«Na Aldeia»
Aldeia perto de Pontoise, por Camille Pissarro
306- «NA ALDEIA»
Faz neste S. Martinho quatro anos que, pelo tempo de varejar
os castanheiros, se passou o que vou narrar nos bens do tio João da Serra,
lavrador que enceleira não menos de trinta carros de pão em anos fartos, e
envasilharia dez pipas de vinho se a moléstia das vides lhe não tivesse há
muitos anos convertido o lagar em uma arca para onde se atira tudo, menos uvas
no tempo. Na trave penduram-se agora os ensinamentos e as palhoças dos moços.
Na pia arrecadam-se os fueiros, os vimes das ataduras, o aparelho da égua, e
quando Deus quer, por não haver mais para que ela sirva, as canas de amparar as
dálias no quinteiro e as estacas no faval.
A abegoaria do tio João é bucólica como um quadro de Leopold
Robert ou uma paisagem do Sr. Thomaz da Anunciação. Nada lhe falta: nem o
enorme alpendre do palheiro com a sua escada exterior e os seus postiguinhos de
portas corrediças, nem as paredes musgosas dos currais, nem o carro de mato por
descarregar a um canto, nem o bezerrinho que pula, nem o boi que rumina
pachorrentamente tendo voltado para a gente a sua fisionomia de boa pessoa, nem
a pia aonde se traz o gado a beber, nem os bácoros que bufam por baixo da
esburacada porta do eido.
Era uma tarde de domingo, sem o sol no céu, sem aves na
terra, sem a vaga harmonia do trabalho ao menos! Era uma tarde profundamente
triste como são na aldeia as de todos os domingos de Inverno.
As nuvens esfarpadas pelo vento do sul passam rapidamente
deixando ver a espaços fugitivos o azul do céu. Por baixo das ramadas pançudas
que rodeiam a casa, no solo formado de mato empilhado e folhas secas,
empoçam-se as pegadas como numa enorme esponja embebida em lágrimas. Os galhos
das árvores inteiriçados e denegridos baloiçam violentamente alguns pobres
pardais que piam de fome desesperada, despegando com o bico as penas do peito,
e sacudindo em estremeções as asas encharcadas em chuva. A luz é tão escassa e
tão cinzenta que as galinhas já não vêem às quatro horas da tarde, e estão
esperando que as recolham, à porta da capoeira, imóveis e arrimadas umas nas
outras.
Pedro, um dos criados de João da Serra, simpático rapaz, de
melancólicos olhos pretos, e faces mal assombradas ainda da penugem dos dezoito
anos, estava sentado no bordo da eira que entesta com a abegoaria, com as mãos
nos bolsos das calças e as pernas ao dependuro, abstraído, imóvel como a
estátua da tristeza, que aí tivessem posto a olhar para a roda da azenha, que
lá em baixo, no fundo do vale, se estava debatendo e chorando no rio.
Em que cismaria o pobre moço?…
Enjeitado, e não sabendo ler nem escrever, que memórias
teria ele no seu coração e no seu espírito? Que desacompanhada tristeza não
seria essa!
Acordou de tão desconsolado enlevo quando a filha do tio
João da Serra, tendo-se aproximado sem que ele a pressentisse lhe bateu no
ombro e lhe disse sorrindo, como quem lhe sabia o segredo:
— Deixa-te disso, Pedro!
Ele ergueu a vista, cravou-a por algum tempo nos grandes
olhos meigos da filha do tio João, e tornou-lhe tristemente:
— Não posso, Margaridinha, deixar-me disto, não posso! Se a
vejo sempre! sempre, por toda a parte, dentro e fora de mim, como se a
Margaridinha viesse do céu para me dar tudo o que Deus me não quis dar quando
eu nasci! para me servir de mãe e de pai, de consolação e de alegria… a mim que
não tenho pai, nem mãe, nem soube nunca o que era o contentamento de ser
acalentado por quem me quisesse bem neste mundo!
Havia uma tão profunda convicção nestas palavras,
conhecia-se tanta infelicidade na raiz dessa singela declaração, que Margarida
voltou o rosto para enxugar furtivamente os olhos, e disse como para fugir
daquela situação:
— Deixa-te de coisas tristes! vem daí, anda! vamos varejar
um castanheiro, que meu pai quer ajustar hoje oito razas de castanhas como as
que lá estão no celeiro, para mandar à feira de amanhã.
E dizendo isto, pegou a rapariga em dois cestos que pousara
no bordo da eira, e galgando airosa e leve um pequeno muro, tomou, acompanhada
do moço, pelo caminho dos castanheiros seculares, que pela encosta ostentavam
as suas enormes frondes carregadas de ouriços.
Pedro voltou muito outro do que fora. Ria-lhe a felicidade
no olhar como ri uma bandeira a uma janela em dia de festa.
À noite, quando ele saía da parte da casa em que está a
cozinha e onde habita a família do tio João, para passar ao seu quarto, que
ficava, como o dos outros criados da lavoura, em casa fronteira e separada
daquele pelo espaço da abegoaria, saiu-lhe ao encontro Margarida.
A pobre rapariga parecia querer falar, mas não pôde.
Abraçou-o pelo pescoço, e fugiu abafando os soluços e deixando a face de Pedro
húmida das lágrimas dela.
Pouco tempo depois era voz pública em toda a freguesia que
andava coisa de outro mundo em casa do tio João da Serra.
Com quanto ninguém tivesse visto o avejão, sabia-se que por
altas horas lá se ouvia o rir e o cochichar das bruxas a discutir seus
malefícios, sentindo-se depois, ao cair da meia-noite, uma pancada como de
corpo morto que desabasse de cima de um telhado no chão.
E a esse baque correspondia o grito medonho de uma coruja na
torre da igreja e o uivar agourento de vários cães.
Diziam uns que era a alma do escrivão da fazenda, que vinha
ao mundo a requerer missas para poder despenar-se do fogo do purgatório e
entrar no céu descarregada do que roubara aos pobres. Outros estavam ainda mais
por que fosse o espírito de Luísa dos Moinhos a pedir em casamento um
proprietário da terra, que ao pai emprestara três centos de mil réis e a ela
matara de amor desprezado.
Como quer que fosse, na casa do tio João andavam todos
tolhidos de medo, e nas redondezas dela não passava ninguém depois das
ave-marias, sem se persignar e fazer o credo em cruz.
Tinham decorrido cinco meses depois do varejo dos
castanheiros, quando uma noite o tio João se sentou à mesa da ceia mais
taciturno que nunca.
Algum caso bem extraordinário se devia ter passado, pois que
o tio João, pela primeira vez durante a sua existência de setenta e nove anos,
deixava de comer nessa noite!
Acabada a ceia ergueu-se o velho, e depois de certificar-se
de que todas as portas estava fechadas e que ninguém de fora o ouvia, disse
grave e energicamente:
— Margarida, hás-de dormir hoje no meu quarto, ao pé de mim
e de tua mãe.
E como a rapariga, já de pé, empalidecesse de súbito, e se
recostasse à mesa para não cair:
— Segura a tua filha, Teresa, prosseguiu ele falando com a
mulher; segura-a tu, que já não pode ter outro amparo, nem na terra nem no céu,
essa infeliz!
Depois que as duas mulheres saíram, João, a sós com o irmão
mais velho de Margarida, pegou em um clavina que estava a um ângulo da sala,
tirou da algibeira um cartucho que mordeu, carregou esmeradamente a arma,
escorvou, raspou a unha do dedo polegar no gume da pederneira, e disse ao
ouvido do filho, tão baixo que só ele o pudesse ouvir:
— Vai para o quarto da Margarida. Alta noite há-de alguém
abrir-te as portas da janela… Não tenhas medo, sossega que não são bruxas! É um
homem. Entrego-to, porque já não tenho vista para a pontaria, nem força para o
receber eu mesmo, apertá-lo ao coração e esmagá-lo num abraço. Vai tu. Espera-o
de frente, aperra essa clavina, e desfecha-lha no peito.
O irmão de Margarida foi ocupar o posto que o pai lhe
assinalou, e, sentado no leito, ia com uma oração que a mãe lhe ensinara
esconjurar pela sétima vez uma legião de almas do outro mundo que lhe bailava
na escuridão do quarto, quando um leve rumor como de quem trepasse pela parede
exterior da casa o obrigou a preparar a clavina, e a pôr-se em guarda.
Daí a pouco as portas da janela desenvidraçada abriam-se
impelidas de fora, e um vulto de homem sobressaía do fundo estrelado do céu. Em
seguida e quase simultaneamente partiu o tiro, desapareceu o vulto, ouviu-se o
baquear de um corpo no pavimento da abegoaria, e um silvo de coruja ecoou para
os lados do presbitério.
O irmão de Margarida, com os cabelos estacados, fechou
imediatamente a janela, e deitou-se.
Os criados e os vizinhos, que nessa ocasião acordaram,
benzenram-se, meteram a cabeça debaixo da roupa da cama, e encomendaram-se ao
seu anjo custódio e ao Santíssimo Breve da Marca.
Na madrugada imediata os moços do tio João da Serra
encontraram na abegoaria, e quase por baixo das janelas da casa, um homem caído
de bruços numa poça de sangue. Ergueram-no.
Era o Pedro, o Pedro que aí estava morto e varado por uma
carga de zagalotes.
Acudiu gente, e cada um explicou o caso a seu modo, não
rastreando ninguém nem remotamente a verdade do caso.
O único que se absteve de toda a espécie de comentários foi
o escrivão que lavrou o auto.
— A lei não procede por conjecturas temerárias! disse o
conspícuo magistrado.
João da Serra ergueu-se de madrugada, aparelhou a égua, e
partiu para uma feira que havia a três léguas de distância.
Margarida, que passara toda a noite a rezar com Teresa,
disse-lhe pela manhã com olhos enxutos:
— Adivinho o que se passou. É justiça, minha mãe! Quando a
desonra mancha uma família, é preciso que a nódoa se lave: a que caiu nesta
casa há-de desaparecer de todo.
E depois acrescentou:
— Confio em Deus. É impossível que não haja no céu um canto
qualquer para os infelizes que são de mais neste mundo.
Pedro foi enterrado nesse mesmo dia. Era ao fim da tarde, de
uma esplêndida tarde de Primavera, quando o prior da freguesia se retirava do
cemitério acompanhado de alguns homens e mulheres, que por curiosidade ou
afeição haviam acompanhado à última morada o cadáver do infeliz.
Os rapazes caminhavam pensativos, as velhas rezavam
silenciosamente os seus rosários, e esse modesto cortejo da morte parecia
trazer consigo uma vaga tristeza por entre a várzea florida, gorgeada e alegre
que vinha atravessando.
O cemitério ficava do outro lado do rio. A multidão
regressando endireitava caminho atravessando o passadiço que há por cima da
levada, quando de repente se ouviu um grito de muitas bocas. Margarida, a filha
do João da Serra, que vinha também do cemitério, tinha caído ao açude!
Acudiram-lhe logo com socorros e tiraram-na da corrente.
Estava morta. A roda da azenha, perto da qual se despenhara, fracturando-lhe o
crânio matara-a instantaneamente.
— Cruzes! t’arrenego! disse então um dos mais incrédulos em
causas do outro mundo, olha de que casta foi o enguiço que caiu em casa do tio
João!
— Eu cá de mim acredito. Em nome do Padre e do Filho e do
Espírito Santo, amén!
Ramalho Ortigão
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