27 de Outubro de 1892, nasce o escritor brasileiro Graciliano Ramos.
Poet'anarquista
«Um Amigo em Talas»
Rua Mosnier decorada com bandeiras
com um homem de muletas
(Edouard Manet)
309- «UM AMIGO EM TALAS»
O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um
homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros
hóspedes.
Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente
pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir
que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia,
contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e
recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major
Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.
Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma
cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em
cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme.
Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia
inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que
provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a
uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de
psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou
cinquenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto
vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.
Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os
artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num
semanário: “Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de
desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita
trabalho”.
O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois,
nos declara Amadeu Amaral Júnior: “Minha situação continua preta. Reitero o apelo
às almas bem formadas: deem de comer a quem tem fome, uma fome atávica,
milenária. Dêem-me trabalho.” E, catalogando as suas habilidades: “Escrevo
poesias, crónicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de
mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano,
espanhol e um bocado de alemão. Dêem-me trabalho pelo amor de Deus ou do
diabo.”
De literato brasileiro não conheço página mais sincera e
razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio
escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho
companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele,
admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.
É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso
mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo:
discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que
vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.
O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insónia
encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos.
Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor,
afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e
de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.
A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo,
revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua
pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu
é jornalista.
Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não
sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos
desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por
que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas
com decência, deve calar-se e roer chifres?
Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem.
Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois
não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente
como quem vende pomada para calos.
Graciliano Ramos
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