«Sombra Amiga»
Conto de Guilherme de Almeida
276- «SOMBRA AMIGA»
Não pude deixar de pensar nesse “John Doe” (1) —
nesse Homem Comum — que está animando a tela do Art Palácio, quando, na
noitinha chuvosa de anteontem, olhei em torno de mim, no ónibus abarrotado,
macio e morno.
O homem, que eu tinha a meu lado, era vago como uma capa de borracha e
simpático como um desconhecido.
— O sr., naturalmente, não me conhece. Ninguém me conhece. E isso é justamente
o meu orgulho e a minha melhor felicidade. Sabe quem sou eu? Não sabe. Ninguém
sabe. No entanto, eu estou todos os dias em todos os jornais. Eu sou aquele
"Etc.” cómodo e fácil, que é o remate comum, o exit smiling de
todas as notícias de reuniões sociais, ajuntamentos representativos em gares,
aeroportos, enterros... “Notamos a presença dos srs. A., B., C., D., E., F.
etc.”... Eu sou esse "etc.” Eu sou aquele transeunte de que falam muito
confortavelmente as reportagens urbanas: "Um transeunte deu o alarme e o
Corpo de Bombeiros acorreu prontamente”:.. Eu sou aquele “popular" que
socorre sempre cardíacos e atropelados: "Transportada por um popular à
farmácia mais próxima, a vítima recebeu os primeiros curativos”... Eu sou o
homem colectivo. Não há, na vida, melhor situação do que a minha. 0 sr. é um
homem na multidão: eu sou a multidão num homem. Todo o mundo me deve uma
atenção, um serviço; e eu não dou a ninguém o trabalho ou a honra de me
agradecer. Toda gente me incomoda, e eu não incomodo ninguém...
O ónibus parou numa esquina anónima. O homem saiu. Saiu todo banhado por um meu
longo olhar; que era de gratidão, de ternura, de admiração e de inveja.
Guilherme de Almeida
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