«O Homem de Muitos Livros»
Conto de Hermann Hesse
229- «O HOMEM DE MUITOS LIVROS»
Era uma vez um homem que, por estranhado pavor ao tumulto da
vida, preferira retirar-se, desde sua mocidade, para a companhia tranquila dos
livros. Vivia encerrado em casa, cujos quartos e salas estavam repletos de
volumes e não tinha outras convivências e relações senão com os amados livros.
Em sua opinião, era muito mais acertado viver na intimidade da Beleza e da
Verdade, com os mais nobres espíritos da humanidade, do que expor-se ao convívio
ocasional de pessoas e aos acasos de uma existência falsa e traiçoeira. Seus
livros eram todos de autores clássicos, dos sábios e poetas gregos e latinos,
cujos idiomas ele amava e cujo mundo lhe parecia tão claro e harmonioso que,
frequentemente, não compreendia por que a humanidade abandonara aqueles
excelsos caminhos para se entregar ás piores loucuras. Em todos os domínios do
saber e do escrever, os antigos já tinham feito o melhor que se podia exigir do
espírito humano, pelo menos, pouca coisa lhes fora acrescentado em épocas
ulteriores, um Goethe, talvez. E se a humanidade realizou alguns progressos
desde então foi, unicamente, naqueles domínios que os antigos não tinham
abordado, por considerarem supérfluas, prescindíveis e transitórias tais conquistas:
a construção de máquinas, as armas de guerra cada vez mais eficientes para a
transformação de vivos em mortos, as modificações da natureza em função de
números e dinheiro. Levava o nosso homem uma vida serena, sem sobressaltos.
Passeava em seu pequeno jardim, lendo e recitando poemas de Teócrito;
coleccionava máximas antigas, e saboreava como um delicioso manjar os mais belos
pensamentos, sobretudo os de Platão. Por vezes, sentia em sua vida uma certa
estreiteza de horizontes e como que uma indigência de emoções, mas logo acudia
a um sábio de priscas que lhe ensinava, em palavras lúcidas e
convincentes, que a felicidade do homem não depende da diversidade e do
imprevisto. O ser inteligente encontrá-la-á, igualmente, no auto-domínio e na
fidelidade a si próprio. Ora, certa vez, sua vida serena sofreu uma interrupção
quando, durante a viagem a uma cidade vizinha, onde fora visitar uma famosa
biblioteca, decidiu ir à noite ao teatro.
Representava-se um drama de
Shakespeare, que ele já conhecia dos tempos de escola mas daquele modo peculiar
como se aprendem as coisas na escola e que, muitas vezes, nos tiram a vontade
de recordá-las mais tarde. Ocupou seu lugar na ampla e escura sala, um pouco
perturbado, pois não gostava de aglomerações. Ao subir o pano, não tardou que o
nosso bibliómano se deixasse empolgar e angustiar pelo enredo do drama.
Reconheceu que os artistas não eram mais do que razoáveis, mas, por cima de
todos os obstáculos e deficiências, sentiu que era dominado por uma força
avassaladora, ofuscado por mil relâmpagos fulminantes, arrebatado por
sensações que nunca experimentara antes.
Atordoado, confuso, saiu do teatro mal
o pano caiu sobre o último ato. Antes da viagem de regresso, aproveitou para
comprar as obras completas daquele autor inglês e levou-as para casa. Logo no
dia seguinte, passou horas delirantes lendo o Rei Lear, depois o Otelo, e o
Hamlet, e o Romeu e Julieta, sentado, silencioso, dias e dias a fio, envolto
numa tempestade de paixões, de pensamentos diabólicos, de aventuras fantásticas.
Os meses passavam num constante delírio e, deslumbrado, compreendeu que uma
outra face da vida lhe fora revelada, que um outro mundo se lhe abria. Vivia
agora, dentro de casa ou no jardim, constantemente cercado pelas figuras da
apaixonante galeria gerada por esse estranho poeta que parecia ter visto o
mundo pelo avesso, que era uma contradição de carne e sangue daquela marmórea
harmonia que os gregos lhe haviam ensinado e, entretanto, estava aparentemente
com a razão e a verdade. Pela primeira vez, o mundo do bibliómano fora
violentamente perturbado e sacudido em seu silêncio clássico… ou talvez já
existisse algo em seu íntimo que fora agora acordado e começava a pulsar em
suas veias com inquietas asas.
Como tudo isso era estranho! Como tudo isso era
novo! Esse Shakespeare, que já morrera há muitos anos, parecia ser um poeta
despido de ideais ou, pelo menos, eram, bem diferentes dos dos antigos, pois a
humanidade não era para ele um templo de recolhidos e sábios pensamentos, antes
um oceano de gigantescas tempestades, onde navegavam e naufragavam seres
frágeis, angustiados, ébrios de fatalidade mas capazes de viver num êxtase de
sentidos enquanto não fossem tragados pelo destino! A humanidade do poeta
movimentava-se no universo com as constelações, cada uma delas obedecendo a
impulsos predeterminados, cumprindo sua rota em virtude de uma força constante
que jamais lhes consente um desvio, até o dia em que se precipitam no abismo e
se extinguem em cinzas. Quando, por fim, o bibliómano, como se tivesse
despertado de uma bacanal, meditou sobre o que era e o que fora, e decidiu
voltar aos seus clássicos gregos e latinos, notou perplexo que eles tinham um
sabor muito diferente, um tanto insípido e mofado.
Experimentou ler então
alguns livros de poetas atuais. Estes, porém, não lhe agradaram.
Interessavam-se apenas por coisas mesquinhas e triviais, .seus problemas eram
insignificantes e pareciam não estar levando muito a sério o que escreviam. Mas
a fome de novas e grandes sensações não mais deixou de estimular o nosso homem.
Quem procura encontra. E, assim o autor que, a seguir, lhe chamou a atenção foi
um norueguês chamado Hamsun. Um estranho poeta e um estranho livro. Segundo
parecia, Hamsun — que ainda era vivo, ao que constava — dedicou sua vida a vaguear
sozinho pelo mundo afora, sem destino certo, sem crença, meio ingénuo e meio
degenerado, na busca eterna de sensações que, por momento, colocassem o seu
coração em harmonia com a humanidade à sua volta. Esse poeta não criara um
mundo, como Shakespeare, com que se pudesse dialogar, preferia falar de si
próprio.
Mas, em muitas passagens, o leitor era acometido de profundas emoções
e, não poucas vezes, de dolorida amargura. Em outras passagens, porém, era
obrigado a rir, de súbito — e também isso era uma experiência nova para ele,
pois nunca a leitura de um clássico lhe dera azo a soltar uma boa gargalhada.
Como era infantil , esse poeta, e que moço teimoso! Mas era fascinante, sem
dúvida, e quem o lia não podia deixar de escutar longínquas e arrasadoras quedas
de meteoros ou o trovejar de distantes ressacas em rochosas costas de exóticas
terras. Tempos depois, o bibliómano encontrou um grosso volume que se
intitulava Ana Karenina. Mais adiante, as poesias de Richard Dehmel. E pouco
depois deu com as obras de Dostoiévski. Desde que começara a ler Shakespeare, a
poesia como que passara a persegui-lo sem descanso. E, tão logo começava a
sentir um certo vazio, surgia-lhe como que por encanto alguém realmente capaz
de entusiasmá-lo de novo e com quem poderia falar. O nosso homem chorou e ficou
longas noites sem dormir, debruçado sobre esses livros russos. Num momento de
raiva, atirou Horácio para longe e desfez-se de uma boa quantidade dos seus
outrora tão
amados livros clássicos.
Por mero acaso, caiu-lhe sob os olhos um
livro em latim a que, até então, dera pouco valor. Sentiu então curiosidade de
o ler e assim fez, de um só fôlego: eram as Confissões de Santo Agostinho.
Depois voltou a Dostoiévski. Certo dia, ao entardecer, quando já estava cansado
de ler e lhe doíam os olhos — pois já não era nenhum jovem — caiu em profundas
cogitações. Em uma das altas estantes havia mandado gravar em letras douradas,
que o tempo já desgastara, uma frase grega que dizia: “Conhece-te a ti mesmo!”
Leu aquelas palavras e seu espírito se toldou. Sim, ele nada mais sabia de si
mesmo, não se conhecia como antes, quando um verso de Horácio, uma ode de
Píndaro, não só o extasiavam mas lhe abriam o caminho luminoso para o
conhecimento de si próprio. Sim, em suas antigas leituras ele sentia algo
pulsando dentro de si a que chamava humanidade. Com os poetas fora poeta, com
os sábios fora sábio, promulgara leis e respeitara-as; e, com uma corajosa
dignidade, afastara-se do tumulto da natureza sem alma, renunciara a um mundo
de trevas e vícios, caminhando sempre pelo caminho da Luz. Agora tudo isso fora
destruído. Não só havia lido terríveis histórias de homicídio, latrocínios,
paixões pecaminosas, suicídios, ódios, ambições desvairadas, injustiças, mas
também se deslumbrara e fascinara por esse estranho mundo, também amara,
assassinara, tinha chorado e pecado, rira e debochara, tinha caído nos abismos
mais nefandos do crime, da miséria, da perdição; trémulo de desejos e instintos
latejantes, fora atraído para domínios proibidos e sentira, simultaneamente,
medo e prazer! Suas meditações não deram frutos. Pelo contrário, não tardou a
buscar febrilmente novos e estranhos livros.
Embriagou-se no ambiente depravado
e excitante de Oscar Wilde, perdeu-se nos meandros nostálgicos e desencantados
de Flaubert, leu alguns recentes poetas franceses que lhe pareciam ferozmente
hostis à antiga ordem, a tudo o que era harmonia clássica dos helenos e
latinos, e que pregavam a revolta, a anarquia, a grandeza do vicio,
glorificando o feio e cortejando o horror. E o nosso homem concluía que também
eles tinham razão, que também tudo isso existia na humanidade, e que assim
tinha de ser. Escondê-lo seria uma fraude. A maior de todas as mentiras é
querermo-nos evadir à realidade do sangrento caos da vida. Seguiu-se um período
de abatimento e invencível cansaço. Cada livro que tomasse entre as mãos só lhe
evocava novos e perturbadores sentimentos que o distanciavam mais e mais do seu
antigo mundo apolíneo. Sentiu-se doente, velho e enganado. Um sonho revelou-lhe
seu verdadeiro estado. Sonhou que estava empenhado em erguer uma gigantesca
muralha feita apenas de livros. A muralha crescia, crescia, e ele já não podia
ver o mundo em seu redor e o próprio sol não penetrava mais no espesso muro de
livros. A obrigação dele era empilhar todos os livros do universo e construir
um gigantesco monumento. De repente, uma parte da edificação começou
balançando, livros escorregavam e caíam no vazio, uma estranha luz penetrou
pelas frestas abertas e, do outro lado da muralha em ruínas, ele viu algo
pavoroso, viu um caos apocalíptico de formas e figuras, de seres humanos e
paisagens, de recém-nascidos e moribundos, crianças e tigres, répteis e
soldados, cidades ardendo e navios naufragando, gritos alucinados e exclamações
de júbilo, sangue correndo, vinho escorrendo, archotes que corriam de um lado a
outro, deslumbrantes e cínicos… e acordou de súbito, sobressaltado, desceu da
cama, torturado por um peso esmagador sobre o coração. Foi até à janela do seu
quarto em silêncio e deixou-se ficar imóvel, iluminado apenas pelo luar.
Reconheceu as árvores defronte da janela e o livro que repousava sobre a
mesinha-de-cabeceira. E, num lampejo fulminante, percebeu tudo: Fora enganado,
fora novamente enganado por todos! Tinha lido, folheara milhares e milhares de
páginas; devorara papel e tinta com os olhos e, entrementes, por detrás da
obscena muralha de livros, a vida passara em vertiginosa cavalgada, queimando
corações, agitando paixões, gerando amores e crimes, abnegações e egoísmos,
renúncias e ambições, esparzindo sangue e vinho, derrotas e triunfos. É nada
disso lhe pertencera, em nada disso estivera, nada lhe passara pelas mãos…
nada!, apenas aquelas finas e lisas sombras estampadas nas folhas de papel de
seus livros! N ã o voltou para a cama. Desalinhado, saiu e correu pela cidade,
correu por cem ruas à luz dos mortiços lampiões, olhando para milhares de
janelas escuras, ouvindo atrás das portas fechadas o ruído de centenas de vozes
alegres, ameaçadoras, esperançosas, desesperadas. Despontou a manhã, as ruas
acordaram e, como um ébrio sem rumo, continuou vagando na pálida luz da
alvorada, a cabeça estonteada, as pernas doridas, prestes a desfalecer. Uma
moça pálida e de aspecto doentio apareceu à sua frente; ele cambaleou e a moça
levou-o consigo. Na alcova dela, o nosso homem viu-se recostado numa cama
simples e desataviada, sobre a qual havia um leque japonês, cheio de poeira e
teias de aranha. Viu a moça brincando com as suas moedas de dez talentos entre
os dedos e agarrou-lhe a mão fina e exangue: Não me deixes só! Ajude-me! Sou
velho, não tenho ninguém, só a ti! Fica comigo! Talvez eu já nada mais tenha
a esperar senão doença e morte. Mas, ao menos, quero sofrer e morrer eu mesmo
com o meu próprio sangue e o meu coração. Como és bonita! Importas-te que eu te
toque? Não? Como és gentil. Imagina que passei toda minha vida enterrado,
enterrado em montanhas de papel! Podes entender o que isso significa? Não?
Tanto melhor. Oh, ainda quero viver, ainda viveremos, sim! O sol já nasceu?
Pela primeira vez verei o sol com os meus olhos! A moça sorria, alisava-lhe os
cabelos com suas finas mãos e escutava Não entendia o homem e, na luz cinza da
madrugada, parecia ser uma frágil e mísera criatura. Também ela passara a noite
inteira na rua. Sim, sim , vou te ajudar — disse ela. — Fica calmo, eu te
ajudarei.
Hermann Hesse
2 comentários:
Obrigado Poeta por partilhares todos estes maravilhosos textos enriquecendo a vida de pessoas como eu. Um grande bem haja
Agradeço o comentário de 10 de Agosto de 2014 às 11:46, e acrescento: obrigado a todos que visitam o Poet'anarquista e aqui vêm beber um pouco d'arte.
Obrigado pela partilha mútua...
Neste caso para o comentador/a, um muito bem-haja especial!
Cabé
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