sábado, 9 de agosto de 2014

OUTROS CONTOS

«O Homem de Muitos Livros», por Hermann Hesse.

«O Homem de Muitos Livros»
Conto de Hermann Hesse

229- «O HOMEM DE MUITOS LIVROS»

Era uma vez um homem que, por estranhado pavor ao tumulto da vida, preferira retirar-se, desde sua mocidade, para a companhia tranquila dos livros. Vivia encerrado em casa, cujos quartos e salas estavam repletos de volumes e não tinha outras convivências e relações senão com os amados livros. Em sua opinião, era muito mais acertado viver na intimidade da Beleza e da Verdade, com os mais nobres espíritos da humanidade, do que expor-se ao convívio ocasional de pessoas e aos acasos de uma existência falsa e traiçoeira. Seus livros eram todos de autores clássicos, dos sábios e poetas gregos e latinos, cujos idiomas ele amava e cujo mundo lhe parecia tão claro e harmonioso que, frequentemente, não compreendia por que a humanidade abandonara aqueles excelsos caminhos para se entregar ás piores loucuras. Em todos os domínios do saber e do escrever, os antigos já tinham feito o melhor que se podia exigir do espírito humano, pelo menos, pouca coisa lhes fora acrescentado em épocas ulteriores, um Goethe, talvez. E se a humanidade realizou alguns progressos desde então foi, unicamente, naqueles domínios que os antigos não tinham abordado, por considerarem supérfluas, prescindíveis e transitórias tais conquistas: a construção de máquinas, as armas de guerra cada vez mais eficientes para a transformação de vivos em mortos, as modificações da natureza em função de números e dinheiro. Levava o nosso homem uma vida serena, sem sobressaltos. Passeava em seu pequeno jardim, lendo e recitando poemas de Teócrito; coleccionava máximas antigas, e saboreava como um delicioso manjar os mais belos pensamentos, sobretudo os de Platão. Por vezes, sentia em sua vida uma certa estreiteza de horizontes e como que uma indigência de emoções, mas logo acudia a um sábio de priscas que lhe ensinava, em palavras lúcidas e convincentes, que a felicidade do homem não depende da diversidade e do imprevisto. O ser inteligente encontrá-la-á, igualmente, no auto-domínio e na fidelidade a si próprio. Ora, certa vez, sua vida serena sofreu uma interrupção quando, durante a viagem a uma cidade vizinha, onde fora visitar uma famosa biblioteca, decidiu ir à noite ao teatro. 

Representava-se um drama de Shakespeare, que ele já conhecia dos tempos de escola mas daquele modo peculiar como se aprendem as coisas na escola e que, muitas vezes, nos tiram a vontade de recordá-las mais tarde. Ocupou seu lugar na ampla e escura sala, um pouco perturbado, pois não gostava de aglomerações. Ao subir o pano, não tardou que o nosso bibliómano se deixasse empolgar e angustiar pelo enredo do drama. Reconheceu que os artistas não eram mais do que razoáveis, mas, por cima de todos os obstáculos e deficiências, sentiu que era dominado por uma força avassaladora, ofuscado por mil relâmpagos fulminantes, arrebatado por sensações que nunca experimentara antes. 

Atordoado, confuso, saiu do teatro mal o pano caiu sobre o último ato. Antes da viagem de regresso, aproveitou para comprar as obras completas daquele autor inglês e levou-as para casa. Logo no dia seguinte, passou horas delirantes lendo o Rei Lear, depois o Otelo, e o Hamlet, e o Romeu e Julieta, sentado, silencioso, dias e dias a fio, envolto numa tempestade de paixões, de pensamentos diabólicos, de aventuras fantásticas. Os meses passavam num constante delírio e, deslumbrado, compreendeu que uma outra face da vida lhe fora revelada, que um outro mundo se lhe abria. Vivia agora, dentro de casa ou no jardim, constantemente cercado pelas figuras da apaixonante galeria gerada por esse estranho poeta que parecia ter visto o mundo pelo avesso, que era uma contradição de carne e sangue daquela marmórea harmonia que os gregos lhe haviam ensinado e, entretanto, estava aparentemente com a razão e a verdade. Pela primeira vez, o mundo do bibliómano fora violentamente perturbado e sacudido em seu silêncio clássico… ou talvez já existisse algo em seu íntimo que fora agora acordado e começava a pulsar em suas veias com inquietas asas. 

Como tudo isso era estranho! Como tudo isso era novo! Esse Shakespeare, que já morrera há muitos anos, parecia ser um poeta despido de ideais ou, pelo menos, eram, bem diferentes dos dos antigos, pois a humanidade não era para ele um templo de recolhidos e sábios pensamentos, antes um oceano de gigantescas tempestades, onde navegavam e naufragavam seres frágeis, angustiados, ébrios de fatalidade mas capazes de viver num êxtase de sentidos enquanto não fossem tragados pelo destino! A humanidade do poeta movimentava-se no universo com as constelações, cada uma delas obedecendo a impulsos predeterminados, cumprindo sua rota em virtude de uma força constante que jamais lhes consente um desvio, até o dia em que se precipitam no abismo e se extinguem em cinzas. Quando, por fim, o bibliómano, como se tivesse despertado de uma bacanal, meditou sobre o que era e o que fora, e decidiu voltar aos seus clássicos gregos e latinos, notou perplexo que eles tinham um sabor muito diferente, um tanto insípido e mofado. 

Experimentou ler então alguns livros de poetas atuais. Estes, porém, não lhe agradaram. Interessavam-se apenas por coisas mesquinhas e triviais, .seus problemas eram insignificantes e pareciam não estar levando muito a sério o que escreviam. Mas a fome de novas e grandes sensações não mais deixou de estimular o nosso homem. Quem procura encontra. E, assim o autor que, a seguir, lhe chamou a atenção foi um norueguês chamado Hamsun. Um estranho poeta e um estranho livro. Segundo parecia, Hamsun — que ainda era vivo, ao que constava — dedicou sua vida a vaguear sozinho pelo mundo afora, sem destino certo, sem crença, meio ingénuo e meio degenerado, na busca eterna de sensações que, por momento, colocassem o seu coração em harmonia com a humanidade à sua volta. Esse poeta não criara um mundo, como Shakespeare, com que se pudesse dialogar, preferia falar de si próprio. 

Mas, em muitas passagens, o leitor era acometido de profundas emoções e, não poucas vezes, de dolorida amargura. Em outras passagens, porém, era obrigado a rir, de súbito — e também isso era uma experiência nova para ele, pois nunca a leitura de um clássico lhe dera azo a soltar uma boa gargalhada. Como era infantil , esse poeta, e que moço teimoso! Mas era fascinante, sem dúvida, e quem o lia não podia deixar de escutar longínquas e arrasadoras quedas de meteoros ou o trovejar de distantes ressacas em rochosas costas de exóticas terras. Tempos depois, o bibliómano encontrou um grosso volume que se intitulava Ana Karenina. Mais adiante, as poesias de Richard Dehmel. E pouco depois deu com as obras de Dostoiévski. Desde que começara a ler Shakespeare, a poesia como que passara a persegui-lo sem descanso. E, tão logo começava a sentir um certo vazio, surgia-lhe como que por encanto alguém realmente capaz de entusiasmá-lo de novo e com quem poderia falar. O nosso homem chorou e ficou longas noites sem dormir, debruçado sobre esses livros russos. Num momento de raiva, atirou Horácio para longe e desfez-se de uma boa quantidade dos seus outrora tão 
amados livros clássicos. 

Por mero acaso, caiu-lhe sob os olhos um livro em latim a que, até então, dera pouco valor. Sentiu então curiosidade de o ler e assim fez, de um só fôlego: eram as Confissões de Santo Agostinho. Depois voltou a Dostoiévski. Certo dia, ao entardecer, quando já estava cansado de ler e lhe doíam os olhos — pois já não era nenhum jovem — caiu em profundas cogitações. Em uma das altas estantes havia mandado gravar em letras douradas, que o tempo já desgastara, uma frase grega que dizia: “Conhece-te a ti mesmo!” Leu aquelas palavras e seu espírito se toldou. Sim, ele nada mais sabia de si mesmo, não se conhecia como antes, quando um verso de Horácio, uma ode de Píndaro, não só o extasiavam mas lhe abriam o caminho luminoso para o conhecimento de si próprio. Sim, em suas antigas leituras ele sentia algo pulsando dentro de si a que chamava humanidade. Com os poetas fora poeta, com os sábios fora sábio, promulgara leis e respeitara-as; e, com uma corajosa dignidade, afastara-se do tumulto da natureza sem alma, renunciara a um mundo de trevas e vícios, caminhando sempre pelo caminho da Luz. Agora tudo isso fora destruído. Não só havia lido terríveis histórias de homicídio, latrocínios, paixões pecaminosas, suicídios, ódios, ambições desvairadas, injustiças, mas também se deslumbrara e fascinara por esse estranho mundo, também amara, assassinara, tinha chorado e pecado, rira e debochara, tinha caído nos abismos mais nefandos do crime, da miséria, da perdição; trémulo de desejos e instintos latejantes, fora atraído para domínios proibidos e sentira, simultaneamente, medo e prazer! Suas meditações não deram frutos. Pelo contrário, não tardou a buscar febrilmente novos e estranhos livros. 

Embriagou-se no ambiente depravado e excitante de Oscar Wilde, perdeu-se nos meandros nostálgicos e desencantados de Flaubert, leu alguns recentes poetas franceses que lhe pareciam ferozmente hostis à antiga ordem, a tudo o que era harmonia clássica dos helenos e latinos, e que pregavam a revolta, a anarquia, a grandeza do vicio, glorificando o feio e cortejando o horror. E o nosso homem concluía que também eles tinham razão, que também tudo isso existia na humanidade, e que assim tinha de ser. Escondê-lo seria uma fraude. A maior de todas as mentiras é querermo-nos evadir à realidade do sangrento caos da vida. Seguiu-se um período de abatimento e invencível cansaço. Cada livro que tomasse entre as mãos só lhe evocava novos e perturbadores sentimentos que o distanciavam mais e mais do seu antigo mundo apolíneo. Sentiu-se doente, velho e enganado. Um sonho revelou-lhe seu verdadeiro estado. Sonhou que estava empenhado em erguer uma gigantesca muralha feita apenas de livros. A muralha crescia, crescia, e ele já não podia ver o mundo em seu redor e o próprio sol não penetrava mais no espesso muro de livros. A obrigação dele era empilhar todos os livros do universo e construir um gigantesco monumento. De repente, uma parte da edificação começou balançando, livros escorregavam e caíam no vazio, uma estranha luz penetrou pelas frestas abertas e, do outro lado da muralha em ruínas, ele viu algo pavoroso, viu um caos apocalíptico de formas e figuras, de seres humanos e paisagens, de recém-nascidos e moribundos, crianças e tigres, répteis e soldados, cidades ardendo e navios naufragando, gritos alucinados e exclamações de júbilo, sangue correndo, vinho escorrendo, archotes que corriam de um lado a outro, deslumbrantes e cínicos… e acordou de súbito, sobressaltado, desceu da cama, torturado por um peso esmagador sobre o coração. Foi até à janela do seu quarto em silêncio e deixou-se ficar imóvel, iluminado apenas pelo luar. Reconheceu as árvores defronte da janela e o livro que repousava sobre a mesinha-de-cabeceira. E, num lampejo fulminante, percebeu tudo: Fora enganado, fora novamente enganado por todos! Tinha lido, folheara milhares e milhares de páginas; devorara papel e tinta com os olhos e, entrementes, por detrás da obscena muralha de livros, a vida passara em vertiginosa cavalgada, queimando corações, agitando paixões, gerando amores e crimes, abnegações e egoísmos, renúncias e ambições, esparzindo sangue e vinho, derrotas e triunfos. É nada disso lhe pertencera, em nada disso estivera, nada lhe passara pelas mãos… nada!, apenas aquelas finas e lisas sombras estampadas nas folhas de papel de seus livros! N ã o voltou para a cama. Desalinhado, saiu e correu pela cidade, correu por cem ruas à luz dos mortiços lampiões, olhando para milhares de janelas escuras, ouvindo atrás das portas fechadas o ruído de centenas de vozes alegres, ameaçadoras, esperançosas, desesperadas. Despontou a manhã, as ruas acordaram e, como um ébrio sem rumo, continuou vagando na pálida luz da alvorada, a cabeça estonteada, as pernas doridas, prestes a desfalecer. Uma moça pálida e de aspecto doentio apareceu à sua frente; ele cambaleou e a moça levou-o consigo. Na alcova dela, o nosso homem viu-se recostado numa cama simples e desataviada, sobre a qual havia um leque japonês, cheio de poeira e teias de aranha. Viu a moça brincando com as suas moedas de dez talentos entre os dedos e agarrou-lhe a mão fina e exangue: Não me deixes só! Ajude-me! Sou velho, não tenho ninguém, só a ti! Fica comigo! Talvez eu já nada mais tenha a esperar senão doença e morte. Mas, ao menos, quero sofrer e morrer eu mesmo com o meu próprio sangue e o meu coração. Como és bonita! Importas-te que eu te toque? Não? Como és gentil. Imagina que passei toda minha vida enterrado, enterrado em montanhas de papel! Podes entender o que isso significa? Não? 

Tanto melhor. Oh, ainda quero viver, ainda viveremos, sim! O sol já nasceu? Pela primeira vez verei o sol com os meus olhos! A moça sorria, alisava-lhe os cabelos com suas finas mãos e escutava Não entendia o homem e, na luz cinza da madrugada, parecia ser uma frágil e mísera criatura. Também ela passara a noite inteira na rua. Sim, sim , vou te ajudar — disse ela. — Fica calmo, eu te ajudarei.

Hermann Hesse

2 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado Poeta por partilhares todos estes maravilhosos textos enriquecendo a vida de pessoas como eu. Um grande bem haja

Anónimo disse...

Agradeço o comentário de 10 de Agosto de 2014 às 11:46, e acrescento: obrigado a todos que visitam o Poet'anarquista e aqui vêm beber um pouco d'arte.

Obrigado pela partilha mútua...

Neste caso para o comentador/a, um muito bem-haja especial!

Cabé