«A Gargalhada»
Mau Rapaz, por Eric Fischl
311- «A GARGALHADA»
— Não grita, por favor.
— Não estou gritando. Estou rindo.
— Falar alto ou gargalhar é a mesma coisa. É manifestação de animalidade que a
minha natureza não suporta. Vocês conhecem a minha fascinação pelas mulheres.
Nada para mim tem um poder de atração maior do que uma mulher. Porém a mulher
mais linda, a mais perfeita, a mais fascinante, falando alto ou gargalhando,
faz crescer em mim um ímpeto monstruoso e sinto que sou capaz de abrir com as
mãos o seu pescoço. Fico desvairado; é uma repulsa incontida. Só os animais se
expressam com alarido, só as criaturas desclassificadas, moral e
espiritualmente, falam aos gritos e riem com a garganta. Já sabem, não gritem
nem dêem gargalhadas perto de mim se não quiserem transformar-me num criminoso.
Fico descontrolado com o barulho, seja ele qual for.
Gaspar e dois amigos conversavam num bar, de madrugada, onde a fumaça dos
cigarros e o cheiro de álcool misturavam-se ao som de um piano tocado por dedos
já. cansados e indiferentes ao ambiente.
André, de temperamento alegre, depois de tomar duas ou três doses de álcool,
expandia-se em piadas de mau gosto, acompanhadas de estridentes gargalhadas.
O outro, Maurício, quase silencioso, observava demoradamente os freqüentadores
do bar, Possuía um interesse especial por dois detalhes do corpo humano: mãos e
nucas.
— Gaspar, você define e classifica as criaturas pelo falar alto e o gargalhar.
Tem razão. Não pode haver inteligência nem condições espirituais numa pessoa
que expressa suas alegrias e suas opiniões aos berros. Vocês dois criticam
sempre a minha atitude quando em silêncio fico a maior parte do tempo com os
olhos pregados nas mãos e na nuca das pessoas à minha frente. Eu explico. Gosto
de definir, através das mãos e da nuca, a essência do indivíduo. Reparem, por
exemplo, aquele sujeito sentado na mesa à nossa esquerda. Forçosamente tem de
ser uma pessoa mesquinha, de fundo avarento, capaz de sujeiras frequentes nas
vinte e quatro horas do dia. Está acompanhado de uma mulher que chama a atenção
unicamente pela tristeza do olhar. O resto é comum e insignificante. O seu modo
de trajar é suburbano. O seu olhar, entretanto, carrega pesadas humilhações e
penas. O homem que a acompanha não vê nada disso que esmaga a pobre mulher.
— E você, Maurício, verificou a tristeza da mulher e a mesquinhez do caráter do
homem pelas mãos dele, só pelas mãos? — perguntou André.
— Sim, pelas mãos. Observem seus gestos e a forma das suas mãos curtas e
gordas, achatadas, de unhas minúsculas enterradas na carne, dedos cabeludos,
pulsos cabeludos. Suas mãos, quando paradas, assemelham-se a aranhas adormecidas.
São mãos asquerosas, devem ter uma transpiração abundante. Sempre molhadas de
suor. Reparem nos seus gestos em curvas pequenas em direção à sua barriga,
Parecem trazer as migalhas da mesa para o seu estômago. Nada em seu físico
define com mais segurança a sua mesquinha personalidade do que as suas mãos.
— Você o conhece, para marcá-lo assim de maneira tão positiva?
— Não, nunca o vi. Mas desde que cheguei notei a sua repelente personalidade
pelas suas mãos cabeludas, curtas e de movimentos repulsivos.
Enquanto Maurício falava sobre as suas observações, o homem reclamava aos
brados, do garçom, uma insignificante quantia adicionada à nota das despesas.
Dava a entender que o pagamento daquele mínimo excedente iria obrigá-lo a
voltar a pé para casa.
A mulher que o acompanhava, de olhos baixos, sentia a humilhação de quem
contribuíra para um grave problema financeiro do companheiro que a trouxera
para o bar; como se reclamasse o preço excessivo da sua presença ao seu lado, A
mulher somava tristezas.
Maurício olhou para os amigos com ar vitorioso de quem acerta no objetivo. 0
homem de mãos curtas e cabeludas exibira a sua essência.
— Vejam também agora a nuca deste sujeito que está sentado de costas para nós.
Nuca pálida, enxundiosa, com o nascimento do cabelo muito alto e semelhante a
uma franja rala. Nuca de homem tem de ser com o nascimento do cabelo no meio do
pescoço, de fios grossos marcando vitalidade e decisão de atitudes. Desconfiem
de todo homem que possuir uma nuca que sobe até o meio da cabeça. Não escapará
de ser um indivíduo desleal, traiçoeiro, com tendência à vida sórdida, vivendo
da exploração de mulheres.
— Ora, isso é bobagem. E os que não têm pescoço, os que não têm nuca, os que
têm a cabeça. Diretamente pregada nos ombros, como são? — perguntou André já
bastante alcoolizado.
— Bem, esses são os burros teimosos. Teimosos e vaidosos. Esses são perigosos.
Sentem-se um deus de sabedoria e, se têm uma parcela de poder ou uma fortuna
assegurada, entendem que têm o direito de arrasar com a humanidade, e que as
suas opiniões estão na razão direta do seu dinheiro, Como já disse, esses sem
pescoço são perigosos para a coletividade.
Nesse instante, Maurício chamou a atenção dos companheiros para o homem da nuca
flácida.
— Reparem o que ele está fazendo e vejam como os meus estudos são infalíveis!
O homem recebia, sob a toalha da mesa, das mãos da mulher que o acompanhava, o
dinheiro com que iria pagar as despesas feitas.
— Qual é a sua finalidade, Maurício, ao estudar e observar a personalidade das
criaturas através dos detalhes das mãos e da nuca?
— A de definir para conhecer a essência das coisas. É um estudo como outro
qualquer. É um divertimento. Meus estudos e observações não impedirão o
nascimento de homens mesquinhos, sórdidos e de vidas repugnantes, eu sei. Mas
cada vez que acerto nas minhas observações, mais vontade tenho de observar para
acertar. É uma espécie de jogo comigo mesmo. O princípio da ignorância humana é
o definir aquilo que se fala ou o que se prefere falar, sobre o que ainda não
se sabe e nem se pode definir. Eu falo do que ainda não se pode definir. Tento
chegar à ignorância humana.
— Por exemplo, o descontrole de Gaspar ao ouvir alguém gritar ou dar
gargalhadas, parece-me uma reação intimamente ligada à sua sensibilidade. As
suas impressões, as suas visões ou os seus ímpetos inesperados devem variar
dependendo da sua receptividade brutalizada por risos estridentes e barulhos
fortes. A reação da sensibilidade de cada pessoa pode encaminhar-se para o
estoicismo ou para o crime. Conheci um rapaz que desde menino perdia a fala
quando cercado de conversas tumultuosas ou de ruídos agudos. Permanecia
completamente mudo por várias horas. Mas mudo mesmo. Trancava-se no quarto e
entregava-se à leitura. A família desorientava-se com a sua mudez prolongada e
repentina. A medicina não oferecia maiores explicações. A sua mudez era total e
a sua audição também seguia o mesmo processo. No dia seguinte aparecia com a
fala e a audição perfeitamente normais. Assustava-se, terrivelmente, quando ao
longe percebia o ronco dos motores de um avião no céu. Quando o telefone
tocava, se ele estivesse perto, corria para o quarto como um animal batido.
Diziam que era um desequilibrado, mas essa conclusão foi posta por terra quando
a família resolveu enviá-lo para uma fazenda no interior, onde ele só tinha
contato com o silêncio. A solução foi afastá-lo de tudo e de todos na medida do
possível. Durante esse período falava e ouvia normalmente, Interessante é que
cantava canções de acalanto e a sua voz tinha uma sonoridade maravilhosa, o
tumulto, os gritos, as conversas misturadas, as risadas, extinguiam
instantaneamente a sua voz e a sua audição, mas voltavam perfeitas na
substância do silêncio. Era por isso considerado um tipo estranho e enigmático.
Ora, Gaspar deve estar incluído, sem saber, entre os raros que sofrem desse
mesmo fenômeno. Daí o seu descontrole, a sua angústia, quando alguém a ao seu
lado fala aos gritos ou dá estrondosas gargalhadas. Nota-se em Gaspar uma
imediata transformação fisionómica, um ar desvairado, e não deve ser sem
fundamentos que ele afirma a possibilidade de tornar-se um criminoso ao ouvir
uma gargalhada.
Gaspar ouvia sem interromper Maurício, parecendo concordar com o diagnóstico do
amigo.
Um grande silêncio envolveu a mesa dos três. Ao longe, rompendo a densidade da
fumaça e o enjoativo cheiro de álcool que dominava o bar, o piano continuava
tateado por mãos cansadas e indiferentes àquelas vidas gastando-se na
madrugada. Vinda de um canto do bar, passou pela mesa dos três amigos uma
mulher jovem. Não era bela nem feia. Era uma mulher de bar. Gaspar segurou-lhe
o braço e indagou se estava sozinha. A mulher respondeu afirmativamente.
— Para onde vai?
— Para casa.
— Espere, vou com você.
Saíram os dois.
Num hotel barato, os outros hóspedes ouviram a porta de um quarto fechar-se.
Depois o murmúrio de vozes do casal. De repente, uma gargalhada inundou o
corredor do hotel. Outra gargalhada. Depois o silêncio absoluto.
Pela manhã, quando a arrumadeira iniciou o seu serviço, ao passar pelo quarto
ocupado pelo casal da madrugada, viu pela porta entreaberta uma mulher nua,
deitada na cama, tendo sobre a cabeça um travesseiro.
O seu corpo morto deixava fora do lençol um seio alvo e volumoso.
Adalgisa Nery
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