«Ronda das Gotas»
Conto de Dyonelio Machado
281- «RONDA DAS GOTAS»
A pequenita foi, pé ante pé, até a porta que abria para
o corredor. Estendeu um olhar longo para o fundo da casa, para se certificar de
que não era observada, e voltou, tranquila, para o seu lugar, na sala da
frente.
Subiu de novo à janela.
Era num primeiro andar.
Chovia.
Alice divertia-se vendo a chuva cair.
Bem à altura dos seus olhos, uns pingos grossos, redondos,
deslizavam, suspensos dos cabos eletrolíticos que margeavam a rua num e noutro
lado.
Vinham uns atrás dos outros. Aproveitavam um declive do fio,
doce e curvo como um seio, e precipitavam-se, velozes, como se brincassem “de
pegar”.
Alguns, pesados, destacavam-se, como grandes pérolas
hialinas, antes de atingir o seu fim – que era a junção do arame que, à altura
da sua porta, distribuía a energia elétrica à casa.
Os mais valentes, porém, triunfavam daquela distância. Às
vezes, mesmo, dois ou três, retardados pelo aclive que agora o fio apresentava
e que era necessário vencer, fundiam-se num só, que brilhava um momento,
enorme, majestoso, e ruía, depois, pesadamente.
Como se vê, era assaz animado o espetáculo.
Ordinariamente, nem bem acompanhava até o termo do seu
percurso essa gota, já outras muitas, cinco ou seis – uma multidão –
despontavam à sua esquerda, pelo outro lado da janela – cujo retângulo
cinzento, naquele dia triste de chuva, limitava o seu mundo visual.
Alice batia festivamente as palmas, quando os seus pingos
chegavam ao fim de sua jornada e ficavam ainda luzindo, antes de se diluírem,
aprisionados na malha tosca que a extremidade do fio de ligação fazia, ao
enroscar-se no cabo principal.
Alice interessava-se particularmente pela sorte das
pequeninas gotas, quando estas se precipitavam no espaço. A princípio era um
simples intumescimento claro da massa escura do condutor. Depois, com a chegada
de outras, maiores, iam crescendo, definindo-se, até tomar o vulto das demais e
seguir-lhes o mesmo caminho, como quem diz o mesmo destino, despencando-se,
finalmente, em meio do trajeto ou no seu fim, mas sempre despencando-se.
Para as crianças, como em geral para os simples e sábios,
tudo tem vida. Para as crianças, especialmente, tudo possui uma expressão
humana.
Para Alice, pois, os pingos menores eram crianças, como ela,
e os pingos maiores – adultos – os pais. Certamente eram pais extremosos
aquelas gotas grossas que vinham tomar nos seus braços fortes as gotas
pequeninas, como que abandonadas, coitaditas, no meio da estrada fria...
Ao passar pela sua frente, Alice vaticinava, secretamente, o
futuro de cada gota: esta chegará... esta não chegará... Dir-se-ia uma
pequenina bruxa, postada no caminho da vida, a profetizar para uma humanidade
também pequenina, mas igualmente atingida da incerteza e inconstância de nosso
destino...
A representação repetia-se. Alice desejá-la-ia mais variada.
Já a enfarava, pois.
Tinha, porém, uma outra curiosidade, agora. Superior ao
prazer que lhe dava a passagem ininterrupta das gotas: era descobrir-lhes a
origem!
Onde nasceriam? Longe dali? Na outra janela? – E Alice
curvava tristemente a pequenina fronte ao peso desse grande mistério, como o
homem igualmente, ante o tenebroso problema da sua própria origem...
Uma esperança, porém, atravessou-lhe o craniozinho
esbraseado! Fez-se-lhe uma luz! Talvez fosse na casa vizinha! Cada casa possuía
certamente as suas gotas, que nasciam e morriam dentro do espaço que vai de uma
à outra! Era lógico! – E Alice da mesma forma que os homens, corria
sofregamente atrás dos enganos da lógica, na necessidade de engendrar a unidade
que não existe no universo, mas que constitui a única condição da sua
explicação humana...
O seu objetivo agora era temerário. O banquinho sobre que se
achava, e que constituíra até aí o seu posto rudimentar de observação, seria
totalmente ineficaz para a acompanhar na arrojada empresa. Afastou-se, então,
como quem ia munir-se de um aparelho mais adiantado. Voltou, pouco depois, com
uma cadeira, enorme, de braços.
Fez a substituição e subiu.
Estendeu o olhar, com metade do corpo para fora.
Ela julgara que iria surpreender as gotas na sua origem
definida e palpável: uma mão potente, depositando-as, facilmente, sobre o fio,
já feitas, com vida e aquela sua forma, original e caprichosa.
Decepção!... Sobre o cabo, nada de extraordinário. As
pequenas gotas de água pareciam surgir por si, no meio dum mistério, ao mesmo
tempo simples e profundo, assegurando-se, bem assim, pelo esforço próprio, o
estado esferoidal que as distinguia...
Igualmente, não tinham lugar certo para nascer. O fio,
molhado em toda a sua extensão, parecia constituir a grande matriz,
indiferentes das gotas da chuva, que se desatavam na sua superfície, como
pequenos botões de flores, desabrochando ao longo dum galho nu.
E Alice pensou então que, de todo o espetáculo, desde a
origem do pingo d’água, até o seu fim, só o que havia de claro e de certo – era
a sua mensagem através do retângulo cinzento da janela. Era o seu fugitivo
instante de vida...
– Minha filha! Dantas! Acudam!
Alice procurava voltar-se. Só então é que viu o perigo em
que se encontrava, prestes também a desabar no abismo da rua.
O homem correu. Deitou-lhe um braço enérgico e amparador.
Retirou-a muito pálida da janela, onde ela, pela primeira vez, se debruçara
sobre o mistério da vida e da morte...
– Minha querida filha!... Que susto tu deste na tua mãe...
Dyonelio Machado
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