«Conto do Pequeno Édipo»
Conto de Suleiman Cassamo
501- «CONTO DO PEQUENO ÉDIPO»
O homem tamborilou os dedos no balcão. Pediu, com uma voz
cinzenta:
- Uma cerveja.
Pediu como quem pede ao ar. Isto é, sem dar inteira conta nem da mulher de
preto, sentado no banquinho, nem do miúdo, jogando guêime.
A mulher abriu uma média. O homem ignorou aquela, e apalpou as garrafas no
fundo da caixa térmica. O rapazito suspendeu o jogo, e olhou-o com cara de
poucos amigos.
- Vá brincar lá dentro - berrou a mulher, indicando a saída que dava para o
resto da casa. Por sinal a única porta da barraca.
O balcão-janela dava para a rua, e estava, assim, o cliente, único àquela hora,
de costas para a rua.
Decidiu-se pela cerveja que a mulher lhe estendia.
Afinal, estava tudo gelado por igual, e a quente, e a sede, tanta, que ele
virou o primeiro copo num instante.
- Que tal? - perguntou a mulher, tentando animá-lo.
Ia já no mar alto da vida. Navegação difícil, pelos vistos. Emanava dela uma
discreta tenacidade, a dor sem queixume, a arte de sobreviver. Não há remo mais
lesto que o coração feminino.
- Que tal, é boa?
O homem tinha a língua presa. O humor azedo, ao fim de um dia de trabalho, é coisa
normal. Ainda bem; por estes anos, de repente, Deus trocou-nos cogumelos por
barraca. Entre o "chapa" e a casa, uma pausa para relaxar.
À terceira média, soltou, mesmo a língua, dizendo:
- Boa.
A mulher parou de acender a vela, e encarou-o. Melhor, encararam-se. À luz
tremelicante do fósforo, ela surgiu da roupa da viuvez. Era como acender a
própria beleza.
O menino estava à porta, espiando aquele momento mágico. A mulher virou-se para
o garoto. Pela primeira vez, conheceu nele a cólera.
- Suca daqui! - ordenou a viúva.
Mas o puto voltaria sempre: mãe o meu guêime, mãe: tem um rato dentro da pasta;
mãe um refresco; estou com fome, mãe…
- Dá-lhe um pacote de "Maria" - disse o cara. E acrescentou,
peremptório: - na minha conta.
Mas isso, se é que ele não sabia, não o compraria. Quando muito, o seu
momentâneo sumiço.
À quinta média, o cliente tinha já, não só a língua mas também o espírito
solto, um verdadeiro poeta.
Mudou-se para o canto do balcão onde à luz da vela,
a mulher escolhia folhas de couve para o jantar.
Como se o bafo da cevada fosse
o suco da própria poesia, cochichou:
- Boa como a própria dona?
Nisso o menino reentrava. Não gostou daquela súbita intimidade. O peito cheio
de ar, incapaz de falar, fixou o cliente com olhos de cobra.
- Xixi cama! - berrou o homem.
O puto deu um passo em frente. E descarregou os pulmões:
- Rua-rua-rua!
Pegando num vasilhame, avançou para o balcão. Estava em causa não propriamente
o lugar do seu pai, mas o seu próprio. Qual pequeno Édipo, avançou pois,
disposto a morrer. Eterno é o labirinto dos afectos, e por isso, história sem
desfecho, esta.
Suleiman Cassamo
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