«Uma Senhora»
Afresco Senhora de Akrotiri
(Civilização Minoica)
248- «UMA SENHORA»
Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro.
Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das
empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia pôr um
paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa
revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para
botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada -
cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que
disseram pelo rádio ser higiénico e muito económico.
- Económico? Então se encera mesmo.
O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções,
largou no melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama
a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de
ferragens, pedindo duas latas de cera- da boa, vê lá! - chorando um
abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?
Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher
forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre
doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um
coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas
compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito
falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom
cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem
recebia.
Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três
desmazelados que andavam na escola pública, Elcio, Elcia e Elcina,
respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do
marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina
não tomasse as devidas precauções.
- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida -
aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com
manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma
bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a
dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...
E os exames estavam perto, com prémios de cadernetas da
Caixa Económica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais
oposicionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto de
Mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da
meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três
cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé. Bordava para fora, cuidava
do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda
para ter ciúmes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma
descarada, é certo, mas muito chique, confessava.
Chegando o carnaval, tirava a forra.
As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os
juros.
Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava
a capota do automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas
iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada
ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! Gasta aquele
dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento, dezasseis anos
por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:
- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um
sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?
Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em
forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um
turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá
diplomata.
No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos
três, perguntava para o marido:
- Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa
encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:
- Duzentos e oitenta.
- E os oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ...
pode gastar mais cento e cinquenta.
O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava
na verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência
de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos, uma
dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três
dias - falava.
Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava
ficar lá dentro.
O “lá dentro” de Dona Quinota era uma coisa complicada,
complicadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio
vindo com o rancho da filharada.
- Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de
despeitado.
- Assim, assim...
Dona Quinota dizia aquele “assim-assim” de propósito. Que
lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era
ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos:
assim, assim... Ah! Ah! Ah!
Seu Adalberto exultava:
- E isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota
sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre
assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do
Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos
perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?
As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram
sinceros:
- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!
Seu Adalberto corrigiu logo:
- Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era
crisântemo ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses
bolsos de casaca!...
- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos
também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando, espantado.
- Que diabo é isto? - ia perguntando. Por um triz que não
perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se
refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num
automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por
dentro.
Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro
do seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça,
veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do
bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do
inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota ficou
olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por
falta dum brinco: Que cretinos!
Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas
abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O
resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único
interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a
casaca.
Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só
acordando na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.
Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por
ela) já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no
Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prémio, quando
todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...
Marques Rebelo
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