«O Alma-Grande»
Conto de Miguel Torga
232- «O ALMA-GRANDE»
Riba Dal é terra de judeus. Baldadamente, pelo ano fora, o
Padre João benze, perdoa, baptiza e ensina o catecismo por perguntas e
respostas.
– Quem é Deus?
– É um Ser todo poderoso, criador do Céu e da Terra.
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, não
há quem possa desconfiar que por detrás da sagrada cartilha está plantado em
sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da morte, quando a um homem tanto lhe
importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade venha dar os últimos
retoques à pureza da ovelha, e receba da língua moribunda e cobarde a confissão
daquele segredo – abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas
deste mundo e salvar a honra do convento, o maior de que há memória é o
Alma-Grande.
Alto, mal encarado, de nariz adunco, vivia no Destelhado,
uma rua onde mora ainda o vento galego, a assobiar sem descanso o ano inteiro.
Quem vinha chamar aquele pai da morte já sabia que tinha de subir pela encosta
acima a lutar como um barco num mar encapelado.
– Raios partam o vento!
Mas quê! Do mesmo modo que o Alma-Grande era certo na casa
da esquina, sempre ao borralho, era certo o bafo da Sanábria a varrer a
ladeira.
Diante da casa, bastava gritar-lhe o nome.
– Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
– Lá vai…
Daí a nada a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho
passavam guia ao moribundo.
Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há
três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se
pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto
pelo menos igual à que tinha deixado ao morto. Os de fora olhavam-no ao mesmo
tempo com terror e gratidão. Às vezes, uma voz ou outra, depois do pesadelo,
levantava-se do fundo da consciência e protestava; mas no dia seguinte
acontecia ser essa mesma voz que no alto do Destelhado, sobrepondo-se à força
do vento, o reclamava.
– Tio Alma-Grande! Ó Tio Alma-Grande!
– Lá vai…
E aparecia à porta logo a seguir.
Quando a hora do Isaac chegou, foi um filho, o Abel, que
trepou a ladeira. O garoto vinha excitado, do movimento desusado de casa, da
maneira estranha como a mãe o mandara chamar o Tio Alma-Grande, e da ventania.
– Que tem o teu pai, rapaz?
O pequeno olhou fixamente a cara seca do abafador.
– Febre…
– Bem, vamos então lá…
– E que é que o Tio Alma-Grande lhe vai fazer?
– Vê-lo…
Pela rua abaixo só o vento falava. Rouco de tanto bradar,
monocórdico, persistente, era nele que tinha expressão a intimidade de ambos:
um, o pequeno, nervoso, inquieto, a braços com pressentimentos confusos, que se
recusavam a sair-lhe do pensamento; o outro, o velho, a aceitar aquele destino
de abreviar a morte como um rio aceita o seu movimento.
Em casa havia lágrimas desde a soleira da porta. Mas a
entrada do Alma-Grande secou tudo. Atrás dos seus passos lentos e pesados pelo
corredor ficava uma angústia calada, com a respiração suspensa.
– O que é que ele lhe vai fazer? – perguntou de novo o Abel,
agora à mãe, quando a porta do quarto se fechou.
A Lia respondeu ao filho com duas lágrimas silenciosas pela
cara abaixo.
Lá dentro, colado à cama que a transpiração alagava, o Isaac
parecia ter chegado ao fim. Branco, com dois olhos perdidos no fundo da cara,
opresso, como que só esperava a ordem de largar a vela. Tinha adoecido havia
quinze dias. Um febrão tal que o Dr. Samuel desanimou. Veio, tornou a vir, e
acabou por aconselhar que tratassem do caixão. Mas o Isaac era cedro do Líbano,
rijo, no cerne. Depois desse desengano ainda o mal o roeu seis dias sem o
comer. E sempre de olhinho vivo. Gemia, gemia, finava-se, mas com aquelas duas
contas de azeviche a reluzir. Acabou, contudo, por lhe pousar no rosto uma
sombra estranha; e a mulher, a Lia, abriu mão da esperança. Dois dias mais, e
como na sala a D. Rosa lembrasse a confissãozinha, um irmão do Isaac, o Daniel,
chegou-se à cunhada e deixou cair, entre duas palavras de consolo, o nome do
Alma-Grande. A Lia, a princípio, reagiu quanto pôde. Mas a perspectiva do padre
João a entrar-lhe pela casa dentro venceu-a. Mal rompeu a manhã, com uma voz
que fez medo ao filho, mandou-o chamar o abafador.
Quando o Alma-Grande entrou, o Isaac estava no auge de um
combate que quase sempre se trava de corpo estendido. O inimigo era uma parte
de si mesmo apostada em perdê-lo. E a outra metade, um pedaço de ser nobre e
agradecido à seiva, corajosamente defendia o resto da muralha. As bagadas pelas
têmporas abaixo e um ritmo apressado da respiração davam sinal desta guerra.
Mas de nada mais precisava, quem olhasse com limpos olhos humanos, para sentir
a grandeza e a solenidade de tal hora.
Por desgraça, o Alma-Grande não podia ver aquilo. Insensível
à profundidade dos mistérios da vida, sem o estremecimento de uma fibra sequer,
avançou para o leito num automatismo rotineiro. O seu papel não era olhar; era
ir inteiro com as mãos ao pescoço, com o joelho à arca do peito, e retirar-se
uns minutos depois, como um instrumento que tivesse cumprido correctamente a
sua função.
No seu castelo o Isaac pelejava sempre. O fole pressuroso do
arcaboiço metia ar na fornalha; espesso, cálido, activo, o suor ia brotando do
vulcão.
A casa dir-se-ia um sepulcro habitado por vivos petrificados
e mudos. Só no quarto havia movimento e palpitação.Calado, o Alma-Grande
avançou. Mas quando de mãos abertas e joelho dobrado ia a cair sobre o Isaac,
fê-lo parar uma voz diferente de todas as que ouvira em momentos iguais, que
parecia vir do outro mundo, e dizia:
– Não… Ainda não… Ainda não…
Quantas vezes o abafador tinha escutado aquilo, gritos de
desespero, apelos sôfregos e angustiados, sem se deter na sua missão sagrada!
Quantas vezes! Desta, porém, o apelo e os gemidos soavam-lhe nos ouvidos doutra
maneira.– Não… Não… Ainda não…
Um pano escuro que até ali vendara os olhos do Alma-Grande
queria rasgar-se de cima a baixo. E o abafador, paralisado entre as trevas do
hábito e a luz que rompia, lembrava uma torrente subitamente sem destino.
– Não… Ainda não… Ainda não…
Era terrível o que se passava. À luta que o Isaac sustentava
contra forças que nunca ao certo se conheceram, juntava-se o embate dos dois
homens, um a saber que ia matar, outro a saber que ia ser morto.
Estiveram assim algum tempo, de olhos cravados um no outro,
a medir-se. Pesado, o suor escorria pela cara do Isaac; quente, o sangue
martelava nas têmporas do Alma-Grande.
Foi o ruído súbito e em guincho de uma porta que fez
explodir aquela concentração. O barulho a ouvir-se, e o Alma-Grande, como um
peso suspenso e de repente liberto, a cair em cima do moribundo. Nem uma
palavra só. Apenas um baque surdo, e as mãos sôfregas do agressor à procura do
pescoço do lsaac.
Mas a porta que rangera dera entrada a alguém. A um vulto
que o Alma-Grande adivinhava atrás das costas, parado, lívido, a tentar
compreender.
Um esforço supremo do Isaac para se livrar das garras que o
apertavam e a presença atónita do Abel, tiraram às mãos e ao joelho do
Alma-Grande a força habitual. Bem que se extremara nele o assassino, o animal
que bebia a grossos tragos o fio de vida que encontrava no caminho! Bem que se
lhe avivava na consciência a certeza de que era matar a razão do seu destino!
Em vão. O puro instinto não tinha coragem para empurrar aquelas mãos e aquele
joelho diante de uma testemunha.
Ergueu-se. Com o rosto coberto por um pano de lividez igual
à do agonizante, voltou-se. E sem coragem para encarar os arregalados e aflitos
olhos do pequeno, que o varavam, silenciosamente, saiu. Atravessou a sala
cabisbaixo, longe da majestade trágica das outras vezes. Deixava atrás de si a
vida, e a vida não lhe dava grandeza.
Quando, um segundo depois, a Lia, como um bicho culpado,
entrou no quarto, o filho estava sentado na cama, com a pequena mão na testa do
pai. A criança debatia-se num agitado mar de brumas; mas o seu coração
ditava-lhe a mãozita ali, na fronte escaldante do que lhe dera o ser, do mesmo
modo que lhe ordenara já a entrada sorrateira e inquieta no quarto.
E foi talvez o gesto inocente e filial que fez correr
novamente nas veias do Isaac o sangue da confiança. Sem confissão, vinte dias
depois comia o caldo ao lume como se nada tivesse sido. E nada tinha sido
realmente para toda a gente da terra, menos para ele, para o pequeno e para o
Alma-Grande. Os outros passaram da agonia à morte e da morte à ressurreição, na
inconsciência de quem passa do calor ao frio e do frio novamente ao calor. Só
os três sabiam, de maneiras diversas, que o drama fora mais negro e profundo. O
Isaac vira as garras da morte ao natural; o Alma-Grande olhara pela primeira
vez a escuridão do seu poço; o garoto, esse, pressentira coisas que não podia
clarificar ainda no pensamento.
Vagaroso, o tempo foi deslizando; e com ele apagara-se já de
todo na lembrança da terra a doença do Isaac. Missa e Sabath.
Os três, porém, debruçavam-se sem descanso sobre o lago onde
se reflectia a imagem negra do passado. O Isaac, cada vez mais dorido, olhava,
olhava, e via a vingança; o Alma-Grande, cada vez mais culpado, olhava, olhava,
e via o medo; o pequeno, inocente, via apenas a angústia de não entender. E os
três formavam como que uma ilha de desespero no mar calmo da povoação. Não se
falavam, fora do filho a pedir bênção ao pai, do pai a dar-lha, e de uma
saudação ambígua e monossilábica do Alma-Grande ao passar pelo Isaac. Mas
traziam-se guardados uns aos outros, como se nenhum deles quisesse perder a
hora em que, para a eternidade, varressem do céu das consciências a nuvem
pesada que o toldava.
E esse momento, finalmente, chegou.
Vinha o Alma-Grande de ver a filha e os netos, em Bobadela,
quando o Isaac, que o seguia como um cão de fila, lhe saltou à estrada.
Testemunhas, só Deus e o Abel, que, sem o pai suspeitar, o acompanhava também
por toda a parte, e olhava a cena escondido atrás de um fragão.
– Não matarás…
Assim era no Evangelho. Fora dele, numa lei diferente, a
moral tinha outros caminhos, como o próprio Alma-Grande sabia.
– Não matarás…
O Isaac, porém, olhava o Alma-Grande com os mesmos olhos
implacáveis que lhe vira nas horas de agonia.
– Não… Não…
Mas o Isaac era o mais novo e o mais forte. E, quando o
Alma-Grande foi a dar conta, estrebuchava no chão, de costas, com o pescoço
apertado nas mãos do outro, e com a tábua do coração sob o peso infinito de um
joelho.
– Não… Não…
O pequeno, do penedo, via a cara congestionada do
Alma-Grande, e ouvia o esforço da respiração a forçar o garrote.
– Não…
Possantes, inexoráveis, as tenazes iam apertando sempre. E,
com mais um estertor apenas, estavam em paz os três. O Isaac tinha a sua vingança,
o Alma-Grande já não sentia medo, e a criança compreendera, afinal.
Miguel Torga
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