«O Bebé de Tarlatana Rosa», por João do Rio.
Poet'anarquista
«O Bebé de Tarlatana Rosa»
Máscara de Carnaval, por Minjae Lee
96- «O BEBÉ DE TARLATANA ROSA»
- Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida?
O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso
imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval,
deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um carnaval sem
aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...
E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã,
gozando a nossa curiosidade.
Havia no gabinete o barão Belfort, Anatólio de Azambuja de
que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boémia,
e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante.
Heitor, fumando um gianaclis autêntico, parecia absorto.
- É uma aventura alegre? indagou Maria.
- Conforme os temperamentos.
- Suja?
- Pavorosa ao menos.
- De dia?
- Não. Pela madrugada.
- Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatólio. Olha que
está adoecendo a Maria.
Heitor puxou um largo trago à cigarreta.
- Não há quem não saia no Carnaval disposto no excesso,
disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase
doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo
tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de
guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente
com uma...
- Nem com um, atalhou Anatólio.
- Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas
passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser
indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade,
saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os
alexandrinos para a noite de Afrodita.
- Muito bonito! ciciou Maria de Flor.
- Está claro que este ano organizei uma partida com quatro
ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de
ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo
era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andávamos de automóvel a
percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champagne aos clubes de jogo
que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao
quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao
baile público do Recreio. - "Nossa Senhora! disse a primeira estrela de
revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à
paisana, fúfias do pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge, um cheiro atroz,
rolos constantes..." - Que tem isso? Não vamos juntos?"
Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não
havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se,
enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era desolação com pretas beiçudas e
desdentadas esparrimando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar,
todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lobregas e essas estranhas figuras de
larvas diabólicas, de íncubos em frascos de álcool, que têm as perdidas de
certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas
feitas de pasta de mata-borrão e de papel-arroz. Não havia nada de novo.
Apenas, como o grupo parara diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em
mim, gordinho e apetecível, um bebé de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de
meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do
seio. Bem agradável. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos
perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um
nariz tão bem-feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo
falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebé caiu
mais e disse num suspiro: - ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei
imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas
elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e era
sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma frequentadora dos bailes
do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chic e
mais secante da cidade.
- E o bebé?
- O bebé ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao
lado do chauffeur; no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e
urna voz rouca dizer: «para pagar o de ontem». Olhei. Era o bebé rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo
de indagar: aonde vais hoje?
- A toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.
- Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor.
- Talvez fosse um homem... soprou desconfiado o amável
Anatólio.
- Não interrompam o Heitor! fez o barão, estendendo a mão.
Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, continuou:
- Não o vi mais nessa noite e segunda-feira não o vi também.
Na terça desliguei-me do grupo e cai no mar alto da depravação, só, com uma
roupa leve por cima da pele e todos os maus instintos fustigados. De resto a
cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as
meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais
secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil,
a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível,
os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza
os sentidos e o beijo se desata naturalmente.
Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase
mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada
do contato familiar, mas o deboche anónimo, o deboche ritual de chegar, pegar,
acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no
carnaval.
- A quem o dizes!... suspirou Maria de Flor.
- Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos
defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de
uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro,
meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui,
ali. Nada!
- É quando se fica mais nervoso!
- Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair
toda gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das
ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes
incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de
bengala, caiam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só,
indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando
máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas
de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das
horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de
guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da
treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a
coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei
para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do
interior, quando vi, parado, o bebé de tarlatana rosa.
Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.
- «Os bons amigos sempre se encontram» disse.
O bebé sorriu sem dizer palavra. Estás esperando alguém? Fez
um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? Onde? indagou a sua
voz áspera e rouca. - Onde quiseres! Peguei-lhe nas mãos. Estavam húmidas mas
eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios
tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.
- Por pouco...
- Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela
dizia com a sua voz arfante e lúbrica: - «Aqui não!» Passei-lhe o
braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas
era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o
bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não
trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em
desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado ao jardim. Diante da
entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois
arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao
fundo, o edifício das Belas-Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela
aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de
Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório de Música.
Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva
espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu bebé gordinho e
rosa parecia um esquecimento do vicio naquela austeridade da noite. - Então,
vamos? indaguei. - Para onde? - Para a tua casa. - Ah! não, em casa não
podes... - Então por aí. - Entrar, sair, despir-me. Não sou disso! - Que queres
tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. -
Que tem? - Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de
cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. - Que máscara? - O nariz. -
Ah! sim! E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe
o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de
nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.
Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um
nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela
segredou: Não! não! custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio
naquela carne de chama.
O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu
sentia um mal-estar curioso, um estado de inibição esquisito. - Que diabo! Não
vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. - Disfarça sim! -
Não! procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me,
beijando-me, o bebé de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De
novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava
o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir,
fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e
de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos
que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma
cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça
que era alucinante - uma caveira com carne...
Despeguei-a, recuei num imenso vómito de mim mesmo. Todo eu
tremia de horror, de nojo. O bebé de tarlatana rosa emborcara no chão com a
caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando
singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. - Perdoa! Perdoa! Não
me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então,
aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste...
Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter
desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me
o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de
matar aquele atroz reverso da luxúria... Mas um apito trilou. O guarda estava
na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que fazer? Levar
a caveira ao posto policial? Dizer a todo o mundo que a beijara? Não resisti.
Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a
correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo em febre.
Quando parei à porta para tirar a chave, é que reparei que a
minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebé de
tarlatana rosa...
Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos,
apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce
Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas
de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a
campainha para que o criado trouxesse refrigerantes e resumiu:
- Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem
do Carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante. E foi sentar-se ao piano.
João do Rio
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