terça-feira, 16 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Voo do Jika», por Ondjaki.

«O Voo do Jika»
Jovem Zanzibar

269- «O VOO DO JIKA»

O Jika era o mais novo da minha rua. Assim: o Tibas era o mais velho, depois havia o Bruno Ferraz, eu e o Jika. Nós até às vezes lhe protegíamos doutros mais-velhos que vinham fazer confusão na nossa rua. 

O almoço na minha casa era perto do meio-dia. Às vezes quase à uma. Ao meio-dia e quinze, o Jika tocava à campainha. 

– O Ndalu tá? – perguntava à minha irmã ou ao camarada António. 

– Sim, tá. 

– Chama só, faz favor. 

Eu interrompia o que estivesse a fazer, descia. 

– Mó Jika, comé? 

– Ndalu, vinha te perguntar uma coisa. 

– Diz. 

– Hoje num queres me convidar pra almoçar na tua casa? 

– Deixinda ir perguntar à minha mãe. 

Entrei. O Jika ficou ansioso na porta, aguardando a resposta. Quase sempre a minha mãe dizia sim. Só se fosse mesmo maka de pouca comida, ou muita gente que já estava combinada para o almoço. Se a avó Chica viesse, ia trazer também a Helda, e assim já não ia dar. 

Mas normalmente a minha mãe dizia mesmo «sim». E ficava a rir. 

– A minha mãe disse que podes. 

– Ah é? – ele pareceu surpreendido. – E a que horas é que vocês vão almoçar? 

– Ao meio-dia e meia, Jika. 

– Então vou pedir na minha mãe. 

Deixei a porta aberta. O Jika devia voltar sem demora quase nenhuma. Gritou contente, cá de baixo, na direcção da janela do quarto da mãe dele: 

– Maaaaãe, a tia Sita me convidou pra almoçar na casa dela. Posso? 

– Podes. Mas vem mudar essa camisa suada. 

O Jika deu uma esquindiva, fingiu que já tinha mudado, veio a correr numa transpiração respirada. Contente. Olhos do miúdo que ele era. Fosse o melhor programa da semana dele. E eu, mesmo miúdo candengue, fiquei a pensar nas razões do Jika não gostar nada de almoçar na própria casa dele. 

O Jika estava habituado a muita gasosa. Nesse tempo, se houvesse gasosa na minha casa era para dividir. Como nós éramos três, eu e duas irmãs, quando o Jika vinha almoçar, até a divisão corria melhor. Ele por vezes queria fugir desse ritual: 

– Tia Sita, posso beber uma gasosa sozinho? 

– Sozinho, bebes na tua casa – a minha mãe respondeu. 

– Aqui divide-se. 

Depois do almoço, o Jika disse que ia à casa dele buscar «uma coisa». Eu fiquei à espera, no portão aberto. Prometeu não demorar. Voltou com a tal coisa escondida debaixo do braço, e entrámos rapidamente na minha casa. Subimos ao primeiro andar, fomos até ao quarto da minha irmã Tchi, e saltámos da varanda para uma espécie de telhado. Aproximámo-nos da berma. Lá em baixo estava a relva verde do jardim. O Jika abriu um muito, muito pequenino guarda-chuva azul. 

– Põe a mão aqui – ensinou-me. – Agora podemos saltar. 

– Tens a certeza? – olhei para baixo. 

– Vamos só. 

Saltámos. 

A infância é uma coisa assim bonita: caímos juntos na relva, magoamo-nos um bocadinho, mas sobretudo rimos. O Jika teve outra ideia. 

– Calma só, mô Ndalu. Vou na minha casa buscar um maior. 

– Não, Jika, desculpa lá. Vais saltar sozinho, eu já num vou saltar mais de guarda-chuva. 

– Nem num bem grande que tenho, daqueles da praia, anti-sol e tudo, colorido tipo arco-íris? 

– Nem esse! 

O Jika ficou desanimado. Sem outras propostas para brincadeiras perigosas, decidiu ir para casa. Ao cruzar o portão, falou ainda: 

– Posso te perguntar uma coisa? 

– Diz, Jika. 

– Amanhã num queres me convidar pra almoçar na tua casa? 

Ondjaki (Angola), in Os da Minha Rua

Sem comentários: