«A Heteronímia»
Génese dos Heterónimos
310- «A HETERONÍMIA»
“Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus
heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou
simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico.
Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a
histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja
como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica
e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente
para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se
manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem
explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher
os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de
Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para
a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente
aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…
“Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu
heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos.
Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os
que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um
mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não
sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo.
Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço
como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura,
movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão
visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura
abusivamente, a vida real. Esta tendência que me vem desde que me lembro de ser
um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me
encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de me encantar.
“Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro
heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo
Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo,
e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha
afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra
figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era,
não sei em quê, um rival de Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as
crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda,
pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber
que não foram realidades.
“Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo,
igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias
fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de
espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a
quem eu suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de
certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura
— cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim
arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que
ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito:
oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.”
Fernando Pessoa
(in Carta a Adolfo Casais Monteiro
sobre a génese dos heterónimos, de 13 de Janeiro de 1935)
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