21 de Outubro de 1982, o Prémio Nobel da Literatura é
atribuído ao escritor colombiano Gabriel García Márquez, autor de «Cem Anos de
Solidão».
Poet'anarquista
303- «OLHOS DE CÃO AZUL»
Então olhou para mim. Pensava que olhava para mim pela
primeira vez. Mas então, quando se virou por trás do abajur, e eu continuava
sentindo sobre o ombro, nas minhas costas, seu escorregadio e oleoso olhar,
compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro.
Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a
sobre uma das pernas posteriores. Depois disso a vi ali, como havia estado
todas as noites, de pé junto ao abajur, me olhando. Durante breves minutos não
fizemos nada mais que isto: olhar-nos. Eu, olhando-a da cadeira,
equilibrando-me numa das pernas traseiras. Ela, em pé, me olhando, com uma das
mãos, comprida e quieta, sobre o abajur. Via as pálpebras iluminadas como todas
as noites. Foi então que lembrei o de sempre, quando lhe disse: "Olhos de
cão azul". Ela me disse, sem tirar a mão do abajur: "Isso. Já não o
esqueceremos nunca". Saiu da órbita suspirando: "Olhos de cão azul.
Escrevi isso por todas as partes”.
Vi-a caminhar em direção à cômoda. Vi-a aparecer na lua circular do espelho,
olhando-me agora no final duma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar me
olhando com seus grandes olhos de cinza acesa: olhando-me enquanto abria uma
caixinha revestida de nácar rosado. Vi-a passar pó-de-arroz no nariz. Quando
acabou de fazer isso, fechou a caixinha e voltou a ficar em pé e andou
novamente em direção ao abajur, dizendo: "Temo que alguém sonhe com este
quarto e mexa nas minhas coisas"; e estendeu sobre a chama a mão comprida
e trêmula, a mesma que estivera esquentando antes de sentar-se em frente ao
espelho. E me disse: "Você não sente o frio". E eu lhe disse:
"Às vezes". E ela me disse: "Você deve senti-lo agora". E
então compreendi por que não tinha podido ficar sozinho na cadeira. Era o frio
o que me dava certeza da minha solidão. "Agora o sinto", disse.
"E é raro, porque a noite está quieta. Talvez o lençol tenha rodado".
Ela não respondeu. Começou a se mexer em direção ao espelho e voltei a girar
sobre a cadeira para ficar de costas para ela. Embora sem vê-Ia, sabia o que
estava fazendo. Sabia que estava outra vez sentada diante do espelho, vendo
minhas costas, que haviam tido tempo para chegar até o fundo do espelho, e
serem encontradas pelo seu olhar, que também havia tido o tempo justo para
chegar até o fundo e regressar antes que a mão tivesse tempo de iniciar a
segunda virada — até os lábios que estavam agora pintados de carmim, da
primeira virada da mão em frente ao espelho. Eu via, à minha frente, a parede
lisa, que era como outro espelho cego, onde eu não a via sentada às minhas
costas, mas imaginando onde estaria, se no lugar da parede tivesse sido
colocado um espelho. "Estou vendo você", disse-lhe. E vi, na parede,
como se ela tivesse levantado os olhos e me visto de costas na cadeira, ao
fundo do espelho, com o rosto voltado para a parede. Depois vi-a abaixar as
pálpebras, outra vez, e ficar com os olhos quietos no seu sutiã, sem falar. E
voltei a lhe dizer: "Estou vendo você." E ela voltou a levantar os
olhos do sutiã. "É impossível", disse. Eu perguntei por quê. E ela,
com os olhos outra vez quietos no sutiã: "Porque você tem o rosto voltado
para a parede". Então eu fiz girar a cadeira. Tinha o cigarro apertado na
boca. Quando fiquei de frente para o espelho, ela estava outra vez junto do
abajur. Agora tinha as mãos abertas sobre a chama, como duas asas abertas de
galinha, sendo assada, e com o rosto sombreado pelos próprios dedos. "Acho
que vou me resfriar", disse. "Esta deve ser uma cidade gelada”.
Voltou o rosto de perfil e sua pele de cobre vermelho se tornou repentinamente
triste. "Faça alguma coisa contra isso", disse. E ela começou a tirar
a roupa, peça por peça, começando por cima; pelo sutiã. Disse-lhe: "Vou me
virar para a parede". Ela disse: "Não. De todas as maneiras você vai
me ver, como me viu quando estava de costas". Mal tinha acabado de dizer
isso e já estava despida quase por completo, com a chama lambendo-lhe a
comprida pele de cobre. "Sempre tinha querido ver você assim, com o couro
da barriga cheio de buracos fundos, como se houvessem feito você a
pauladas". E antes que eu me desse conta de que minhas palavras se tinham
tornado torpes diante da sua nudez, ela ficou imóvel, esquentando-se na órbita
do abajur, e disse: "Às vezes creio que sou metálica". Manteve o
silêncio por um instante. A posição das mãos sobre a chama mudou levemente. Eu
disse: "Às vezes, em outros sonhos, pensei que você é apenas uma estatueta
de bronze num canto de algum museu. Talvez por isso sinta frio". E ela
disse: "Às vezes, quando durmo sobre o coração, sinto que o corpo fica
como um ovo, e a pele como uma lâmina. Então, quando o sangue me bate por
dentro, é como se alguém me estivesse chamando com os nós dos dedos na barriga,
e sinto meu próprio som de cobre na cama. É como se fosse assim como você diz:
de metal laminado". Aproximou-se mais do abajur. "Teria gostado de
ouvir você", disse. E ela disse: "Se alguma vez nos encontrarmos
ponha o ouvido nas minhas costelas, quando eu dormir sobre o lado esquerdo, e
me ouvirá ressonar. Sempre desejei que você alguma vez fizesse isso”. Ouvi-a
respirar fundo enquanto falava. E disse que durante anos não tinha feito nada
diferente disso. Sua vida estava dedicada a me encontrar na realidade, por meio
dessa frase identificadora. "Olhos de cão azul." E na rua ia dizendo
em voz alta, que era uma maneira de dizer à única pessoa que teria podido
compreendê-la:
"Eu sou a que chega em seus sonhos todas as noites e lhe diz isto: olhos
de cão azul". E ela disse que ia aos restaurantes e dizia para os garçons,
antes de fazer o pedido: "Olhos de cão azul". Mas os garçons lhe
faziam uma respeitosa reverência, sem que houvessem lembrado nunca ter dito
isso nos seus sonhos. Depois escrevia nos guardanapos e riscava com a faca o
verniz das mesas: "Olhos de cão azul". E nos cristais embaçados dos
hotéis, das estações, de todos os edifícios públicos, escrevia com o indicador:
"Olhos de cão azul". Disse que uma vez chegou a uma drogaria e
percebeu o mesmo cheiro que tinha sentido no seu quarto uma noite, depois de
ter sonhado comigo: "Deve estar perto", pensou, vendo a cerâmica
limpa e nova da drogaria. Então se aproximou do vendedor e lhe disse:
"Sempre sonho com um homem que me disse: "Olhos de cão azul". E
disse que o vendedor a havia olhado nos olhos e dito: "Na verdade, moça, a
senhora tem os olhos assim". E ela disse: "Preciso encontrar o homem
que me diz isso nos sonhos". E o vendedor começou a rir e foi para o outro
lado do balcão. Ela permaneceu olhando o ladrilho limpo do chão e sentindo o
cheiro. E abriu a bolsa e se ajoelhou e escreveu com o batom sobre o ladrilho,
com grandes letras vermelhas: "Olhos de cão azul". O vendedor
regressou de onde se encontrava. Disse-lhe: "Moça, a senhora sujou o
ladrilho". Deu-lhe um pano úmido, dizendo: "Limpe-o". E ela
disse, ainda junto ao abajur, que passou a tarde toda agachada, lavando o
ladrilho e dizendo: "Olhos de cão azul", até que as pessoas se
aglomeraram na porta e disseram que estava louca.
Agora, quando acabou de falar, eu continuava no canto, sentado, equilibrando-me
na cadeira. "Tento me lembrar todos os dias da frase com que preciso
encontrar você", disse. "Agora creio que amanhã não a esquecerei. Mas
sempre esqueço ao acordar quais são as palavras com que posso encontrar
você". E ela disse: "Você mesmo as inventou desde o primeiro
dia". E eu lhe disse: "Inventei-as porque vi seus olhos cor de cinza.
Mas nunca me lembro delas na manhã seguinte." E ela, com os punhos
fechados junto ao abajur, respirou fundo: "Se pelo menos pudesse recordar
agora em que cidade estive escrevendo isso".
Seus dentes apertados resplandeceram sobre a chama. "Eu gostaria de tocar
em você agora", disse. Ela levantou o rosto que estivera olhando a luz:
levantou o olhar ardente, assando-se também do mesmo jeito que ela, do mesmo
jeito que suas mãos: e eu senti que me viu, no canto, onde continuava sentado,
me balançando na cadeira. "Você nunca me tinha dito isso", disse.
"Agora digo, e é verdade", disse. Do outro lado do abajur ela me
pediu um cigarro. O toco tinha desaparecido dos meus dedos. Esquecera que
estava fumando. Disse: "Não sei por quê, não posso lembrar onde o
escrevi". E eu lhe disse: "Pela mesma razão pela qual eu não poderei
lembrar as palavras amanhã". E ela disse, triste: "Não. É que às
vezes creio que também sonhei isso". Fiquei em pé e andei até o abajur.
Ela estava um pouco mais para lá, e eu continuava andando, com os cigarros e os
fósforos na mão, e não passaria o abajur. Aproximei dela o cigarro. Ela o
apertou entre os lábios e se inclinou para atingir a chama, antes que eu tivesse
tempo de acender o fósforo. "Em alguma cidade do mundo, em todas as
paredes, têm que estar escritas estas palavras: 'Olhos de cão azul",
disse. "Se amanhã me lembrasse delas iria buscar você". Ela levantou
outra vez a cabeça e já tinha a brasa acesa nos lábios."Olhos de cão
azul", suspirou, recordando, com o cigarro jogado sobre o queixo e um olho
semifechado. Aspirou a fumaça, com o cigarro entre os dedos, e exclamou:
"Já isto é outra coisa. Estou me sentindo mais quente". E disse-o com
a voz um pouco morna e fugidia, como se não o tivesse dito realmente, mas como
se houvesse aproximado o papel à chama enquanto eu lia: "Estou entrando —
e ela tivesse continuado com o papelzinho entre o polegar e o indicador,
virando-o, enquanto ia se consumindo e eu acabava de ler — ... mais
quente", antes que o papelzinho se consumisse por completo e caísse ao
chão amassado, diminuído, convertido num leve pó de cinza. "Assim, é
melhor", disse. "Às vezes me dá medo ver você assim. Tremendo junto
ao abajur".
Há vários anos nos víamos. Às vezes, quando já estávamos juntos, alguém deixava
cair lá fora uma colherinha e acordávamos. Pouco a pouco íamos compreendendo
que nossa amizade estava subordinada às coisas, aos acontecimentos mais
simples. Nossos encontros terminavam sempre assim, com o cair de uma
colherzinha na madrugada.
Agora, junto ao abajur, estava me olhando. Eu lembrava que antes também me
havia olhado assim, desde aquele remoto sonho em que fiz a cadeira girar sobre
as pernas traseiras e fiquei diante de uma desconhecida de olhos cinzentos. Foi
nesse sonho que perguntei a ela pela primeira vez:"Quem é a senhora?"
E ela me disse: "Não lembro". Eu lhe disse: "Mas acredito que
nos vimos antes". E ela disse, indiferente: "Creio que alguma vez
sonhei com o senhor, com este mesmo quarto". E eu lhe disse: "É isso.
Já começo a lembrar". E ela disse: "Que curioso. É verdade que temos
nos encontrado em outros sonhos".
Deu duas chupadas no cigarro. Eu estava ainda em pé em frente ao abajur, quando
fiquei olhando para ela de repente. Olhei-a de cima a baixo e ainda era de
cobre; mas já não de metal duro e frio, senão de cobre amarelo, macio,
maleável. "Gostaria de tocar em você", voltei a dizer. E ela disse:
"Você jogaria tudo por água abaixo", voltou a dizer, antes que eu
pudesse tocá-la. "Talvez, se você se virar por trás do abajur,
acordaríamos sobressaltados quem sabe em que parte do mundo". Mas eu
insisti: "Não importa". E ela disse:"Se virássemos o
travesseiro, voltaríamos a nos encontrar. Mas você, quando acordar, terá
esquecido tudo". Comecei a me mexer em direção ao canto. Ela ficou por
trás, esquentando as mãos sobre a chama. E eu ainda não estava junto da cadeira
quando a ouvi falar às minhas costas: "Quando acordo à meia-noite, fico
revirando-me na cama, com os fios do travesseiro ardendo no joelho e repetindo
até o amanhecer: 'Olhos de cão azul'".
Então fiquei com o rosto na parede. "Já está amanhecendo", disse sem
olhar para ela. "Quando deram duas da manhã, estava acordado, já fazia
bastante tempo." Dirigi-me até a porta. Quando tinha pegado a maçaneta,
ouvi outra vez sua voz igual, invariável: "Não abra essa porta",
disse. "O corredor está cheio de sonhos difíceis". E eu lhe disse:
"Como você sabe disso?" E ela me disse: "Porque há pouco estive
ali e tive que voltar quando descobri que estava dormindo sobre o
coração". Eu mantinha a porta entreaberta. Movi um pouco o batente, e um
ar frio e tênue me trouxe um cheiro fresco de terra vegetal, de campo úmido.
Ela falou outra vez, virei-me, mexendo ainda o batente montado em gonzos
silenciosos, e lhe disse: "Creio que não há nenhum corredor aqui fora.
Sinto o cheiro do campo". E ela,já um pouco longe, me disse: "Conheço
isso mais do que você. O que acontece é que lá fora há uma mulher sonhando com o
campo". Cruzou os braços sobre a chama. Continuou falando: "É essa
mulher que sempre desejou ter uma casa no campo e nunca pôde sair da
cidade". Eu lembrava ter visto a mulher num outro sonho anterior, mas
sabia, já com a porta entreaberta, que dentro de meia hora tinha que descer
para o café da manhã. E lhe disse: "De todas maneiras, tenho que sair
daqui para acordar".
Lá fora o vento bateu um instante, ficou quieto depois, e ouviu-se a respiração
de alguém adormecido que acabava de virar-se na cama. O vento do campo suspendeu-se.
Já não houve mais odores. "Amanhã vou reconhecer você por isso",
disse. "Vou reconhecê-la quando vir na rua uma mulher que escreva nas
paredes: 'Olhos de cão azul'". E ela, com um sorriso triste — que já era
um sorriso de entrega ao impossível, ao inatingível —, disse: "Não
obstante, você não lembrará nada durante o dia". E voltou a pôr as mãos
sobre o abajur, com a expressão obscurecida por uma névoa amarga: "Você é
o único homem que, ao acordar, não se lembra nada do que sonhou".
Gabriel García Márquez
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