«Um Homem Chamado Ziegler»
Jackson Pollock, Mask 1941
261- «UM HOMEM CHAMADO ZIEGLER»
Em tempos idos, viveu na Brauergasse um jovem de nome
Ziegler. Pertencia àquele género de pessoas que encontramos todos os dias em
nossa rua mas cujo rosto nunca conseguimos recordar direito, porque todas têm
um rosto idêntico — uma cara coletiva. Ziegler era e fazia tudo o que essas
pessoas sempre são e fazem. Não era ignorante mas tampouco era uma inteligência
rara, gostava de dinheiro e diversões, gostava de se vestir bem e tinha aquela
dose de covardia da maioria das pessoas: sua vida e acções eram menos pautadas
por ambições e impulsos do que por proibições, pelo medo de ser punido. Além
disso, tinha alguns rasgos de honestidade e era uma pessoa agradável, enfim, um
homem normal, para quem a própria vida era a coisa mais importante e cara.
Tinha-se na conta, como toda a gente, de uma personalidade, quando em apenas um
espécime, e julgava-se o centro do universo, como toda a gente. Dúvidas não
existiam em sua mente e se os fatos contradiziam sua concepção do mundo,
fechava os olhos em desaprovação. Como pessoa moderna, tinha Ziegler um
respeito ilimitado pelo dinheiro e, além deste, por uma outra grande força: a
ciência. Não saberia definir exatamente o que era a ciência, imaginava-a alguma
coisa assim como a estatística, ou um pouco como a bacteriologia, e estava bem
a par de quanto dinheiro e honrarias o Estado outorga aos homens de ciência.
Tinha particular respeito pelas pesquisas sobre o câncer, pois seu pai morrera
dessa doença e Ziegler esperava que, quanto mais desenvolvida estivesse a
ciência, menores seriam as probabilidades dele morrer de câncer. Não, os
cientistas não permitiriam que tal coisa acontecesse.
Exteriormente, Ziegler
distinguia-se pela ambição de trajar sempre acima do que seus recursos o
permitiam, nunca deixando de mudar o guarda-roupa de acordo com a moda do ano.
Não lhe permitindo os recursos acompanhar a moda do mês e da estação,
desprezava os que podiam fazê-lo naturalmente, considerando-os uns mascarados,
uns palhaços. Dava muito valor à firmeza de carácter e não temia ofender, entre
os seus iguais e desde que estivesse em lugar seguro, seus superiores e o
governo. Talvez tenha demorado demais com esta descrição. Mas Ziegler era,
realmente, um moço encantador e não é culpa nossa se, sem o querermos, perdemos
demasiado tempo com ele. Pois a verdade é que, contra todos os seus laboriosos
planos e merecidas esperanças, Ziegler encontrou um prematuro e estranho fim.
Pouco depois de ter chegado à nossa cidade, resolveu ele, certa vez, passar um
domingo alegre e distraído. Não fizera ainda relações pessoais e, por falta de
decisão, tampouco ingressara em qualquer dos clubes sociais e recreativos da
cidade. Talvez tenha sido essa a causa de sua desgraça. Nunca é bom que um
homem f i que só. Assim dependia de sua própria iniciativa escolher alguma das
atracções oferecidas pela cidade aos forasteiros. Fez minuciosas indagações e,
após cuidadoso estudo, decidiu-se por uma visita ao Museu Histórico e ao Jardim
Zoológico. Aos domingos de manhã, a entrada no museu era gratuita e o Jardim
Zoológico podia ser visitado de tarde a preços reduzidos. Trajando seu novo
terno de passeio com botões forrados, de que ele gostava muito, Ziegler
dirigiu-se, no domingo de manhã, ao Museu Histórico. Levava uma fina e elegante
bengala de castão quadrado e laqueado de vermelho, que lhe conferia muita pose
e elegância; para seu profundo desgosto, porém, o porteiro do museu intimara-o
a deixá-la no bengaleiro, antes de entrar nas salas. Nas extensas galerias de
tectos altos havia muita coisa digna de ser vista e o curioso visitante
exaltava, em seu íntimo, a toda poderosa ciência que também ali exibia
fielmente sua grandeza, como Ziegler pôde constatar através da leitura das
esclarecedoras inscrições nas vitrinas.
Velhas bugigangas imprestáveis e
enferrujadas de ferro batido, colheres quebradas e cheias de azinhavre, e
muitas coisas semelhantes ganhavam com essas doutas explicações um
surpreendente interesse. Era maravilhoso como a ciência se ocupava de tudo,
como sabia pôr nomes em tudo… ah, sim! Em breve acabariam também com o câncer
e, quem sabe, com a própria morte! Na segunda sala havia um mostruário
envidraçado cujos cristais eram tão polidos e reluzentes que,
despercebidamente, Ziegler pôde dar um toque de arrumação no terno, pentear os
cabelos, ajeitar o colarinho, verificar o vinco das calças e o nó da gravata
com o zelo de um sargento passando em revista o pelotão de guardas. Sorriu
satisfeito e continuou seu passeio, dedicando a maior atenção a alguns objectos
de talha de séculos passados. Rapazes competentes, esses entalhadores, pensou
ele, embora muito ingénuos. Observou também, com um sorriso benevolente, um
antigo relógio de caixa alta, com figurinhas de marfim que dançavam o minueto
quando os carrilhões badalavam as horas. Depois, aquela geringonça toda começou
a causar-lhe um certo tédio. Bocejou e, por mais de uma vez, puxou o relógio de
bolso que, aliás, tinha o maior prazer em exibir, pois era de ouro maciço —
herança do pai. Ainda lhe sobrava muito tempo até à hora do almoço e resolveu
passar a uma outra galeria do museu que talvez lhe despertasse mais interesse.
Lá se expunham diversos objetos relacionados com as superstições da Idade
Média, pergaminhos que explicavam como fazer feitiços, tratados de magia,
amuletos, utensílios de bruxaria e, num canto, fora reconstituído um
laboratório completo de alquimista, com fogão, retortas, almofarizes, bexigas
de porco, foles e uma infinidade de outras coisas. Este recanto estava isolado
dos visitantes por um cordão e uma tabuleta advertia ser proibido tocar nos
objectos expostos. Porém, essas tabuletas nunca são lidas com muita atenção e,
além do mais, Ziegler estava sozinho na sala. Assim, esticou o braço por cima
do cordão e tocou, despreocupadamente, em alguns desses extravagantes objetos.
Já tinha lido um pouco sobre a Idade Média e suas engraçadas superstições; não
lhe entrava na cabeça como as pessoas, nessa época, podiam se ocupar em coisas
tão infantis e que, simplesmente, as autoridades não tivessem proibido essa
farsa da bruxaria e das artes mágicas. As autoridades, por vezes, têm desses
descuidos. A alquimia, porém, era diferente; podia ser perdoada pois dela
resultaria a tão útil e prestimosa química.
Santo Deus, pensando bem, todos
esses potes, e tubos, retortas de alquimista talvez tivessem sido indispensáveis,
porque sem eles era muito possível que ainda hoje não existissem a aspirina e
as bombas de gás asfixiante. Com a displicência do curioso que mata o seu
tempo, Ziegler pegou numa bolinha de cor escura, que parecia com uma pílula;
era um pedaço de massa leve e seca, virou-o entre os dedos e já se dispunha e
repô-lo em seu lugar quando ouviu passos atrás dele. Virou-se e era outro
visitante, caminhando na sua direcção. Ziegler ficou com vergonha de que o
vissem com a bolinha na mão pois, naturalmente, tinha lido o aviso na tabuleta.
Por isso, fechou a mão, meteu-a no bolso e saiu. Já estava de novo na rua
quando se lembrou da pílula. T i rou-a do bolso e pensou em jogá-la fora mas,
antes, levou-a perto do nariz e cheirou. Tinha um -aroma levemente resinoso que
lhe agradou e resolveu enfiá-la de novo no bolso. Dirigiu-se então a um
restaurante, encomendou o almoço, folheou um jornal, ajeitou o nó da gravata e
dirigiu aos outros comensais olhares ora respeitosos, ora petulantes, conforme
eles estivessem vestidos. Como a refeição demorasse, o jornal já estivesse lido
e os outros comensais inspecionados, Ziegler tirou do bolso a sua, por mero
acidente, roubada pílula de alquimista e cheirou-a outra vez. Depois, raspou-a
um pouco com a unha do dedo indicador e, finalmente, obedecendo a um impulso
pueril, levou-a à ponta da língua para ver que gosto tinha. Assim que a pílula
lhe tocou na boca derreteu-se num abrir e fechar de olhos. Não tinha gosto
desagradável e Ziegler acabou engolindo-a com um trago de cerveja. Logo depois
chegou o almoço. Às duas horas, o jovem saltou do bonde em frente ao Jardim
Zoológico e comprou um ingresso a preço reduzido. Sorridente, encaminhou-se
para o sector dos macacos e foi postar-se diante da grande jaula do chimpanzé.
O símio piscou-lhe o olho, acenou cordialmente e, em voz grave, disse: — Como
vai, querido irmão? Enojado e surpreendido, Ziegler afastou-se rapidamente e,
na retirada, ainda ouviu o chimpanzé dizer, irritado: — Não querem ver o
orgulhoso? Nem responde a um cumprimento, o ignorante pé-chato! Já assustado,
Ziegler dirigiu-se rapidamente ao cercado dos cercopitecos. Pulavam e corriam,
em suas costumeiras diabruras, e gritavam: — Dá-me açúcar, companheiro! Como
ele não tivesse torrões de açúcar para jogar-lhes, os macacos enfureceram-se,
xingaram-no de “pobre-diabo” e mostraram-lhe os dentes arreganhados. Ziegler
não suportou mais; consternado e confuso, fugiu do cercado e dirigiu-se para o
setor dos cervos e veados, dos quais esperava um comportamento mais natural. Um
grande e belo alce estava perto da vedação e olhou para o visitante. Aí é que
Ziegler realmente se alarmou. Percebeu que, desde que engohra a velha pílula
mágica, entendia a língua dos animais, E o alce falava-lhe com os olhos, dois
grandes e expressivos olhos castanhos. E esse olhar tranqüilo, que para os
outros significava altivez, resignação e tristeza, para Ziegler traduziu um
sentimento de profundo e aviltante desprezo. De acordo com a expressão
majestosa do alce, o jovem compreendeu que, apesar do seu terno domingueiro, do
chapéu, da bengala de castão ilaqueado, do relógio de ouro, o cativo apenas via
no visitante um ridículo e repugnante animal. Ziegler viu o alce voltar-lhe as
ancas e resmungar “canalha”. Fugiu para a cerca dos bodes, dali para a das
camurças, passou pelo Ihama, pelos gnus, os javalis e os ursos. Por nenhum
deles foi insultado mas por todos desprezado. Escutava-os falando entre eles e
ficou sabendo o que pensavam dos homens. Sobretudo, admiravam-se que a esses
feios, fedorentos e cruéis bípedes fosse permitido circularem livremente,
metidos em suas espalhafatosas fantasias. Ouviu um puma conversar com seu
filhote. Era uma fala cheia de dignidade e objetiva sabedoria, como raras vezes
se ouve entre os humanos. Escutou uma pantera manifestar-se, em termos
aristocráticos, sobre a gentalha que a visitava aos domingos. Encarou o nobre
leão de juba loura e ficou sabendo como era vasto e maravilhoso o mundo
selvagem onde não existiam jaulas nem seres humanos. Viu um milhafre, triste
mas orgulhoso, pousado num galho seco e que observou Ziegler com uma expressão
de confrangedora melancolia. Os gaios e pegas suportavam seu cativeiro com
muita decência, indiferentes ao que se passava do lado de fora das gaiolas, ou
trocando apenas alguns comentários trocistas e bem-humorados.
No auge da
perturbação e arrancado às normas do seu raciocínio habitual, Ziegler
dirigiu-se, em seu desespero, para um agrupamento de homens, na esperança de
encontrar um olhar que compreendesse sua aflição e medo Escutou as conversas
para ouvir algo consolador que o sossegasse, observou os gestos dos numerosos
visitantes, ansioso por surpreender em algum deles um gesto de dignidade, uma
expressão de pobreza e silenciosa superioridade humana. Mas ficou terrivelmente
decepcionado. Ouvia as vozes e palavras, via os gestos e olhares mas como
observava tudo, agora, através de uma visão animal nada mais encontrou senão
uma sociedade degenerada falsa mentirosa, de criaturas animalescas e feias que
pareciam constituir o refugo de todas as outras espécies animais. Ziegler
pôs-se a vaguear Pelo jardim, imensamente envergonhado de si mesmo A bengala de
castão laqueado já fora há muito jogada para o meio dos arbustos.
Seguiram-se-lhe as luvas. Mas quando arrancou o chapéu, descalçou as botas,
tirou a gravata, e foi encostar-se soluçando, no tapume do cercado do alce,
causou uma enorme admiração entre os visitantes de domingo, e foi internado num
manicómio.
Hermann Hesse
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