvia me
sorriu. Seguimos conversando. Ela disse:
- É bonito ser sincero, como nós.
- Oh, Sílvia! – sussurrei -, que farei ao sair daqui? Para
onde irei?
Era isto que tinha para lhe perguntar. Sem tirar a nuca do
travesseiro, ela sorriu de novo, beatífica:
- Bobo – disse – irá para onde quiser. Não é fabuloso ser
livre? Conhecerá muitas garotas, fará todas as coisas que quiser. Palavra que
te invejo!
Agora a manhã enchia o quarto e só havia um pouco de calor
na cama. Sílvia esperava paciente.
- Você é como uma prostituta – disse a ela – e sempre foi.
Sílvia não abriu os olhos.
- Sente-se melhor por me dizer isto? – me disse.
Então fiquei ali como se ela não estivesse, olhava o tecto e
chorava sem ruído. As lágrimas me enchiam os olhos e corriam sobre a almofada.
Não valia a pena que notasse. Muito tempo passou, e agora sei que aquelas
lágrimas mudas foram a única coisa de homem que fiz com Sílvia; sei que chorava
não por ela, senão porque havia entrevisto meu destino. Do que eu era então não
restou nada. Apenas que havia compreendido quem seria no futuro.
Depois Sílvia me disse:
- Já basta. Tenho que me levantar.
Levantamo-nos juntos, os dois. Não a vi se vestir. Fiquei
logo de pé, na janela; e olhava vislumbrando as plantas. Detrás da névoa estava
o sol, o sol que tantas vezes havia entibiado o quarto. Também Sílvia se vestiu
rápido, e me perguntou se não levaria minhas coisas. Disse que primeiro queria
esquentar o café, e acendi o fornilho.
Sílvia, sentada na borda da cama, começou a fazer as unhas.
No passado sempre as fez na mesa. Parecia absorta e o cabelo lhe caía
continuamente sobre os olhos. Então sacudia a cabeça e se liberava. Eu
perambulei pelo quarto e recolhi minhas coisas. Fiz um amontoado sobre uma
cadeira e de repente Sílvia levantou e correu para apagar o café que derramava.
Depois peguei a maleta e coloquei as coisas. Enquanto isso,
por dentro me esforçava em recolher todas as recordações desagradáveis que
tinha de Sílvia: suas futilidades, seus mal-humores, suas frases irritantes,
suas rugas. Isso me levava de seu quarto. O que deixava era uma névoa.
Quando terminei, o café estava pronto. O tomamos em pé,
junto do fornilho. Sílvia disse algo, que neste dia iria ver um sujeito, para
falar de um assunto. Pouco depois deixei a xícara e parti com a maleta. Lá fora
a névoa e sol cegavam.
Cesare Pavese
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