A 15 de Outubro de 1911, nasce o escritor neo-realista
português Manuel da Fonseca. Natural de Santiago do Cacém, descreveu a vida
dura dos alentejanos em obras como Planície (1941), Cerromaior (1943) e Seara
de Vento (1958).
Poet'anarquista
«O Vagabundo na Esplanada»
Esplanada do Café em Arles à Noite
(Vincent van Gogh)
297- «O VAGABUNDO NA ESPLANADA»
A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato
desejo de mais acautelada perspectiva de observação, levava os transeuntes a
afastarem-se de esguelha para os lados do passeio. Pela clareira que se abria,
o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida
abaixo. Cerca de cinquenta anos, atarracado, magro, tudo nele era limpo, mas
velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco,
puído nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas,
que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos
joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de
osso e nervo, saídas como duas ripas dos sapatos cambados. Caído para a nuca,
copa achatada, aba às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso do homem, de
onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e
compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de
caminhar pela cidade.
Alheado, mas condescendente, seguia pelo centro do passeio
com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas
para quem passa. Não só por educação mas também pelos simples motivo de ter
mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao
primeiro relance, se desviavam, oblíquos, da deambulante causa do seu espanto.
E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio
em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os
problemas, todos os compadrios, todas as obrigações que os enrodilhavam. E
sempre submersos de prepotências, sempre humilhados e sempre a fingir que nada
disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliviava-os a
unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua.
Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos,
do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o
homem havia de sofrer. No entanto alguém disse:
– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela
cidade.
E assim resmungando, se dispersavam, cada um às suas
obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção.
De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas
moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as
conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios
para o sol da tarde quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de
um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro
consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do
empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras
um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos
ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões
desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a
indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés
cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de
um jornal, e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Estendeu as
pernas, cruzou um pé sobre o outro. Céptico, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima
ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se, circunvagando os olhos,
como se gritassem: "Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este
tipo!" Nas caras, descompostas pelo desorbitado melindre, havia o que quer
que fosse de recalcada, hedionda raiva contra o homem mal vestido e tranquilo,
que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço,
muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode...
E calou-se. O homem olhava-o com benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz,
hesitando. – Está além escrito.
Depois de ler o dístico, o homem, com a placidez de quem, por mera distracção,
se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem... – volveu o empregado. – A gerência não admite...
Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros,
como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes.
O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom
baixo e magoado. – Aqui para nós, também me não parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do
jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à
gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.
Manuel da Fonseca
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