«Posto Avançado do Progresso»
Conto de Joseph Conrad
223- «POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO»
[Excertos]
Dirigiam o posto comercial dois
homens. O chefe do posto, Kayerts, era baixo e gordo; Carlier, o adjunto, era
alto, de cabeça grande e tronco largo empoleirado numas pernas compridas e
magras. O terceiro homem do pessoal era um negro da Serra Leoa, que afirmava
chamar-se Henry Price. Mas por uma razão qualquer, ao longo do rio os nativos
tinham-lhe posto o nome de Makola, o qual se lhe pegou durante as suas
deambulações pela região. Falava inglês e francês a cantar, tinha uma
caligrafia magnífica, percebia de contabilidade e alimentava no mais fundo do
coração o culto dos espíritos malignos. Por mulher tinha uma negra de Luanda,
enorme e faladora. Três crianças rebolavam-se ao sol à frente da casa deles,
uma construção baixa tipo arrecadação. Makola, taciturno e impenetrável,
desprezava os dois brancos. Estava encarregado dum pequeno armazém de adobe com
telhado de colmo e fazia por manter correctamente as contas das missangas, do
pano de algodão, dos lenços vermelhos, do arame e dos restantes artigos de
comércio. Além do armazém e da casota de Makola, havia só mais um edifício
importante no terreno desbravado do posto, uma casa feita de canas entrançadas,
de acabamentos executados com toda a perfeição, e tendo uma varanda a toda a
volta. Tinha três salas. A do meio era a sala comum, com duas mesas toscas e
alguns bancos. As outras duas eram os quartos dos brancos, sem outro mobiliário
além duma cama de campanha e uma rede mosquiteira cada um. O chão estava
atapetado com tudo quanto os brancos possuíam; malões abertos e semi-cheios,
roupas citadinas, botas velhas; todas as coisas sujas e todas as coisas quebradas
que se acumulam misteriosamente à volta de homens sem princípios de asseio. (…)
Cinco meses passaram-se desta maneira.
Então, uma manhã, enquanto
descansavam na varanda falando da vinda do vapor, um grupo de homens armados
irrompeu da floresta e avançou para o posto. Não eram desta região. Eram altos,
esbeltos, vestidos à antiga com mantos azuis franjados e carregavam ao ombro
espingardas de percussão. Makola ficou muito agitado e saiu a correr do armazém
(onde passava os dias), ao encontro dos visitantes. Estes avançaram para o
pátio, lançando em voltas olhares ferozes e desdenhosos. O chefe, um negro
forte e de aspecto decidido, de olhos raiados de sangue, postou-se à frente da
varanda e pronunciou um longo discurso. Fazia muitos gestos enquanto falava e
acabou bruscamente.
Havia qualquer coisa que assustou
os dois brancos na sonoridade das longas frases que utilizou. Eram sons de modo
nenhum familiares mas com muitas semelhanças, no entanto, com a fala dos homens
civilizados. A arenga do negro soou-lhes como uma dessas línguas impossíveis
que às vezes ouvimos nos sonhos.
Que algaraviada é esta? —
perguntou um espantado Carlier — Ao princípio até julguei que o tipo ia falar
em francês. Seja lá o que for, é diferente da língua de pretos a que estamos
habituados.
Sim — replicou Kayerts. — Ei,
Mikola, o que é que ele disse? Donde vêm eles? Quem são?
Mas Makola, que parecia estar sobre tijolos em brasa, respondeu precipitadamente:
— Não sei. Vêm de muito longe. Talvez a Sra. Price os perceba. Se calhar são
homens maus.
O chefe, depois de ter esperado um
bocado, disse qualquer coisa ríspidamente para Makola, que abanou a cabeça.
Então o homem, depois de olhar à volta, reparou na casota de Makola e
dirigiu-se para lá. Logo a seguir ouviu-se a Sra. Makola falar com grande
vivacidade. Os outros estrangeiros — eram seis ao todo — andaram dum lado para
o outro, perfeitamente à vontade, espreitaram para dentro do armazém, juntaram-se
em volta da campa e apontaram para a cruz com ar entendido; em resumo,: estavam
como em casa.
— Não gosto desta gente; e em
minha opinião, Kayerts, devem ser do litoral; têm armas de fogo — observou o
sagaz Carlier.
Kayerts também não gostava daquela
gente. Pela primeira vez apercebiam-se de que viviam em condições onde o não
habitual pode tornar-se perigoso e compreendiam que não havia mais nenhum poder
no mundo entre eles e o imprevisto, a não ser eles próprios. Ficaram pouco à
vontade, entraram em casa e carregaram os revólveres. Kayerts disse:—Temos de
dizer ao Makola para lhes ordenar que têm de se ir embora antes do anoitecer.
Os estrangeiros partiram à tarde, depois de terem comido uma refeição que a Sra. Makola lhes preparou. A mulher parecia muito animada e falou com os visitantes. Falava em tons agudos, apontando para aqui e para ali, para a floresta e para o rio. À parte, Makola observa-os. Levantou-se por diversas vezes para murmurar algumas palavras ao ouvido da mulher.
Acompanhou os estrangeiros até à
ravina por detrás do posto e regressou vagarosamente, de aspecto muito
pensativo. Quando os brancos o interrogaram mostrou-se muito estranho, fingindo
não compreender nada do que lhe diziam. Parecia ter-se esquecido de todo o
francês que sabia — parecia mesmo ter perdido o uso da fala. Kayerts e Carlier
concluíram que o negro tinha bebido demasiado vinha de palma.
Combinaram fazer turnos de guarda
mas, à noite pareceu-lhes tudo tão calmo e pacífico pelo som de tambores nas
aldeias. A um rufar surdo e rápido, perto, seguia-se outro mais longe — e
depois cessava. Logo a seguir, chamamentos curtos, de sítios diferentes. E
depois, os tambores e os gritos, em uníssono, aumentaram de intensidade,
tornaram-se fortes e contínuos, propagaram-se a toda a floresta, rolando na
noite, perto e longe, como se toda a região se tivesse transformado num imenso
tambor que lançava apelos aos céus. E no meio de todo este barulho surdo e
terrível, súbitos gritos de guerra, semelhante aos cânticos do manicómio,
soavam em notas discordantes e tons agudos, pareciam elevar-se muito acima da
Terra e banir toda a paz sob as estrelas. (…)
Esta era a causa de todo o mal! Não havia ninguém ali; e tendo tido deixados
sozinhos com as suas franquezas, tornavam-se, a cada dia que passava, mais um
par de cúmplices do que dois amigos dedicados. Há oito meses que não tinham
notícias de casa. Todas as noites diziam: — Amanhã vamos ter aí o vapor. — Mas
um dos vapores da Companhia tinha naufragado e o director estava a utilizar o
outro na rendição de postos importantes no rio principal. Pensava que este
posto inútil e os agentes inúteis podiam esperar. Entretanto Kayerts e Carlier
viviam de arroz cozido sem sal e maldiziam a Companhia, toda a África e o dia
em que nasceram. É preciso uma pessoa ter vivido dura dieta desse género para
saber que problema horroroso pode ser a necessidade de engolir alimentos. Não
havia literalmente mais nada no posto além de arroz e café; bebiam o café sem
açúcar. As últimas quinze pedras de açúcar, Kayerts tinha-as fechado
solenemente no seu malão, juntamente com meia garrafa de cognac: — Em caso de
doença — explicou. Carlier aprovou: — Quando se está doente, qualquer mimo
extra é uma festa.
Esperavam. Um capim cerrado
começava a invadir o pátio. A sineta deixou de tocar. Os dias passavam,
silenciosos, exasperantes e lentos. Quando os dois homens falavam, rosnavam; os
silêncios eram amargos, tingidos pelo azedume dos pensamentos.
Um dia, depois do almoço de arroz cozido, Carlier pousou a chávena do café, sem lhe tocar, e disse:
Que se lixe! Vamos mas é tomar um
café decente ao menos uma vez. Vai lá buscar o açúcar, Kayerts!
É para os doentes — disse o
interpelado em voz baixa e sem levantar os olhos.
Para os doentes? — troçou Carlier: — Bah!... Pois bem! Estou doente.
Não está mais doente que eu, e eu
passo bem sem ele — respondeu Kayerts, conciliador.
Vá! Venha mas é o açúcar, seu forreta velho, traficante de escravos!
Kayerts olhou para ele espantado.
Carlier sorria-se com toda a insolência que era capaz de mostrar. E de repente
pareceu-lhe que nunca tinha visto aquele homem antes. Quem era? Não sabia nada
dele. De que seria capaz? Apoderava-se dele uma emoção violenta, como se
estivesse na presença duma coisa inesperada, perigosa, decisiva. Mas fez por
responder com toda a compostura:
Essa piada é de muito mau gosto.
Não a repita.
É piada? — disse Carlier,
crescendo na cadeira.
— Tenho fome, estou doente, não
estou a brincar! Detesto hipocrisias. Tu és um hipócrita. Tu és um negreiro. Eu
sou um negreiro. Neste país só há negreiros. Hei-de tomar café com açúcar hoje,
dê lá por onde der.
— Proíbo-o de me falar nesse tom —
respondeu Kayerts com uma clara resolução.
— Tu... O quê? — berrou Carlier,
saltando. Kayerts também se levantou.
Eu sou seu chefe — começou,
tentando dominar a voz que lhe tremia.
O quê? — gritou o outro. — Quem é
o chefe? Aqui não há chefe nenhum. Aqui não há nada: nada, a não sertu e eu.
Vai buscar o açúcar, seu pote
Tento na língua. Vá para o seu
quarto — berrou Kayerts. — Está demitido... seu malandro!
Carlier agarrou num banco. Dum momento para o outro tornara-se agressivo e
perigoso.
— Seu civil gordo! Seu inútil!
Toma!
Kayerts baixou-se do outro lado da
mesa e o banco foi embater na parede.
Então, como Carlier estava a
tentar virar a mesa, Kayerts, em desespero, fez uma investida cega, de cabeça
baixa, como um porco encurralado, e derrubando o amigo, fugiu pela varanda para
o seu quarto. Fechou a porta, puxou do revólver e ficou a arfar. (…)
O Director da Grande Companhia Civilizadora (como se sabe, a civilização segue o comércio) foi o primeiro a desembarcar e deixou imediatamente de ver o vapor. A bruma junto ao rio era extremamente densa; lá em cima, no posto, a sineta tocava sem descanso.
O Director gritou alto para o vapor:
— Não está aqui ninguém à nossa
espera; deve-se passar qualquer coisa, embora eles estejam a tocar. Era melhor
virem também comigo.
Pôs-se a escalar a margem. O
comandante e o chefe--maquinista foram atrás dele. À medida que subiam, o
nevoeiro foi-se desfazendo, e avistaram o Director já a uma boa distância. De
repente viram-no lançar-se para a frente, ao mesmo tempo que os chamava: —
Corram! Corram para a casa! Encontrei um. Corram, procurem o outro!
Tinha encontrado um! E mesmo ele,
o homem da multifacetado e sensacional experiência, ficou um tanto perturbado
com o que descobriu. Parou e remexeu nos bolsos à procura duma faca, enquanto
enfrentava Kayerts, suspenso da cruz por meio duma correia de couro. Ele tinha
trepado, com toda a evidência, à campa, que era alta e estreita, e depois de
ter atado o cinto das calças ao braço da cruz, enforcara-se. Os dedos dos pés
quase tocavam o solo - os braços pendiam-lhe ao longo do corpo; parecia
perfilado em sentido, mas com uma das faces, roxa, caída por travessura sobre o
ombro. E, irreverentemente, mostrava a língua inchada ao seu Director.
Joseph Conrad
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