«O Castelo de Faria»
Ruínas do Castelo de Faria
266- «O CASTELO DE FARIA»
A breve distância da vila de Barcelos, nas faldas do
Franqueira, alveja ao longe um convento de Franciscanos. Aprazível é o sítio,
sombreado de velhas árvores. Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem
suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela solidão, a
qual, para nos servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a
saudade de seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação
das coisas celestes.
O monte que se alevanta ao pé do humilde convento é formoso,
mas áspero e severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa
descobre-se ao longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da
terra. O espectador colocado no cimo daquela eminência volta-se para um e outro
lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais
apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto
elevado da província de Entre-Douro-e-Minho.
Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu
regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de
moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de
máquinas de guerra. Claros sinais de que ali viveram homens: porque é com estas
balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para
habitar na terra.
O castelo de Faria, com suas torres e ameias, com a sua
barbacã e fosso, com seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como
dominador dos vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se
nas trevas dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre lenta que costuma
devorar os gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e
o antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no
século dezassete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no
século seguinte já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de um
historiador nosso. Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o único
eco do passado que aí restava. Na ermida servia de altar uma pedra trazida de
Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D. Afonso. Era esta lájea a mesa em que
costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. D. Afonso, que seguira
seu pai D. João I na conquista daquela cidade, trouxe esta pedra entre os
despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo
conde era. De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa pedra em ara do
cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?
Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir
o convento edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as
salas de armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das
balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou no
alto do monte, e nas faldas dele alevantaram-se a harmonia dos salmos e o
sussurro das orações.
Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos
maiores, porém, curavam mais de praticar façanhas do que de conservar os
monumentos delas. Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um
claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais heroicos feitos de
corações portugueses.
Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto
degenerava de seus antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz
com os castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados
motivos, e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição
principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando
casasse com a filha del-rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de
novo; porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o
contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com
afronta da princesa castelhana. Resolveu-se o pai a tomar vingança da injúria,
ao que o aconselhavam ainda outros motivos. Entrou em Portugal com um exército
e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio sobre Lisboa e cercou-a. Não
sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste sítio, volveremos o fio do
discurso para o que sucedeu no Minho.
O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela
província de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé e de
cavalo, enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava
inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa. Prendendo, matando e
saqueando, veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar quem lhe
atalhasse o passo; aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel, conde
de Ceia e tio del-rei D. Fernando, com a gente que pôde ajuntar. Foi terrível o
conflito; mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas
mãos dos adversários.
Entre os prisioneiros contava-se o alcaide-mor do castelo de
Faria, Nuno Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de
Ceia, vindo, assim, a ser companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso
alcaide pensava em como salvaria o castelo del-rei seu senhor das mãos dos
inimigos. Governava-o em sua ausência, um seu filho, e era de crer que, vendo o
pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais
quando os meios de defensão escasseavam. Estas considerações sugeriram um ardil
a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do
castelo, porque ele, com as suas exortações, faria com que o filho o
entregasse, sem derramamento de sangue.
Um troço de besteiros e de homens d'armas subiu a encosta do
monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O
Adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala
direita, capitaneada por João Rodrigues de Viedma, estendia-se, rodeando os
muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do castelo de Faria,
que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.
De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação
de Faria: mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao
longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o
refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram
acolher-se no terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a
cerca exterior ou barbacã.
Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e
os almocadens corriam com a rolda pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos
colocados nos ângulos das muralhas.
O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoação
estava coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos,
das mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência de
inimigos desapiedados.
Quando o troço dos homens d'armas que levavam preso Nuno
Gonçalves vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as
ameias encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos prepararam-se para
arrojar sobre os contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o
choro se alevantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.
Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e
caminhou para a barbacã, todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger
das máquinas converteu-se num silêncio profundo.
— "Moço alcaide, moço alcaide! — bradou o arauto — teu
pai, cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galiza pelo mui
excelente e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu
castelo."
Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o
terreiro e, chegando à barbacã, disse ao arauto — "A Virgem proteja meu
pai: dizei-lhe que eu o espero."
O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno
Gonçalves, e depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados
ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus guardadores, e falou com o
filho:
"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que,
segundo o regimento de guerra, entreguei à tua guarda quando vim em socorro e
ajuda do esforçado conde de Ceia?"
— "É — respondeu Gonçalo Nunes — de nosso rei e senhor
D. Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem."
— "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é
de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado
debaixo das ruínas dele?"
— "Sei, oh meu pai! — prosseguiu Gonçalo Nunes em voz
baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. — Mas não
vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a
resistência?"
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do
filho, clamou então: — "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do
castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o
traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem
no teu cadáver."
— "Morra! — gritou o almocadém castelhano — morra o que
nos atraiçoou." — E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas
espadas e lanças.
— "Defende-te, alcaide!" — foram as últimas
palavras que ele murmurou.
Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã,
clamando vingança. Uma nuvem de frechas partiu do alto dos muros; grande porção
dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do
homem leal ao seu juramento.
Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de
combate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos
e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha
sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da
cerca; o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes
da povoação, que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente com
as suas frágeis moradas.
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai:
lembrava-se de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos
os momentos o último grito do bom Nuno Gonçalves — "Defende-te,
alcaide!"
O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos
torvos muros do castelo de Faria.
O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército
castelhano foi constrangido a levantar o cerco.
Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo
seu brioso procedimento e pelas façanhas que obrara na defensão da fortaleza
cuja guarda lhe fora encomendada por seu pai no último trance da vida. Mas a
lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço
alcaide. Pedindo a el-rei o desonerasse do cargo que tão bem desempenhara, foi
depor ao pé dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, para se cobrir com
as vestes pacificas do sacerdócio. Ministro do santuário, era com lágrimas e
preces que ele podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome
dos alcaides de Faria.
Mas esta glória, não há hoje ai uma única pedra que a
ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore.
Alexandre Herculano
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