«A Mulher Automática»
Conto de Oswald de Andrade
304- «A MULHER AUTOMÁTICA»
(De São Paulo) — Qual é o seu cargo?
— Esteno-dáctilo-serpente-contralto-secretária...
— Isso é novidade. Eu ouvi no rádio naquele debate sobre a mulher moderna:
esteno-dáctilo-serpente-secretária — A mulher atual!
— Ainda tem mais! Ponha glamour!
— Que é isso?
— Glamour é assim como eu sou. De concurso!
O homem pálido que esperava há duas horas examinou com os olhos a morena iodada
no coral solto do vestido, sandálias de purpurina, cabelo lustroso, brincos,
balangandãs e pulseiras, um beiço em ciclamen por Salvador Dali.
— O senhor sabe? Comprei ontem um leque que cheira. É formidável! Da América!
A voz grossa trauteou "La vie en rose".
— Dei o fora no meu darling porque ele não me levou à boîte para
ver o Charles Trenet. Fui com Mister Ubirajara.
— Quem é Mister Ubirajara?
— Acho que é canadense. Um gordo do anúncio. Tem gaita e possui um guarda-roupa
perfeito. Dois ternos por dia! Me levou a Santo Amaro num 1950 formidável.
Tomamos muitos drinks.
Na ante-sala de móveis mecânicos o telefone ressoou.
— Aposto que é o turco! Deixa tocar... Ele fala "negócio". Quer
saber do "negócio" dele. Como se eu estivesse aqui para dar
informações!
O telefone insiste.
— O senhor saber? Um marinheiro contrabandista foi ao meu apartamento levar uns
cortes de tropical e uns relógios suíços. Não falava nenhuma língua. Disse por
gestos que era marinheiro, da Suíça. Enquanto ele bateu um relógio-pulseira e
pus ele pra fora. Começou gesticulando que faltava alguma coisa. Banquei a
boba. O homem falou baiano: — Deixe de besteira moça! Não gosto disso não! Me
dá o relógio!
O telefone continuava. Ela arrancou num gesto o fone e berrou:
— Não me encha! Não é aqui!
Desligou violentamente. A voz do outro lado ficou dizendo humildemente:
— Esbéra, mucinha!
— Que esbéra, nada! Se ele ligar outra vez dou o telefone do Cemitério do
Araçá. Vou fazer ele falar com defunto!
Houve um silêncio rápido. O homem pálido perguntou:
— A senhora é contralto?
— Sou. O que a mulher tem de melhor é a voz! — gritou desaparecendo numa porta
volante. — A voz e a saliva!
Oswald de Andrade
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