«O Livro de Areia»
Pintura Senegalesa sobre Areia
228- «O LIVRO DE AREIA»
A linha consta de um número infinito de pontos, o plano, de
um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos, o híper-volume,
de um número infinito de volumes... Não, decididamente não é este, o mote
geométrico, o melhor modo de iniciar meu relato.
Afirmar que é verídico é, agora, uma convenção de todo
relato fantástico; o meu, no entanto, é verídico. Vivo só, num quarto andar da
Rua Belgrano. Faz alguns meses, ao entardecer ouvi uma batida na porta. Abri e
entrou um desconhecido. Era um homem alto, de traços mal conformados. Talvez
minha miopia os visse assim. Todo seu aspecto era de uma pobreza decente.
Estava de cinza e trazia uma valise cinza na mão. Logo senti que era
estrangeiro. A princípio achei-o velho; logo percebi que seu escasso cabelo
ruivo, quase branco, à maneira escandinava, me havia enganado.
No decorrer de nossa conversa, que não duraria uma hora,
soube que procedia das Orcadas. Apontei-lhe uma cadeira. O homem demorou um
pouco a falar. Exalava melancolia, como eu agora.
– Vendo bíblias – disse.
Não sem pedantismo respondi-lhe:
– Nesta casa há algumas bíblias inglesas, inclusive a
primeira, a de John Wiclif. Tenho também a de Cipriano de Valera, a de Lutero,
que literariamente é a pior, e um exemplar latino da Vulgata. Como o senhor vê,
não são precisamente bíblias o que me falta.
Ao fim de um silêncio respondeu:
– Não vendo apenas bíblias. Posso mostrar-lhe um livro
sagrado que talvez lhe interesse. Eu o adquiri nos confins de Bikaner. Abriu a
valise e o deixou sobre a mesa. Era um volume em oitavo, encadernado em pano.
Sem dúvida, havia passado por muitas mãos. Examinei-o; seu peso inusitado me
surpreendeu. Na lombada dizia Hali Writ e, abaixo, Bombay.
– Será do século dezanove – observei.
– Não sei. Não soube nunca – foi a resposta.
Abri-o ao acaso. Os caracteres me eram estranhos. As
páginas, que me pareceram gastas e de pobre tipografia, estavam impressas em
duas colunas, como uma bíblia. O texto era apertado e estava ordenado em
versículos. No ângulo superior das páginas, havia cifras arábicas. Chamou-me a
atenção que a página par levasse o número (digamos) 40.514 e a ímpar, a
seguinte, 999. Virei-a; o dorso estava numerado com outra cifra. Trazia uma
pequena ilustração, como é de uso nos dicionários: uma âncora desenhada à pena,
como pela desajeitada mão de um menino.
Foi então que o desconhecido disse:
– Olhe-a bem. Já não a verá nunca mais. Havia uma ameaça na
afirmação, mas não na voz. Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o
abri. Em vão busquei a figura da âncora, folha por folha. Para ocultar meu
desconcerto, disse:
– Trata-se de uma versão da Escritura em alguma língua
indostânica, não é verdade?
– Não – replicou. Logo baixou a voz como que para me confiar
um segredo:
– Adquiri-o em uma povoação da planície, em troca de algumas
rúpias e da Bíblia. Seu possuidor não sabia ler. Suspeito que no Livro dos
Livros viu um amuleto. Era da casta mais baixa; as pessoas não podiam
pisar sua sombra sem contaminação. Disse que seu livro se chamava o Livro
de Areia, porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim. Pediu-me que
procurasse a primeira folha. Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o
dedo polegar quase pegado ao indicador. Tudo foi inútil: sempre se interpunham
várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro.
– Agora procure o final. Também fracassei; apenas consegui
balbuciar com uma voz que não era minha: – Isto não pode ser. Sempre em voz
baixa o vendedor de bíblias me disse:
– Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é
exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que
estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos
de uma série infinita admitem qualquer número.
Depois, como se pensasse em voz alta:
– Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do
espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer ponto do tempo. Suas
considerações me irritaram. Perguntei:
– O senhor é religioso, sem dúvida?
– Sim, sou presbiteriano. Minha consciência está limpa.
Estou seguro de não ter ludibriado o nativo quando lhe dei a “Palavra do
Senhor” em troca de seu livro diabólico. Assegurei-lhe que nada tinha a se
recriminar e perguntei-lhe se estava de passagem por estas terras. Respondeu
que dentro de alguns dias pensava em regressar à sua pátria.
Foi então que soube que era escocês, das ilhas Orcadas.
Disse-lhe que a Escócia eu estimava pessoalmente por amor de Stevenson e
de Hume.
– E de Robbie Burns – corrigiu. Enquanto falávamos eu
continuava explorando o livro infinito. Com falsa indiferença perguntei:
– O senhor se propõe a oferecer este curioso espécime ao
Museu Britânico?
– Não. Ofereço-o ao senhor – replicou e fixou uma soma
elevada.
Respondi, com toda a verdade, que essa soma era inacessível
para mim e fiquei pensando. Ao fim de poucos minutos, havia urdido meu plano.
– Proponho-lhe uma troca – disse. O senhor obteve este
volume por algumas rúpias e pela Escritura Sagrada; eu lhe ofereço o
montante de minha aposentadoria que acabo de cobrar, e a Bíblia de Wiclif em
letras góticas. Herdei-a de meus pais.
– Black Letter Wiclif! – murmurou. Fui ao meu dormitório e
trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as páginas e estudou a capa com fervor
de bibliófilo.
– Trato feito – disse. Assombrou-me que não regateasse.
Só depois compreenderia que havia entrado em minha casa com
a decisão de vender o livro. Não contou as notas e guardou-as. Falamos da
Índia, das Orcadas e dos Jarls noruegueses que as governaram. Era noite quando
o homem se foi.
Não voltei a vê-lo nem sei o seu nome. Pensei em guardar o Livro
de Areia no vão que havia deixado o Wiclif, mas optei finalmente por escondê-lo
atrás de uns volumes desemparelhados de As mil e uma Noites. Deitei-me e
não dormi. Às três ou quatro da manhã, acendi a luz. Procurei o livro
impossível e virei suas folhas. Em uma delas vi gravada uma máscara. O ângulo
levava uma cifra, já não sei qual, elevada à nona potência. Não mostrei a
ninguém meu tesouro. À ventura de possuí-lo se agregou o temor de que o
roubassem e, depois, o receio de que não fosse verdadeiramente infinito.
Estas duas preocupações agravaram minha já velha
misantropia. Restavam-me alguns amigos; deixei de vê-los. Prisioneiro do Livro,
quase não saía à rua. Examinei com uma lupa a lombada gasta e as capas e
rechacei a possibilidade de algum artifício. Comprovei que as pequenas
ilustrações distavam duas mil páginas uma da outra. Fui anotando-as em uma
caderneta alfabética, que não demorei a encher. Nunca se repetiram.
De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia,
sonhava com o livro. O verão declinava e compreendi que o livro era monstruoso.
De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia
com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objecto de
pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade.
Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro
infinito fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta de fumaça. Lembrei
haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. Antes de me
aposentar trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros;
sei que à mão direita do vestíbulo, uma escada curva se some no sótão, onde
estão os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para
perder o Livro de Areia em uma das húmidas prateleiras. Tratei de não
me fixar em que altura, nem a que distância da porta. Sinto um pouco de alívio,
mas não quero nem passar pela Rua México.
Jorge Luís Borges
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