«Um Ardil»
Escritor Francês Guy de Maupassant
225- «UM ARDIL»
O velho médico e a jovem enferma
conversavam no canto do fogo. Ela estava levemente afetada por uma dessas
indisposições femininas que com frequência acometem as mulheres bonitas: um
pouco de anemia, nervosismo, uma suspeita de fadiga, dessa fadiga que sentem
por vezes os recém-casados, no fim do primeiro mês de união, quando fizeram um
casamento por amor.
Ela estava deitada em um sofá e dizia:
- Não, doutor, jamais compreenderei que uma mulher
engane o marido. Posso admitir que ela não o ame, que não leve em consideração
nenhuma das próprias promessas, dos próprios juramentos! Mas como atrever-se a
entregar a um outro homem? Como esconder isso de todo o mundo? Como poder amar,
imersa na mentira e na traição?
O médico sorria.
- Quanto a isso é fácil, é fácil – disse –
Asseguro-lhe que não se pensa em todas essas subtilezas, quando o desejo de
errar invade as criaturas. Estou mesmo certo de que uma mulher não está madura
para o amor verdadeiro a não ser depois de ter passado por todas as promiscuidades
e todos os aborrecimentos do casamento, o qual, na opinião de um homem ilustre,
nada mais é do que uma troca de maus humores durante o dia e de maus odores
durante a noite. Nada é mais verdadeiro. Uma mulher não pode amar com paixão a
não ser depois de ter sido casada. Se a pudesse comparar com uma casa, diria
que ela só é habitável depois que um marido lhe secou o reboco. E quanto à
dissimulação, todas as mulheres a têm para dar e vender nessas ocasiões. Mesmo
as mais ingênuas são maravilhosas, e saem magistralmente das mais difíceis
situações.
Mas a jovem senhora parecia incrédula...
- Não, doutor, só nos lembramos do que deveria ter
sido feito nas situações perigosas, depois do caso passado; e as mulheres
certamente têm mais propensão para perder a presença de espírito do que os
homens.
O médico ergueu os braços.
- Depois do caso passado, diz a senhora! Nós,
homens, é que só temos inspiração depois do caso passado. Mas as senhoras!...
Escute, vou contar-lhe uma pequena história acontecida a uma das minhas
clientes, a quem eu teria dado a comunhão sem confissão, como se costuma dizer.
Isto aconteceu em uma cidade de província.
Certa noite, eu dormia profundamente, com esse
pesado primeiro sono tão difícil de interromper, quando, em um sonho obscuro me
pareceu que os sinos da cidade badalavam, dando sinal de incêndio.
De repente, acordei: era a minha campainha, a da
rua, que tilintava desesperadamente. Como meu criado parecia não responder,
puxei por minha vez o cordão pendurado na minha cama, e, pouco depois, houve um
barulho de portas batendo e de passos perturbando o silêncio da casa
adormecida; depois, João surgiu trazendo uma carta que dizia: “A Sra. Lelièvre
pede com insistência ao senhor Dr. Siméon que venha urgentemente à sua casa”.
Refleti por alguns instantes e conclui: uma crise
de nervos, vapores, uma bobagem qualquer, e eu estou muito cansado. Respondi:
“O Dr. Siméon, não se sentindo bem, pede à Sra. Lelièvre que tenha a bondade de
chamar o colega Dr. Bonnet”.
Depois dei o bilhete dentro de um envelope e tornei
a adormecer. Meia hora mais tarde, a sineta da rua soou novamente, e João veio
dizer-me: “É alguém, um homem ou uma mulher (não consigo dizer com certeza),
que desejava falar imediatamente com o senhor. Diz ele que se trata de uma
questão de vida ou de morte para duas pessoas”.
Ergui-me do leito:
- Mande entrar.
Aguardei sentado na cama.
Apareceu-me uma espécie de fantasma negro e, logo
que João saiu, descobriu-se. Era a a Sra. Lelièvre, uma criaturinha muito
jovem, casada há três anos com um grande comerciante da cidade, o qual passava
por ter desposado a mais bela jovem da província.
Estava terrivelmente pálida, trazendo no rosto
aquele crispar das pessoas enlouquecidas; e suas mãos tremiam; por duas vezes
tentou falar, sem que de seus lábios pudesse sair um som. Afinal balbuciou:
“Depressa, depressa... depressa... doutor... Venha! Meu... meu amante morreu no
meu quarto...”
Parou, sufocada, depois continuou: “Meu marido
vai... vai... voltar do clube...”
Pulei da cama, sem mesmo me lembrar que estava em
camisa, e vesti-me em poucos segundos. Depois perguntei: “Foi a senhora mesma
que esteve aqui há pouco?” De pé, como estátua, petrificada pela angústia, ela
murmurou: “Não, foi minha criada... ela sabe...” Depois de uma pausa: “Eu tinha
ficado... perto dele”. Uma espécie de grito de dor terrível saiu-lhe dos lábios
e, após uma sufocação que a fez estertorar, ela chorou, chorou desvairadamente
com soluços e espasmos durante um ou dois minutos; depois suas lágrimas
subitamente pararam, estancaram, como se tivessem sido enxugadas por dentro,
com fogo; e, voltando a ser tragicamente calma, disse: “Vamos, depressa!”.
Eu estava pronto, mas exclamei: “Com os diabos, não
dei ordem de atrelarem o cupê!” Ela respondeu: “Tenho um, tenho o dele, que o
estava esperando”. Cobriu-se até a cabeça e partimos.
Quando a meu lado, na escuridão do carro, ela tomou-me
bruscamente a mão e, esmagando-a entre seus dedos finos, balbuciou com abalos
na voz, abalos que lhe vinham do coração dilacerado: “Oh! Se soubesse, se
soubesse o quanto sofro! Eu o amava, eu o amava perdidamente, como uma
insensata, fazia seis meses”.
Perguntei: “Estão acordados em sua casa?” Ela
respondeu: “Não, ninguém, salvo Rosa, que sabe de tudo”.
Paramos defronte à casa dela; de fato todos
dormiam; entramos sem fazer barulho, com uma chave de trinco, subindo na ponta
dos pés. A criada, apavorada, sentara-se no chão no alto da escada, com uma
vela acesa ao lado; não se atrevera a ficar junto ao morto.
Entrei no quarto. Estava desarrumado, como após uma
luta. A cama desfeita, abarrotada, ficara como à espera de alguém; um dos
lençóis estava caído até o tapete; toalhas molhadas, com as quais haviam batido
as têmporas do rapaz, estavam no chão, ao lado de uma bacia e de um copo. E um
cheiro singular de vinagre de cozinha, misturado a vaporizações de 'Lubin',
enjoava-nos desde a porta.
De costas, estendido no meio do quarto, estava o
cadáver. Aproximei-me; contemplei-o; apalpei-o; abri-lhes os olhos; toquei-lhe
as mãos, depois, voltando-me para as duas mulheres, que tremiam, como se
estivessem geladas, eu lhe disse: “Ajudem-me a levá-lo para a cama”. E o
deitamos suavemente. Auscultei-lhe então o coração e pus-lhe um espelho em
frente da boca; depois murmurei: “Acabou-se, vamos vesti-lo o mais depressa
possível”. Foi uma cena terrível de ver!
Eu pegava sucessivamente os membros do rapaz como
os de uma enorme boneca e os apresentava às roupas que as mulheres traziam.
Calçaram as meias, vestiram as ceroulas, as calças, o colete, a seguir o
casado, cujas mangas nos deram bastante trabalho para enfiar.
Quando foi preciso abotoar as botinas, as duas
mulheres se ajoelharam, enquanto eu as iluminava; porém, como os pés haviam
inchado um pouco, foi espantosamente difícil. Não tendo achado o abotoador,
fizeram o serviço com os próprios grampos.
Logo que a terrível toalete terminou, analisei a
nossa obra e disse: “É preciso penteá-lo um pouco”. A empregada foi buscar um
pente e a escova da patroa; mas como tremesse e arrancasse os cabelos compridos
e emaranhados em movimentos involuntários, a Sra. Lelièvre apoderou-se do pente
com violência e penteou a cabeleira suavemente, como se a acariciasse. Refez a
risca, passou a escova na barba, depois enrolou lentamente os bigodes no dedo,
como certamente costumava fazer, nas intimidades do amor.
E, subitamente, soltando o que tinha nas mãos,
segurou a cabeça inerte do amante e olhou demoradamente, desesperadamente,
aquela face morta, que não mais lhe sorriria; depois, caindo sobre ele,
apertou-o nos braços e beijou-o com violência. Seus beijos caiam como pancadas,
na boca fechada, nos olhos extintos, nas têmporas, na fronte. Em seguida,
aproximando-se da orelha dele – como se ainda a pudesse ouvir, para balbuciar a
palavra que torna mais ardente os abraços – repetiu dez vezes seguidas com voz
dilacerante: “Adeus, querido”.
Mas o relógio deu meia-noite.
Tive um pressentimento: “Raios! Meia-noite! É a
hora em que fecham o clube. Vamos, minha senhora, força!”
Ela se aprumou. Ordenei: “Vamos levá-lo ao salão”.
Pegamo-lo nós três, e, tendo-o levado, sentei-o em um sofá; depois acendi os
candelabros.
A porta da rua abriu-se e fechou-se pesadamente. Já
era ele. Ordenei: “Rosa, rápido, traga-me as toalhas e a bacia e arrume o
quarto; por Deus, apresse-se” Eis o Sr. Lelièvre, que vem chegando”.
Ouvi os passos subirem e aproximaram-se. Mãos no
escuro apalpavam as paredes. Chamei então: “Por aqui, meu caro; tivemos um
acidente”.
E o marido, espantado, surgiu no umbral, com um
charuto na boca. Perguntou: “Que há? Que aconteceu? Que é isso?”
Encaminhei-me para ele: “Meu velho, estamos em um
penoso embaraço. Eu havia ficado até tarde a tagarelar aqui, com a Sra.
Lelièvre e nosso amigo, que me trouxe no seu carro. Subitamente, ele caiu
desmaiado, e há duas horas que, não obstante meus cuidados, não consigo fazer
voltá-lo a si. Não quis chamar estranhos. Ajude-me a fazê-lo descer; poderei tratá-lo
melhor em sua casa”.
O marido, surpreso mas sem desconfiar, tirou o
chapéu; depois pegou por baixo dos braços o rival doravante inofensivo. Eu me
atrelei entre as pernas do rapaz, como um cavalo entre os varais de um carro; e
eis-nos a descer a escada, iluminados agora pela mulher.
Quando chegamos enfrente da porta, pus o cadáver de
pé e falei-lhe, animando-o para enganar o cocheiro: “Vamos, meu caro, isso não
há de ser nada; já se sente melhor, não é? Vamos, coragem... um pouco de
coragem... faça um pequeno esforço e está pronto”.
Sentindo que ele se ia abater, que estava
escorregando de minhas mãos, meti-lhe o ombro, o que o projetou para a frente e
o fez cair dentro do carro; subi então atrás dele.
O marido, inquieto, perguntava-me: “Acredita que
seja grave?” Respondi sorrindo: “Oh! Não!” e olhei para a mulher. Ela passara o
braço por baixo do braço do esposo legítimo, e mergulhava o olhar fixo no fundo
escuro do carro.
Apertei-lhes as mãos ordenei que partíssemos.
Durante todo o caminho o morto me caía sobre a orelha direita.
Ao chegarmos a sua casa, declarei ter ele perdido
os sentidos no caminho. Ajudei a levá-lo para o quarto, depois constatei o
falecimento; representei uma nova comédia diante da família desesperada.
Finalmente, fui para minha cama, não sem praguejar contra os amantes.
O doutor calou-se, sempre sorrindo.
A jovem senhora, inquieta, perguntou: “por que me
contou essa história espantosa?”
Ele se inclinou galhardamente:
Para oferecer-lhe os meus serviços em caso de
necessidade.
Guy de Maupassant
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