17 de Outubro de 1941, morre o escritor indiano Rabindranath Tagore, Prémio Nobel da Literatura em 1913.
Poet'anarquista
«Minha Bela Vizinha»
RETRATO de Anna Magnani / Carlo Levi
299- «MINHA BELA VIZINHA»
Eu sentia pela jovem viúva, minha vizinha, um sentimento de
veneração. Ao menos, era isso que eu dizia aos meus amigos. O próprio Nabin, o
mais íntimo deles, não sabia o que estava ocorrendo à minha alma. E eu sentia
uma espécie de orgulho em conservar minha paixão num estado de pureza,
escondendo-a no fundo da alma. Minha vizinha parecia uma flor orvalhada e caída
prematuramente. Pura e resplandecente demais para o leito conjugal, ela havia
se entregado ao céu.
Elas, igual a enchente que desce montanha abaixo, uma paixão
não pode ser contida por muito tempo: busca passagem. Por isso eu tentava
traduzir meus sentimentos em poemas. Minha pena rebelde, no entanto, não queria
profanar o objeto de minha adoração.
O acaso quis que, na mesma época, meu amigo Nabin fosse
também atacado de mania poética, que o surpreendeu com a violência de um
terremoto. Como fosse este o seu primeiro ataque e não tivesse ele a prática da
rima e do ritmo, não pôde resistir e entregou-se à mania como um viúvo à sua
segunda esposa.
Dessa forma, Nabin chamou-me para socorrê-lo. Adotara o motivo sempre renovado, ou seja, dedicava sempre seus poemas à mulher amada. Perguntei-lhe com uma palmada afetuosa no ombro:
Dessa forma, Nabin chamou-me para socorrê-lo. Adotara o motivo sempre renovado, ou seja, dedicava sempre seus poemas à mulher amada. Perguntei-lhe com uma palmada afetuosa no ombro:
- Então, meu caro, quem é ela?
Ele respondeu com um sorriso.
- Nem eu sei.
Confesso que encontrei grande conforto em socorrer meu
amigo. Como uma galinha que choca um ovo de pata, coloquei nas suas tentativas
poéticas todo o ímpeto de minha paixão reprimida. E revivia, melhorava suas
produções sem forma, de modo que a maior parte de cada poema era minha obra
pessoal.
Nabin manifestou sua surpresa:
- Mas é isso que eu queria e não sabia como dizer! Como consegues
exprimir todos estes sentimentos?
Respondia poeticamente:
- Minha imaginação me basta; embora ignores, a verdade é
silenciosa e só a imaginação abre o caminho destinado ao seu próprio uso.
E o coitado do Nabin gaguejava, embaraçado:
- Sei, sei, eu compreendo. Evidentemente. - Para murmurar,
depois de alguns instantes de reflexão - : Sim, sim, tens razão!
Como já disse, em meu próprio amor havia tanta delicadeza
que eu não podia traduzi-lo em palavras. Mas, com Nabin me servindo de biombo,
nada impedia que minha pena funcionasse. E um fogo sincero nascia dos meus
poemas escritos para um terceiro
Quando estava muito lúcido, Nabin comentava:
- Mas és tu quem escreves tais poemas! Devo publicá-los em
teu nome.
- Bobagem, - respondia eu. - Eles são teus, meu caro amigo;
apenas dei retoques aqui e ali.
E Nabin, aos poucos, acreditava em mim.
Eu não negaria que, muitas vezes, olhava a janela da minha
vizinha com o mesmo sentimento com que um astrônomo olha o céu cheio de
estrelas. E é também verdade que meus olhares disfarçados muitas vezes obtinham
a recompensa de uma imagem. E o menor raio vindo daquela luz clara apaziguava e
clareava, no mesmo instante, o que minhas emoções ainda possuíssem de sujo e
vil.
Um dia tive uma enorme surpresa. Devia acreditar no que via?
Foi numa tarde quente de verão. Os ventos do Nordeste anunciavam-se cada vez
mais ameaçadores. Nuvens negras se acumulavam no horizonte. De pé contra aquele
fundo luminoso, estranho e terrível, minha bela vizinha admirava o céu. E na
expressão longínqua dos seus olhos, brilhantes e negros, descobri todo um mundo
de desesperada ansiedade. Que vulcão ardente se esconderia sob o fulgor tão
calmo daquele astro? Ah, aquele olhar impregnado de desejo do infinito, que
parecia desferir o vôo através das nuvens, como o ardor de uma ave, não buscava
naturalmente o céu, mas um esconderijo dentro de um coração humano.
Lendo aquela paixão enorme que se desprendia de um simples
olhar, só me contive após muita luta. Não era bastante que eu corrigisse maus
versos. Meu ser inteiro queria manifestar-se de uma maneira mais notável.
Decidi, por fim, dedicar-me a encorajar um segundo casa-mento para as viúvas.
Eu tornaria famosas minhas ideias através dos poderes da pena e do dinheiro.
Nabin mostrou dúvidas quanto à minha resolução.
A viuvez permanente, dizia ele, significa um ideal de pureza
e de paz espiritual infinita, um calmo esplendor análogo ao dos lugares
silencisos que, com seus raios moribundos, a luz baça do décimo-primeiro dia da
Lua ilumina. A simples possibilidade de um segundo casamento não é suficiente
para destruir essa divina beleza?
Essa espécie de sentimento, confesso, sempre me deixou
irritado. Quando, na época em que alguns sentem fome, um homem fala do problema
da alimentação com desprezo, e aconselha o que necessita a comer o perfume das
flores e o canto das aves, que imaginar de tal pessoa? Por isso, respondi
veemente:
- Olha, Nabin, as antigas ruínas podem valer para o artista
como um material formidável. Mas as casas não são erguidas apenas para a
satisfação estética, e sim, para serem habitadas, e, portanto, suportar toda
espécie de adaptações. Se não tens nada a ver com a questão, podes olhar
esteticamente a viuvez, mas deves sempre lembrar que, por trás dela, se esconde
a sensibilidade de um coração humano que soluça de dor e de desejo.
Certo das dificuldades de convencer Nabin, eu comunicava à
discussão talvez mais calor do que o necessário ao assunto. Assim, fiquei
surpreso alguns instantes depois; Nabin, após suspirar com o ar mais sonhador,
aderiu finalmente ao meu ponto de vista. O discurso que eu pensava deveria ser
ainda mais forte, tornou-se inútil.
Finda uma semana, ele veio ver-me e anunciou que, se eu
quisesse dar a ele meu apoio, formaria na vanguarda do movimento, casando com
uma viúva. Fiquei feliz. Abracei-o alegremente, e prometi-lhe todo o dinheiro
necessário ao empreendimento. E Nabin contou-me seu caso.
Sua mulher amada existia realmente. Ele também adorara de
longe, durante muito tempo, uma viúva, sem jamais revelar a alguém seus
sentimentos. As revistas que publicavam seus poemas - ou mais precisamente, os
meus - haviam chegado às mãos da mulher amada, conseguindo interessá-la.
A verdade é que ele não queria ir tão longe. Pois nem se
preocupara em saber se a viúva aprendera a ler. Mandava a revista ao irmão de
sua amada, escondendo o nome do expedidor. Do seu lado era isso uma forma de
fantasia, uma concessão à sua paixão impossível. Quando o adorador coloca um
buquê de flores ao pé de uma deusa, não procura saber se esta conhece ou ignora
a oferenda, se ela a aceita ou recusa.
E Nabin queria me convencer de que não possuía qualquer
intenção certa quando, sob diferentes pretextos, procurou e conseguiu entrar em
contato com o irmão da viúva. Tudo o que diz respeito à mulher amada tem um
interesse especial para o amante.
O irmão, por fim, concordou em recebê-lo.
Num dia em que se mostrara particularmente aberto aos meus
argumentos, tomado de coragem, pediu a mão da viúva. Ela recusou, no começo.
Mas ante seus fortes argumentos, acrescentou uma ou duas lágrimas e capitulou
sem condições.
Faltava apenas um dote para os preparativos.
- Podes usar minha fortuna - eu lhe disse.
- Certo - respondeu Nabin - ; mas informo que alguns meses
decorrerão antes que 'eu consiga convencer meu pai e entrar na posse da minha
pensão. Até lá, como viveremos?
Assinei o cheque que ele precisava, sem um comentário, e perguntei, afinal:
Assinei o cheque que ele precisava, sem um comentário, e perguntei, afinal:
- Agora, vais dizer-me o nome da noiva. Mão me consideres um
provável rival, pois não pretendo escrever um só poema em sua honra; e se
escrever alguns versos, não os endereçarei ao irmão, e sim, a ti.
- Não sejas ridículo! - respondeu Nabin - Não foi por medo
de tua rivalidade que escondi seu nome. Realmente, a idéia de recorrer a meios
tão insólitos me preocupava profundamente, e por isso nada disse aos amigos.
Agora que tudo está arranjado, já não é necessária a discrição. Ela mora no
número dezenove, é tua vizinha.
Mesmo que meu coração fosse uma caldeira de cobre, teria
arrebentado.
- Mas então - perguntei simplesmente-, ela não é contra um
segundo casamento?
- Agora, não - ele disse sorrindo.
- E os poemas bastaram para conseguir essa maravilhosa conversão?
- E então? - replicou Nabin. - Meus poemas eram tão ruins
assim?
Mentalmente, fiz uma jura...
Mas eu iria me queixar a quem? Ou de quem? Dele? De mim
mesmo? Da Providência? Não importa, mesmo assim eu jurei!
Rabindranath Tagore
Rabindranath Tagore
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