«O Buquê Azul»
Conto de Octávio Paz
258- «O BUQUÊ AZUL»
Acordei, coberto de suor. Do piso de azulejos vermelhos,
recém-regados, subia um vapor quente. Uma borboleta de asas cinzentas volteava
deslumbrada ao redor do foco amarelado. Pulei da rede e descalço atravessei o
quarto, cuidando não pisar em algum escorpião saído de seu esconderijo para
tomar ar fresco. Aproximei-me da janelinha e aspirei o ar do campo. Ouvia-se a
respiração da noite, enorme, feminina. Voltei para o centro do quarto, esvaziei
a água da jarra na bacia de latão e umedeci a toalha. Esfreguei o torso e as
pernas com o pano ensopado, enxuguei-me um pouco e, após assegurar-me de que
nenhum bicho estava escondido entre as dobras de minha roupa, vesti-me e
calcei-me. Desci pulando a escada pintada de verde. Na porta da hospedaria
tropecei com o dono, sujeito caolho e reticente. Sentado numa cadeirinha de
tule, fumava com o olho semiaberto.
Com voz rouca perguntou-me:
Com voz rouca perguntou-me:
— Aonde vai, senhor?
— Vou dar uma volta. Faz muito calor.
— Hum, já está tudo fechado. E não há iluminação pública
aqui. Mais lhe valeria ficar.
Levantei os ombros, murmurei “já volto” e enfiei-me no
escuro. A princípio não via nada. Caminhei tateando pela rua empedrada. Acendi
um cigarro. De repente a lua saiu de uma nuvem negra, iluminando um muro
branco, desmoronado a trechos. Detive-me, cego perante tanta brancura. Soprou
um pouco de vento. Respirei o ar das tamarineiras. Vibrava a noite, cheia de
folhas e insetos. Os grilos acampavam entre as gramas altas. Levantei o rosto:
lá em cima também haviam estabelecido acampamento as estrelas. Pensei que o
universo era um vasto sistema de sinais, uma conversação entre seres imensos.
Meus atos, o serrote do grilo, o piscar da estrela, não eram senão pausas e
sílabas, frases dispersas daquele diálogo. Qual seria essa palavra da qual eu era
uma sílaba? Quem disse essa palavra e para quem a disse? Joguei o cigarro sobre
a calçada. Ao cair, descreveu uma curva luminosa, lançando breves chispas, como
um cometa minúsculo.
Caminhei por um longo tempo, devagar. Sentia-me livre,
seguro entre os lábios que nesse momento me pronunciavam com tanta felicidade.
A noite era um jardim de olhos. Ao atravessar a rua, senti que alguém se
afastava de uma porta. Virei-me, mas não acertei a distinguir nada. Apertei o
passo. Em alguns instantes percebi umas sandálias de couro sobre as pedras
quentes. Não quis virar-me, embora sentisse que a sombra aproximava-se cada vez
más. Tentei correr. Não pude. Detive-me em seco, bruscamente. Antes que pudesse
me defender, senti a ponta de uma faca nas costas e uma voz doce:
— Não se mexa, senhor, ou vou enterrá-lo.
Sem virar o rosto perguntei:
— O que quer?
— Seus olhos, senhor — respondeu a voz suave, quase com
pudor.
— Meus olhos? Para que lhe servirão meus olhos? Olhe, aqui
tenho um pouco de dinheiro. Não é muito, mas é alguma coisa. Eu lhe darei tudo
o que tenho, se me deixar. Não me mate.
— Não tenha medo, senhor. Não o matarei. Só vou lhe tirar os
olhos.
— Mas, para que quer meus olhos?
— É um capricho de minha noiva. Ela quer um buquê de olhos
azuis e por aqui há poucos que os tenham.
— Meus olhos não servem. Não são azuis, mas amarelos.
— Ai, senhor, não queira me enganar. Eu bem sei que os tem
azuis.
— Não se tiram assim os olhos de um cristão. Eu lhe darei
outra coisa.
— No se faça de melindroso, disse-me com dureza. Vire-se.
Virei-me. Era pequeno e frágil. O chapéu de palha cobria-lhe
metade do rosto. Sustinha com o braço direito um facão de roça, que brilhava
com a luz da lua.
— Ilumine o seu rosto.
Acendi e aproximei o rosto da chama. O resplendor me fez
entrefechar os olhos. Ele afastou minhas pálpebras com mão firme. Não podia ver
bem. Ergueu-se sobre as pontas dos pés e contemplou-me intensamente.
A chama queimava-lhe os dedos. Joguei-a fora. Permaneceu um
instante silencioso.
— Já se convenceu? Não os tenho azuis.
— Ah, como o senhor e teimoso! — respondeu — Deixe-me ver,
acenda outra vez.
Risquei outro fósforo e o aproximei de meus olhos.
Puxando-me pela manga, ordenou.
— Ajoelhe-se.
Ajoelhei-me. Com uma mão pegou-me pelos cabelos, jogando
minha cabeça para atrás. Inclinou-se sobre mim, curioso e tenso, enquanto o
facão descia lentamente até tocar minhas pálpebras. Fechei os olhos.
— Abra-os bem — ordenou.
Abri os olhos. A pequena chama queimava-me os cílios.
Soltou-me de improviso.
— Pois não são azuis, senhor. Desculpe.
E sumiu. Acordei junto ao muro, com a cabeça nas mãos.
Depois me levantei. Aos tropeções, caindo e levantando, corri durante uma hora
pelo vilarejo deserto. Quando cheguei até a praça, vi o dono da hospedaria,
sentado ainda frente à porta.
Entrei sem dizer uma palavra.
No dia seguinte fugi daquele vilarejo.
Octávio Paz
Octávio Paz
Sem comentários:
Enviar um comentário