«As Historietas de um Rebuscador de Antiguidades», por José Régio.
«As Historietas dum Rebuscador de Antiguidades»
Conto de José Régio
511- «AS HISTORIETAS DUM REBUSCADOR DE ANTIGUIDADES»
Tinham-me chamado “para ver umas coisas”- fórmula já
conhecida. Apresentei-me na casa indicada, que era de boa aparência: casa
antiga, com o aspecto ao mesmo tempo nobre e rude que têm por aqui certas
moradias quase apalaçadas. Pertencia a uma gente que “vivera bem”, e a senhora
que me apareceu era a última representante feminina da família. Velha, mas
vestida com certa pretensão, e a cara enfarinhada de pó de arroz. No seu tempo
de nova, ainda o pó de arroz devia estar muito em uso.
Todo o seu ar era de senhora;
mas não sei quê nela havia que vagamente me soou a falso, como se aquela
empertigada compostura que mantinha fosse devida a um esforço da vontade contra
qualquer debilidade das pernas.Conduziu-me a um quarto inferior, onde havia um
oratório vulgar com três imagens de marfim: Cristo crucificado, Nossa Senhora
da Conceição, Santo António de Lisboa. Eram as coisas que pretendia vender-me,
estas imagens de marfim, – e faiscaram a meus olhos como três jóias! Sobretudo
o pequeno Cristo, numa cruz de pau-santo com aplicações de prata, era duma
perfeição e uma finura, uma expressão conseguida à custa de subtilíssimos
toques (tenho-o vivo na memória, e perdi-o há um par de anos) que puseram em
sobressaltos o meu coração de coleccionador.
A Nossa Senhora e o Santo António,
sem atingirem o mesmo requinte, não deixavam de ser notáveis.Balbuciei que
sim, que estava pronto a comprar as ditas coisas, e senti-me tremer um pouco ao
perguntar quanto me pediam por elas. O meu dinheiro, então, ainda era menos do
que hoje. A dona pediu-me um preço quase irrisório pelas três peças, – ou
vendia as três ou nenhuma. Parecia recear que eu não estivesse por este ajuste.
O meu coração de coleccionador pelintra (e um pouco artista, se me permitem
dizê-lo) teve um imenso alívio, senti-me respirar melhor, o pequeno quarto interior
iluminou-se-me todo em volta…, eu ia possuir aquelas três pequenas maravilhas,
eu que receara não poder dispor de dinheiro para as pagar! Ao mesmo tempo,
senti-me pouco à vontade: teria preferido que a senhora me houvesse pedido
mais. Não muito mais… não muito: um coleccionador pobretão não pode caprichar
em demasias de escrúpulos. Um pouquinho mais.Estava, pois, ao mesmo tempo
radiante e hesitante, com os olhos nas três imagens e ruminando nem bem sabia o
quê; talvez qualquer processo de dar esse pouquinho mais sem ver “o negócio ir
por água abaixo”. É muito perigoso a gente oferecer ou dar mais do que nos
pedem: acham o caso anormal, calculam que o objecto em venda vale uma fortuna –
que, geralmente, não vale – e, algumas vezes, voltam com a palavra atrás. Já o
não querem vender, calculando que o venderão, a outro, muito melhor. Pois
estava eu assim, a imaginar comigo qualquer subterfúgio que me permitisse
mascarar a minha mesquinha e gratuita generosidade, quando senti abrir-se outra
porta no quarto, e entrar uma terceira pessoa. Era uma rapariga, que se agarrou
à velha empoada suplicando-lhe que não vendesse “os santinhos”. Já devia saber
do que se tratava. A velha empoada sacudia-a de si com palavras cada vez mais
ásperas, depois gaguejadas, e a rapariga já chorava e não desistia.“Lá se vai
tudo!” eis o primeiro pensamento, naturalmente egoísta, que assaltou um
apaixonado amador de velharias de arte.
Durante um momento, foi como se o
mundo acabasse. Mas a velha não parecia disposta a ceder. E, então, senti-me
profundamente constrangido. A rapariga era mulata, muito nova, e tinha gestos
quase selvagens que me chocaram. Estava mal penteada, vestida sem cuidado; mas,
pela familiaridade com que tratava a outra, não devia ser uma criada. O que não
estava era “preparada para aparecer”; ao contrário da outra, que se preparara.
Como a cena já se arrastava, fiz um grande esforço contra a minha cobiça, a
disse timidamente:- A senhora veja lá: parece que sua filha tem amor às
imagens, custa-lhe perdê-las…- Minha filha?!… – exclamou indignadamente a
velha. – Não vê que não é minha filha?!- Ora essa… – fiz eu o mais
estupidamente possível. Mas foi-me possível acrescentar ainda mais
estupidamente: – Com efeito…Calei-me, que era o melhor que tinha a fazer. Não
sabia o que dizia. “Ora essa!” pensara comigo “podia ser filha dela e dum
preto. Já se tem visto! Mas pode ser sobrinha: filha de algum irmão que foi às Áfricas, às Américas… Ou até neta”. E devo ter sorrido durante esta breve
divagação etnológica (também, não sei por que tais pensamentos me surgiram com
um carácter humorístico), pois a criatura se tornou furiosa:- Ai, o
senhor acha graça?… ri-se? …dá–lhe vontade de rir?- Não, minha senhora… –
balbuciei eu, fazendo-me logo sério. E uma desconfiança me aflorou, que já
direi qual. Mas ela continuou:- Eu é que nenhuma! Não acho graça nenhuma! Isto
são termos…, aparecer aqui neste preparo?! E quem manda aqui? Que tem ela com
isto? O senhor sabe …é uma afilhada. Vive comigo de pequena. E já se julga dona
das coisas! Já pensa que estou a esticar o pernil…- Madrinha…! – suplicou a
rapariga. Os desconchavos da velha como que tinham apaziguado os seus próprios.
Estava, agora, encostada à parede, com as faces cheias de lágrimas, e parecia
envergonhada do que fizera ou ouvira.
Olhei-a melhor: Era bonita. Mas os seus
belos olhos esverdidos tornaram-se duros ao encontrar os meus.- Vai-te embora,
Maria Mandioca! – gritou a velha voltando-se para ela com a mão fechada no ar.-
Maria quê?! – fiz eu sem querer. E fiz mal, porque novamente me via ameaçado
por um inoportuno acesso humorístico. O mais curioso, porém, é que estava
triste, e continuava constrangido. A suspeita que pouco antes me aflorara
tornara-se uma certeza: A velha estava embriagada; e a rapariga sabia-o.-
Mandioca!… – respondeu ela. É um nome que a gente lhe dá, o senhor compreende…
Chama-se Maria Felícia. Ao dirigir-se-me, procurava afeiçoar o tom com uma volubilidade
notável. Ensaiava reaver a compostura do princípio, e que só agora eu via bem
como logo me parecera forçada. Mas as palavras empastavam-se-lhe desde que não
gritasse.- A madrinha não venda os santinhos! – rogou a rapariga pondo as mãos
por um gesto reflexo – não venda os santinhos que se arrepende!- Vais-te
embora ou não vais, estafermo! – berrou a velha crescendo para ela. Mas, como
fizera um movimento mais precipitado, cambaleou, e foi a própria afilhada que a
susteve. Interpus-me, então, com energia, e disse mesmo sobre a cara da velha:-
Eu compro-lhe as imagens, se quiser. Mas a sua afilhada está desgostosa
…custa-me levá-las nessas condições. A senhora pense bem, está a entender-me?
Quando estiver mais sossegada. Converse com alguém de família. Eu volto cá
amanhã, à mesma hora. Mas, se tiver resolvido não vender, não faz mal: até
prefiro, apesar de ter pena…Via quase sob a minha aquela cara enfarinhada de
pó, agora congestionada, como inchada, e aqueles olhos envidraçados e
estúpidos.
Depois, num daqueles rápidos olhares intensos dos apaixonados, o meu
olhar procurou as três imagenzinhas impassíveis no seu oratório: Jesus
crucificado, morto, mas tão divinamente sereno que estava mas era vivo da vida
eterna; Nossa Senhora com as mãos delicadamente postas, a cabeça inclinada num
jeito de ave; Santo António com o Menino sentado no livro, e um sorriso
deliciado, quase garoto, na boca juvenil. Decerto, neste breve olhar, eu não
abarcava agora tais pormenores.
Via-os, porém, através da memória e da
imaginação, – examinara as peças com olhos de verdadeiro amador.Nessa noite,
mal pude dormir. Estava excitado e desgostoso. Dava e tornava a dar voltas na
cama, e pensava: “Por que não hei-de ter sossego? Para quê incomodar-me com
estas coisas? Maldito vício de coleccionador! Tudo isto são ninharias, no fim
de contas! A minha vida não é isto…” Vãos pensamentos, que nada podiam contra
a inquietação e a paixão. Nos intervalos da insónia, os sonos arquejantes eram
atravessados de sonhos em que revia as minhas três imagens, e a velha brandindo
o punho trémulo contra a afilhada (a sua cara inchava e enrubescia como um
balão), mas já não era ela que ameaçava a rapariga mulata, era a rapariga
mulata, com olhos de gata, que levantava o punho contra mim, e tudo isto se
passava dentro dum oratório enorme que era ao mesmo tempo o quarto em que eu
dormia (não sabia se dormia ou estava acordado) a o quarto interior duma casa
que vacilava como um barco…No dia seguinte, à hora marcada, de novo me
apresentei na casa em questão. De novo me recebeu a senhora da véspera, agora reintegrada
no seu papel de senhora: de única representante feminina duma família que
vivera bem; que pertencia, talvez, à nobreza. Hoje, não bebera. Logo senti que
não, o que me deu um grande alívio. Estava empoada como na véspera, com o mesmo
vestido um pouco pretensioso para a sua idade, mas decente. Apresentava um ar
altivo e frio, firme, até duro, com não sei quê de dignidade ofendida que
inexplicavelmente me fez sentir-me culpado. Sim, a penosa impressão que eu
tinha era de culpa! – não sabia porquê.- Venho saber se resolveu alguma coisa…
– balbuciei. Revoltava-me comigo por me sentir intimidado, pensava que era ela
quem deveria sentir-se envergonhada, mas quem se sentia intimidado, até
envergonhado, era eu.- Já estava resolvido – respondeu ela.- Como a sua
afilhada mostrou tanta pena…- Não se fala mais nisso. Ou não posso dispor do
que é meu?- Decerto, minha senhora. Eu só não queria desgostar.- Pois o senhor
pega ou larga, e pronto. Se não quer as imagens vendo-as a outro, há-de haver
quem as compre.- Quero, sim, minha senhora. Quanto me pede hoje por elas…?- O
que lhe pedi ontem.Perante a firmeza da sua resolução, a secura das suas
respostas, o seu ar como formalizado, não hesitei mais. “Para outro é que não!”
bradava o meu instinto de coleccionador “para outro é que não!” Empertiguei-me
também um pouco, tirei a carteira, e estendi-lhe a quase mesquinha importância
que me ela pedira.- Obrigada – disse ela.- Obrigado eu – disse eu. – Gosto
muito das imagenzinhas. Queria, talvez por gratidão, deixar qualquer impressão
mais afável entre nós; obter, por exemplo, um sorriso daquela face balofa e
empoada; mas ela perguntou com a mesma imperturbável secura:- Manda-as buscar
hoje?- Levo-as agora eu mesmo, minha senhora. Se me fizesse o favor duns
papeizinhos…Via-me ridículo – e um pouco vil – com os meus diminutivos, para
os quais tenho uma tendência piegas quando faço qualquer aquisição duplamente
feliz. Ela arranjou-me, aliás habilmente, o precioso embrulho, que meti debaixo
do braço. Saímos ao corredor; mas estacámos súbito: a rapariga da véspera
estava em frente de nós, encostada à parede, com as mãos não digo postas, mas
agarradas uma à outra no peito. Os olhares das duas chocaram-se violentamente.
E as duas fitavam-se e não diziam nada, quando eu tive uma ideia que se me
afigurou luminosa: Com ela apaziguava um tanto o meu duplo remorso de causar
tal desgosto à rapariga e levar tão baratas aquelas pequeninas obras-primas.
Poisei o embrulho no chão, porque me embaraçava os movimentos; e, tirando da
carteira a nota mais alta que aí tinha (metera, esse dia, na carteira todo o
meu dinheiro disponível) ia dizendo num tom que me saía melífluo, e, apesar de
tudo, pouco natural:- Esta menina tem pena de se desfazer dos seus santinhos…
e eu compreendo-a bem. Se a senhora me dá licença… a título de compensação…
para comprar uma prendazinha que lhe agrade…E estendia um pouco o braço, com a
nota na mão, – uma nota cuja importância excedia a da compra já efectuada – sem
saber se a deveria entregar à velha ou à rapariga. Então, a rapariga desviou o
olhar para mim. O ódio como fulgurou nesses belos olhos esverdidos; e parecia
um belo sentimento, o ódio, nesses olhos! As suas feições acusavam mais que na
véspera a ascendência negra, – o que a não tornava menos bela.-
Guarde o seu
dinheiro nojento! – disse ela com desprezo e a voz um pouco rouca. – Não
preciso de prendas.Foi assim mesmo que disse. Os meus dedos recolheram a nota,
que amarrotaram contra a palma da mão como se a quisessem esmagar, e, depois, a
mão fechada com a nota escondeu-se-me no bolso exterior do casaco. Ainda fiquei
um momento sem saber que fazer, ou se conseguiria dizer qualquer coisa.
Depois, apanhei o precioso embrulho, segui um pouco às cegas pelo corredor,
desci as primeiras escadas que encontrei…Há já uns anos que não possuo as três
peças. Nem sei se alguma vez cheguei a possuí-las. Não é meu costume, não é!,
vender qualquer peça que verdadeiramente me agrade. Aquelas bem me agradavam.
Mas lá as perdi, lá foram, não sei como ou porquê: Primeiro, o Santo António
com o Menino no livro, e o seu sorriso encantado, quase garoto ou malicioso, no
lábio juvenil. Depois a Nossa Senhora de mãos delicadamente postas, a cabeça
airosa e inclinada no seu jeito de ave. Foram ambos cedidos por baixos preços a
uns quaisquer, já me não lembro a quem. E por fim o Cristo, o meu admirável
Cristozinho, que era pequeno e era grande, tão humanamente morto e divinamente
imortal, – entregue também não sei como, não sei porquê, também por baixo
preço, a um colega que logo mo namorou, sem acreditar que eu alguma vez lho
cedesse.
José Régio
Sem comentários:
Enviar um comentário