A 25 de Outubro de 1984, o
escritor português Virgílio Ferreira era eleito para a «Academia
Brasileira de Letras».
Poet'anarquista
«O Fantasma»
O Fantasma/ Picasso
307- «O FANTASMA»
Entrado no Café, M sentou-se, como de costume, do lado
esquerdo, frente à porta. Chovia, o café abafava de gente. Para M era cómodo
ter já os movimentos mecanizados, executar tudo com perfeição, sem perturbar as
divagações em que costumava perder-se. Mas não hoje. O criado veio, num giro
rápido de dançarino, voando com a bandeja em equilíbrio difícil, por sobre as
mesas apinhadas, sobre alguns capotes amontoados nos intervalos. E de passagem,
largou-lhe o garoto diante. A noite, por causa das insónias, tomava
apenas um garoto. Na realidade, só uma vez admitira que o café simples lhe
estragasse o sono. Mas desde então, o criado habituara-se a trazer-lhe café com
leite e M não o contrariou. Foi bebendo devagar, os olhos fixos no copo ou na
mesa, pelo receio de que o sujeito aparecesse. Era um copo facetado, uma mesa
de mármore negro com veios brancos como rastos de nuvens. A superfície escura
do café baixava no copo; foi por fim o resto barrento e pastoso do açúcar. E M
teve enfim de encarar a multidão. Num extremo do café, que assim longo sugeria
um troço de estrada subterrânea, a porta giratória rodava continuamente,
apanhando, com as pás, gente que atirava para dentro ou atirava para a rua.
Lembrava a M uma roda dos antigos barcos do Mississipi. Como àquela distância
ninguém poderia reconhecê-lo, pôs-se a acompanhar a rotação da porta até lhe
doer a cabeça. A gente que entrava batia os pés e a que saía erguia a gola dos
capotes. A certa altura, porém, uma das pás envidraçadas atirou para dentro com
o tipo. Era baixo, anegrado e seco, tinha uma boca podre e olhos frios. A pele
lembrava um bocado de couro velho, já sem préstimo, do que aparece entre o
lixo. M acompanhou-o de esguelha, passo a passo, por sobre o muro de gente,
vendo-lhe só o chapéu. Tinha a esperança de que se acomodasse lá para trás,
numa das mesas do fundo. Mas o homem, depois de circunvagar os olhos enxutos,
sentou-se tranquilamente do lado direito, virado para ele. Seria cómoda, para
M, a posição do tipo, se a cortina de gente os separasse sempre. Mas os
corredores iam ficando livres, havia até algumas mesas vazias. Devia ser a hora
do cinema. M via o homem perfeitamente. Perturbou-se, olhou aos lados, outra
vez para a porta, puxou enfim do bolso, vagarosamente, o papel e a onça, pôs-se
o embrulhar um novo cigarro. Tinha a certeza de que o sujeito o fitava por
baixo do chapéu desabado, com aqueles seus olhos frios, vagarosos, mas
directos, que se colavam e oprimiam como os pára-choques dos vagões. M arrastou
o olhar pelo chão, ergueu-o até ao relógio suspenso no tecto, como se esticasse
tiras de borracha que lho puxassem para outro lado. Estava irritado com os
colegas que não apareciam enfim para lhe fazerem companhia, dissolverem-lhe a
presença. Não seria então estranho que não cumprimentasse o sujeito, visto
estar distraído com os colegas. Tinham-lho apresentado precisamente na véspera
e, como estava numa roda conhecida, falou um tanto à vontade. M costumava
excitar-se numa conversa, falar a descoberto, com a obscura convicção de que a
sua espontaneidade era prova de inocência ou de que era inofensivo. Aliás, as
suas ideias andavam nos compêndios. No entanto, não andavam lá as conclusões. O
homem magro disse apenas:
— Raciocínios curiosos.
Dissera isto vagarosamente, rodando a cabeça com os seus
olhos pregados, e em volta correu um silêncio de expectativa. M tremeu. Quem
era o tipo? A máscara do homem, negra e de um amarelo de azeite, toda esburgada
de ossos, tinha a frieza e indiferença de uma máscara de cadáver. Só depois de
o homem se afastar, um amigo lhe tomou o braço e lhe explicou. Agora o homem
estava ali diante, com o mesmo olhar torvo, e M lutava por não cumprimentá-lo,
como se o não tivesse visto. Encaixou o queixo na cova da mão e olhou o ar,
para que todos o julgassem absorto. Estudava História, Economia, e, como vivia
quase só, nada admirava que estivesse absorto. Mas a presença do homem
obcecava-o. Sentia-lhe o peso do olhar sinistro. Se ao menos o outro estivesse
acompanhado de qualquer pessoa desconhecida.
Mas não. Sozinho também diante do copo, tinha por certo de
descansar a carga dos olhos na mesa oposta. Tinha? M trouxe os olhos do ar,
vergando um pouco a cabeça e, lentamente, foi torcendo à esquerda, puxando-os quanto
podia para o canto, até doerem. Estacou: a mesma cara de múmia, o mesmo brilho
frio dos dois olhinhos pretos. Até que ponto se teria comprometido? Passara
todo a manhã num alvoroço, esperando a cada instante que lhe batessem à porta
com o anúncio da condenação. Mas nada viera. Certamente o homem deixava passar
alguns dias, para o colher de surpresa. O criado passou à beira da mesa
carregado de cafés e bateu, com a mão livre, uma pancada seca na pedra.
Estremeceu. Estaria o tipo mesmo a olhar para ele? Puxou o chapéu para a testa,
tentou de novo. Melhor talvez deixar cair os fósforos e aproveitar, quando os
apanhasse. Porém, outra vez M teve a impressão de que o tipo se lhe colava aos
gestos, observando exactamente como apanhava os fósforos. Agitou-se na cadeira,
atirou os olhos a uma parede, disposto a deixá-los para ali, até que os colegas
viessem. Mas não aguentou. Doía-lhe a memória daquele olhar duro e começou a
imaginar quantas tragédias o tipo teria presenciado. Porque uns olhos assim,
serenos e cruéis, só depois de um treino longo poderiam ter chegado àquela
isenção perfeita. Num golpe de audácia, voltou-se. Aí estava: o homem olhava
distraidamente para os lados, passara mesmo a mão velha pela fronte. Porém,
logo a seguir, a mão compôs o chapéu e de novo a cabeça, com aqueles olhos
estáticos, torceu para a direita. Outra vez o criado lhe passou à ilharga,
batendo a pancadinha com os nós dos dedos. Vinha do balcão com a bandeja no ar,
erguia a mão direita de dedos fechados, chegava ali e descarregava a pancada
sempre na mesma mesa. Era decerto um hábito que lhe dava grande prazer, porque
de vez nenhuma que passou para baixo esqueceu o toque seco dos nós dos dedos
sobre o mármore.
Agora M puxou o lenço do bolso e tentou de novo. Precisava
de ter uma certeza. Infelizmente, porém, sentara-se à mesa do tipo um sujeito
que M conhecia há mais tempo. Eram agora dois pares de olhos; e, se desse de
frente com um deles, teria de cumprimentar um e outro. Começava a sentir-se
verdadeiramente mal, um vago enjoo ondeava-lhe o estômago. Seria do fumo, de
estar para ali uma eternidade numa atmosfera empestada. Mas para onde ir? Lá
fora chovia, para casa era ainda cedo. Voltou à porta giratória, mas dos pulhas
dos colegas nenhum era atirado para o café. Pelo corredor central passou o pai
de um seu amigo, mas, para lhe tirar o chapéu, teria de aproveitar exactamente
a ocasião em que lhe passasse na linha recta que o ligava ao outro. Baixou os
olhos para a mesa, tamborilando, concentrado. Fora simplesmente grosseiro; o
velho podia dizer ao filho que M fingira não o ver. Poça! Já não aguentava
mais.
Uma vez, porém, uma vez ainda se sentiu fascinado. Com
certeza os dois sujeitos estavam já falando dele, o homem de olhar morto e
feroz trocaria impressões, diria coisas sinistras ao outro. Sentiu-se condenado
e outra vez o terror o inundou. Arre! Tudo esquecera! Tudo fora uma tragédia
tecida de fumo. Em todo o caso, olhou. Meteu a mão ao bolso, puxou de novo os
olhos ao canto: o olhar gélido do homem, de sob a aba do chapéu, circunvagou
lentamente pela sala, veio pousar na mesa dele.
Arredou os olhos bruscamente e meteu num ímpeto os fósforos
no bolso.
— Pró diabo o gajo e os olhos do gajo.
O criado passou de novo com a bandeja e a pancadinha. M
ergueu-se, ergueu a gola do sobretudo, veio trazendo os olhos pelo chão até à
porta. Chovia ainda, chovia sempre.
Vergílio Ferreira
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