«A Dama do Lotação»
Sónia Braga no Papel de Dama do Lotação
245- «A DAMA DO LOTAÇÃO»
Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi bater
na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o
diabo, tomou um susto:
— Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:
— Pois é, meu pai, pois é!
— Como vai Solange? - perguntou o dono da casa. Carlinhos
ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vidro. Depois voltou e,
sentando-se de novo, larga a bomba:
— Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?
O filho riu, amargo:
— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o
diabo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de
qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:
— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
— Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato minha
mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!
«A Suspeita»
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de óptima família. O pai dele,
viúvo e general, em vésperas de aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua;
na família de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até,
ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era "um
amor" ; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: "É um
doce-de-coco". Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qualquer
coisa de extraterreno. O velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo
pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mesma noite, do aguaceiro,
coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção.
Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa
intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece uma pequena fatalidade: cai o
guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê,
debaixo da mesa, apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou
vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conversa, a três. Mas
já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: "Ora essa! Que
graça!". A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes
mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco,
Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contacto
asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro
desabafo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:
— Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com essas bobagens!
Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obsessão,
o militar condescendeu em fazer confidências:
— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta
dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu
apostava a minha cabeça que ela me traia! Vê se é possível?!
«A Certeza»
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objectivos.
Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca
de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de
qualquer maneira ele estava "certo". Três dias depois, há o encontro
acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:
— Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
— Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
— Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
— Nunca mais.
— Nem ontem?
— Nem ontem. E por que ontem?
— Nada,
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no
gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um
sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras
desnecessárias. Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
— Vem cá um instantinho, Solange.
— Vou já, meu filho.
Berrou:
— Agora!
Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carlinhos
fechou a porta, a chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então,
cruzando os braços, diante da mulher atónita, disse-lhe horrores.
Mas não
elevou a voz, nem fez gestos:
— Não adianta negar! Eu sei de tudo! E ela, encostada à
parede, perguntava:
— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que
a fizera seguir por um detective particular; que todos os seus passos eram
espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse
tudo, menos a identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revolver,
completou:
— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça
dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se
com o marido, gritando:
— Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão
selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
— Ele não foi o único! Há outros!
«A Dama do Lotação»
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento,
todas as tardes, saia de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse.
Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou
bonito; e uma vez - foi até interessante - coincidiu que seu companheiro fosse
um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado
na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
— Um mecânico?
Solange, na sua maneira objectiva e casta, confirmou:
— Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutucara o
rapaz: "Eu desço contigo". O pobre-diabo tivera medo dessa
desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aventura inverossímil foi
a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os
motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um
enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anónimos, que passavam sem deixar
vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os
conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano...
Carlinhos berrou: "Basta! Chega!". Em voz alta, fez o exagero
melancólico:
— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse
apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade,
caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora
marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a
olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como e possível que certos
sentimentos e actos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava:
"Não sou culpada! Não tenho culpa!". E, de fato, havia, no mais
íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se
entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: —
"Sem calça! Deu agora para andar sem calça, sua égua!". Empurrou-a
com um palavrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para
dizer:
— Morri para o mundo.
«O Defunto»
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata,
sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim
ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve
imóvel e muda, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:
— O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
— Pela ultima vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à empregada
que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa. Em seguida,
voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama:
aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que
ela própria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo
quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada
delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o rosário, sentou-se e
continuou o velório do marido vivo.
Nelson Rodrigues
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