«O Encontro»
A Espera, pintura de Robson Clecio
254- «O ENCONTRO»
Conto até cem e, se não chegares antes dos cem, vou-me
embora. Não chegaste antes dos cem. Conto de cem a um e, se não chegares antes
do um, vou-me embora. Não chegaste antes do um. Conto dez automóveis pretos e,
se não chegares antes dos dez automóveis pretos, vou-me embora. Não chegaste
antes dos dez automóveis pretos. Nem antes dos quinze taxis vazios. Nem antes
dos sete homens carecas. Nem antes das nove mulheres loiras. Nem antes das
quatro ambulâncias. Nem sequer antes dos três corcundas e, entretanto, começou
a chover. Começou a chover e não há um toldo onde abrigar-me, eu que não trouxe
guarda-chuva, o céu sem nuvens quando saí de casa, previsão de céu sem nuvens
para hoje, os camelos da meteorologia deviam ser fuzilados mas infelizmente não
estamos em Cuba nem há maneira da máfia napolitana tomar conta da miséria deste
país. E, já agora, da minha miséria, feito parvo à tua espera. Encosto-me ao
prédio na esperança de me molhar menos mas as varandas, para além de pouco
salientes, pingam-me gotas enormes na nuca: amanhã, está-se mesmo a ver,
agonizo na cama a aspirinas, de termómetro debaixo do braço e a caixa dos
lenços de papel quase vazia. Contar mais corcundas inútil, todos eles em casa,
sequinhos, colados às janelas, a verem-me. Chegarás antes de acabar a chuva?
Que raio de ideia, ter-te marcado encontro neste sítio,
porque diabo não escolhi uma pastelaria, um café, um centro comercial, tudo
menos uma esquina que me disseste ser perto do teu emprego para acrescentares,
logo a seguir, juras de pontualidade, e eu a acreditar em ti, combinámos às
cinco horas e, desde a um quarto para as cinco, que estou aqui plantado, ora
num pé ora no outro, a confundir-te com todas as pessoas que se aproximam, uma
mulher ao longe e eu, de imediato:
- É ela,
de coração aos baldões e mãos suadas, a mulher sempre outra
mulher, nem me olha, aliás espanta-me que me tenhas olhado, nunca tive grande
sucesso, nunca se apaixonaram por mim, pode ser que uma vez mas tenho dúvidas,
chamava-se Carla, trabalhava na recepção de um hotel, o olho esquerdo fugia-lhe
e o olho esquerdo afastou-me, pensava que as estrábicas chorassem de maneira
diferente mas não, ainda me escreveu, não respondi, ainda me telefonou, não
atendi e depois a cidade comeu-a, julgo que continua em qualquer lado, engolida
pelo hotel, engolida pelo prédio onde mora com a mãe, engolida pelos anos que
devoram tudo, a começar pelo esquecimento. E, depois, tu. Quer dizer quase não
nos conhecemos, ficámos em mesas lado a lado na pizaria, a má criação da
empregada uniu-nos, o gosto comum pelas lasanhas vegetarianas tornou-se uma
ponte entre nós, a falha no verniz do mindinho enterneceu-me, marcámos este
encontro para um cinema, despedimo-nos com um passou bem demorado que me soube
a beijo, afastaste-te sem olhar para trás, depois de me teres consentido pagar
a tua lasanha, cada qual com o seu porta-moedas na mão, guardaste-o, a
contragosto, na carteira:
- Da próxima sou eu que pago e não admito recusas,
a próxima vez que é hoje, espero que jantar depois do
cinema, espero que segurar a tua mão que hesita, tiro, não tiro, acaba por
ficar, espero que um joelho, espero que uma bochecha no meu ombro, um primeiro
beijo tímido, um segundo que se abre em corola, um suspirozinho, dedos
exploradores no automóvel, cautelosos, medidos, arrumei o apartamento, deixei a
cama feita, comprovei que não era grande espingarda a fazer camas, o
lava-loiças limpo, os cinzeiros limpos, o jornal de ontem no balde, música
suave, pronta a funcionar, na aparelhagem, basta carregar num botão e caem-te
violinos em cima, um amigo meu garante que os violinos amolecem as mulheres,
acrescenta:
- Não me perguntes porquê mas amolecem,
e não tenho motivos para não acreditar no rapaz, três
casamentos, três divórcios, experiência, a chuva parece abrandar e eu feito um
pinto, se calhar esqueceste-te, se calhar não pensaste mais nisso, nem o teu
nome sei, para ser sincero não me lembro muito bem como és, altura média, acho
eu, cabelo castanho, acho eu, ou com madeixas, não seria capaz de esclarecer,
quem me garante que não te cruzaste já comigo, enquanto eu somava os sete
homens carecas, sem te lembrares de como sou igualmente, quem me garante que
não estavas à espera que eu sorrisse para me falares e, como não sorri,
decidiste, desiludida:
- Espera outra pessoa, vou-me embora,
e não esperava outra pessoa, que pessoa, esperava-te a ti,
espero-te a ti, de maneira que, agora que a chuva parou, vou recomeçar a contar
de um a cem e de cem a um, recomeçar a contar automóveis pretos, taxis vazios,
homens carecas, mulheres loiras, ambulâncias e corcundas, com um gosto de
lasanha vegetariana na boca, seguro de que não terei que me ir embora porque
vais chegar.
António Lobo Antunes
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