«Jardim das Tormentas»
Conto de Aquilino Ribeiro
498- «JARDIM DAS TORMENTAS»
[Excerto]
«Tinha Deus aposentado Adão e Eva no Jardim das Delícias,
onde viviam como os mais desabusados regalões. O homem era esbelto e sólido,
embora nunca houvesse exercitado os tendões da marcha, nem apurado os
bíceps a colher o antílope no laço; ela um lambisco de primeira, esgalgada e
especiosa, a quem os cabelos vestiam de oiro à maravilha, sem pensar na folha
de parra para a nudez, num cinábrio para a boca, que de seu sinal era
rubicunda.
Não sabiam de onde eram, nem como estavam ali, nem tão pouco se importavam de
saber, acharam-se dentro do horto uma boa manhã, e todas as demais manhãs, na
plenitude de um gozo inapreciável, porque nunca espinho, sol mais destemperado
ou hora amarga lhes ensinara que aquilo era o sumo bem.
Se alguma coisa
soubessem desejar, o seu Senhor provê-los-ia instantânea e abundantemente como
o mais solícito mordomo; mas nem desejos nem cobiças, nem necessidades picavam
os seus corações inocentes; não admiravam, porque tudo era admirável; jubilos,
ternuras, esperanças não sentiam que Deus gerara a vida, mas ainda não
concebera a morte. No céu, sempre azul, o sol trazia o dia, levava o dia, sem
que sombras ou raios mais vivos ferissem as suas pupilas bem-aventuradas.
Eram
uns felizes felizardos, usufrutuários dum regalo tão sem balizas que não o
sabiam avaliar, mas em que criam de boa fé porque assim lhes fora dito. De
beatitude tão absorta, apenas um aviso de Deus os distraía, se a isso se chama
distrair, numa punção doce, mais leve que a sombra dum reflexo de cuidado.»
Aquilino Ribeiro
Sem comentários:
Enviar um comentário