sexta-feira, 22 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«As Historietas de um Rebuscador de Antiguidades», por José Régio.

«As Historietas dum Rebuscador de Antiguidades»
Conto de José Régio

511- «AS HISTORIETAS DUM REBUSCADOR DE ANTIGUIDADES»

Tinham-me chamado “para ver umas coisas”- fórmula já conhecida. Apresentei-me na casa indicada, que era de boa aparência: casa antiga, com o aspecto ao mesmo tempo nobre e rude que têm por aqui certas moradias quase apalaçadas. Pertencia a uma gente que “vivera bem”, e a senhora que me apareceu era a última representante feminina da família. Velha, mas vestida com certa pretensão, e a cara enfarinhada de pó de arroz. No seu tempo de nova, ainda o pó de arroz devia estar muito em uso. 

Todo o seu ar era de senhora; mas não sei quê nela havia que vagamente me soou a falso, como se aquela empertigada compostura que mantinha fosse devida a um esforço da vontade contra qualquer debilidade das pernas.Conduziu-me a um quarto inferior, onde havia um oratório vul­gar com três imagens de marfim: Cristo crucificado, Nossa Senhora da Conceição, Santo António de Lisboa. Eram as coisas que pretendia vender-me, estas imagens de marfim, – e faiscaram a meus olhos como três jóias! Sobretudo o pequeno Cristo, numa cruz de pau-santo com aplicações de prata, era duma perfeição e uma finura, uma expressão conseguida à custa de subtilíssimos toques (tenho-o vivo na memória, e perdi-o há um par de anos) que puseram em sobressaltos o meu coração de coleccionador. 

A Nossa Senhora e o Santo António, sem atingirem o mesmo requinte, não deixavam de ser notáveis.Balbuciei que sim, que estava pronto a comprar as ditas coisas, e senti-me tremer um pouco ao perguntar quanto me pediam por elas. O meu dinheiro, então, ainda era menos do que hoje. A dona pediu-me um preço quase irrisório pelas três peças, – ou vendia as três ou nenhuma. Parecia recear que eu não estivesse por este ajuste. O meu coração de coleccionador pelintra (e um pouco artista, se me permitem dizê-lo) teve um imenso alívio, senti-me respirar melhor, o pequeno quarto interior iluminou-se-me todo em volta…, eu ia possuir aquelas três pequenas maravilhas, eu que receara não poder dispor de dinheiro para as pagar! Ao mesmo tempo, senti-me pouco à vontade: teria preferido que a senhora me houvesse pedido mais. Não muito mais… não muito: um coleccionador pobretão não pode caprichar em demasias de escrúpulos. Um pouquinho mais.Estava, pois, ao mesmo tempo radiante e hesitante, com os olhos nas três imagens e ruminando nem bem sabia o quê; talvez qualquer processo de dar esse pouquinho mais sem ver “o negócio ir por água abaixo”. É muito perigoso a gente oferecer ou dar mais do que nos pedem: acham o caso anormal, calculam que o objecto em venda vale uma fortuna – que, geralmente, não vale – e, algumas vezes, voltam com a palavra atrás. Já o não querem vender, calculando que o venderão, a outro, muito melhor. Pois estava eu assim, a imaginar comigo qualquer subterfúgio que me permitisse mascarar a minha mesquinha e gratuita generosidade, quando senti abrir-se outra porta no quarto, e entrar uma terceira pessoa. Era uma rapariga, que se agarrou à velha empoada suplicando-lhe que não vendesse “os santinhos”. Já devia saber do que se tratava. A velha empoada sacudia-a de si com palavras cada vez mais ásperas, depois gaguejadas, e a rapariga já chorava e não desistia.“Lá se vai tudo!” eis o primeiro pensamento, naturalmente egoísta, que assaltou um apaixonado amador de velharias de arte. 

Durante um momento, foi como se o mundo acabasse. Mas a velha não parecia disposta a ceder. E, então, senti-me profundamente constrangido. A rapariga era mulata, muito nova, e tinha gestos quase selvagens que me chocaram. Estava mal penteada, vestida sem cuidado; mas, pela familiaridade com que tratava a outra, não devia ser uma criada. O que não estava era “preparada para aparecer”; ao contrário da outra, que se preparara. Como a cena já se arrastava, fiz um grande esforço contra a minha cobiça, a disse timidamente:- A senhora veja lá: parece que sua filha tem amor às imagens, custa-lhe perdê-las…- Minha filha?!… – exclamou indignadamente a velha. – Não vê que não é minha filha?!- Ora essa… – fiz eu o mais estupidamente possível. Mas foi-me possível acrescentar ainda mais estupidamente: – Com efeito…Calei-me, que era o melhor que tinha a fazer. Não sabia o que dizia. “Ora essa!” pensara comigo “podia ser filha dela e dum preto. Já se tem visto! Mas pode ser sobrinha: filha de algum irmão que foi às Áfricas, às Américas… Ou até neta”. E devo ter sorrido durante esta breve divagação etnológica (também, não sei por que tais pensamentos me surgiram com um carácter humorístico), pois a criatura se tornou furiosa:- Ai,  o senhor acha graça?… ri-se? …dá–lhe vontade de rir?- Não, minha senhora… – balbuciei eu, fazendo-me logo sério. E uma desconfiança me aflorou, que já direi qual. Mas ela continuou:- Eu é que nenhuma! Não acho graça nenhuma! Isto são termos…, aparecer aqui neste preparo?! E quem manda aqui? Que tem ela com isto? O senhor sabe …é uma afilhada. Vive comigo de pequena. E já se julga dona das coisas! Já pensa que estou a esticar o pernil…- Madrinha…! – suplicou a rapariga. Os desconchavos da velha como que tinham apaziguado os seus próprios. Estava, agora, encostada à parede, com as faces cheias de lágrimas, e parecia envergonhada do que fizera ou ouvira. 

Olhei-a melhor: Era bonita. Mas os seus belos olhos esverdidos tornaram-se duros ao encontrar os meus.- Vai-te embora, Maria Mandioca! – gritou a velha voltando-se para ela com a mão fechada no ar.- Maria quê?! – fiz eu sem querer. E fiz mal, porque novamente me via ameaçado por um inoportuno acesso humorístico. O mais curioso, porém, é que estava triste, e continuava constrangido. A suspeita que pouco antes me aflorara tornara-se uma certeza: A velha estava embriagada; e a rapariga sabia-o.- Mandioca!… – respondeu ela. É um nome que a gente lhe dá, o senhor compreende… Chama-se Maria Felícia. Ao dirigir-se-me, procurava afeiçoar o tom com uma volubilidade notável. Ensaiava reaver a compostura do princípio, e que só agora eu via bem como logo me parecera forçada. Mas as palavras empastavam-se-lhe desde que não gritasse.- A madrinha não venda os santinhos! – rogou a rapariga pondo as mãos por um gesto reflexo – não venda os santinhos que se arrepende!- Vais-te embora ou não vais, estafermo! – berrou a velha crescendo para ela. Mas, como fizera um movimento mais precipitado, cambaleou, e foi a própria afilhada que a susteve. Interpus-me, então, com energia, e disse mesmo sobre a cara da velha:- Eu compro-lhe as imagens, se quiser. Mas a sua afilhada está desgostosa …custa-me levá-las nessas condições. A senhora pense bem, está a entender-me? Quando estiver mais sossegada. Converse com alguém de família. Eu volto cá amanhã, à mesma hora. Mas, se tiver resolvido não vender, não faz mal: até prefiro, apesar de ter pena…Via quase sob a minha aquela cara enfarinhada de pó, agora congestionada, como inchada, e aqueles olhos envidraçados e estúpidos. 

Depois, num daqueles rápidos olhares intensos dos apaixonados, o meu olhar procurou as três imagenzinhas impassíveis no seu oratório: Jesus crucificado, morto, mas tão divinamente sereno que estava mas era vivo da vida eterna; Nossa Senhora com as mãos delicadamente postas, a cabeça inclinada num jeito de ave; Santo António com o Menino sentado no livro, e um sorriso deliciado, quase garoto, na boca juvenil. Decerto, neste breve olhar, eu não abarcava agora tais pormenores. 

Via-os, porém, através da memória e da imaginação, – examinara as peças com olhos de verdadeiro amador.Nessa noite, mal pude dormir. Estava excitado e desgostoso. Dava e tornava a dar voltas na cama, e pensava: “Por que não hei-de ter sossego? Para quê incomodar-me com estas coisas? Maldito vício de coleccionador! Tudo isto são ninharias, no fim de contas! A minha vida não é isto…” Vãos pensamentos, que nada podiam contra a inquietação e a paixão. Nos intervalos da insónia, os sonos arquejantes eram atravessados de sonhos em que revia as minhas três imagens, e a velha brandindo o punho trémulo contra a afilhada (a sua cara inchava e enrubescia como um balão), mas já não era ela que ameaçava a rapariga mulata, era a rapariga mulata, com olhos de gata, que levantava o punho contra mim, e tudo isto se passava dentro dum oratório enorme que era ao mesmo tempo o quarto em que eu dormia (não sabia se dormia ou estava acordado) a o quarto interior duma casa que vacilava como um barco…No dia seguinte, à hora marcada, de novo me apresentei na casa em questão. De novo me recebeu a senhora da véspera, agora reintegrada no seu papel de senhora: de única representante feminina duma família que vivera bem; que pertencia, talvez, à nobreza. Hoje, não bebera. Logo senti que não, o que me deu um grande alívio. Estava empoada como na véspera, com o mesmo vestido um pouco pretensioso para a sua idade, mas decente. Apresentava um ar altivo e frio, firme, até duro, com não sei quê de dignidade ofendida que inexplicavelmente me fez sentir-me culpado. Sim, a penosa impressão que eu tinha era de culpa! – não sabia porquê.- Venho saber se resolveu alguma coisa… – balbuciei. Revoltava-me comigo por me sentir intimidado, pensava que era ela quem deveria sentir-se envergonhada, mas quem se sentia intimidado, até envergonhado, era eu.- Já estava resolvido – respondeu ela.- Como a sua afilhada mostrou tanta pena…- Não se fala mais nisso. Ou não posso dispor do que é meu?- Decerto, minha senhora. Eu só não queria desgostar.- Pois o senhor pega ou larga, e pronto. Se não quer as imagens vendo-as a outro, há-de haver quem as compre.- Quero, sim, minha senhora. Quanto me pede hoje por elas…?- O que lhe pedi ontem.Perante a firmeza da sua resolução, a secura das suas respostas, o seu ar como formalizado, não hesitei mais. “Para outro é que não!” bradava o meu instinto de coleccionador “para outro é que não!” Empertiguei-me também um pouco, ti­rei a carteira, e estendi-lhe a quase mesquinha importância que me ela pedira.- Obrigada – disse ela.- Obrigado eu – disse eu. – Gosto muito das imagenzinhas. Queria, talvez por gratidão, deixar qualquer impressão mais afável entre nós; obter, por exemplo, um sorriso daquela face balofa e empoada; mas ela perguntou com a mesma imperturbável secura:- Manda-as buscar hoje?- Levo-as agora eu mesmo, minha senhora. Se me fizesse o favor duns papeizinhos…Via-me ridículo – e um pouco vil – com os meus diminutivos, para os quais tenho uma tendência piegas quando faço qualquer aquisição duplamente feliz. Ela arranjou-me, aliás habilmente, o precioso embrulho, que meti debaixo do braço. Saímos ao corredor; mas estacámos súbito: a rapariga da véspera estava em frente de nós, encostada à parede, com as mãos não digo postas, mas agarradas uma à outra no peito. Os olhares das duas chocaram-se violentamente. 

E as duas fitavam-se e não diziam nada, quando eu tive uma ideia que se me afigurou luminosa: Com ela apaziguava um tanto o meu duplo remorso de causar tal desgosto à rapariga e levar tão baratas aquelas pequeninas obras-primas. Poisei o embrulho no chão, porque me embaraçava os movimentos; e, tirando da carteira a nota mais alta que aí tinha (metera, esse dia, na carteira todo o meu dinheiro disponível) ia dizendo num tom que me saía melífluo, e, apesar de tudo, pouco natural:- Esta menina tem pena de se desfazer dos seus santinhos… e eu compreendo-a bem. Se a senhora me dá licença… a título de compensação… para comprar uma prendazinha que lhe agrade…E estendia um pouco o braço, com a nota na mão, – uma nota cuja importância excedia a da compra já efectuada – sem saber se a deveria entregar à velha ou à rapariga. Então, a rapariga desviou o olhar para mim. O ódio como fulgurou nesses belos olhos esverdidos; e parecia um belo sentimento, o ódio, nesses olhos! As suas feições acusavam mais que na véspera a ascendência negra, – o que a não tornava menos bela.- 

Guarde o seu dinheiro nojento! – disse ela com desprezo e a voz um pouco rouca. – Não preciso de prendas.Foi assim mesmo que disse. Os meus dedos recolheram a nota, que amarrotaram contra a palma da mão como se a quisessem esmagar, e, depois, a mão fechada com a nota escondeu-se-me no bolso exterior do casaco. Ainda fiquei um momento sem saber que fazer, ou se conseguiria dizer qualquer coisa. Depois, apanhei o precioso embrulho, segui um pouco às cegas pelo corredor, desci as primeiras escadas que encontrei…Há já uns anos que não possuo as três peças. Nem sei se alguma vez cheguei a possuí-las. Não é meu costume, não é!, vender qualquer peça que verdadeiramente me agrade. Aquelas bem me agradavam. Mas lá as perdi, lá foram, não sei como ou porquê: Primeiro, o Santo António com o Menino no livro, e o seu sorriso encantado, quase garoto ou malicioso, no lábio juvenil. Depois a Nossa Senhora de mãos delicadamente postas, a cabeça airosa e inclinada no seu jeito de ave. Foram ambos cedidos por baixos preços a uns quaisquer, já me não lembro a quem. E por fim o Cristo, o meu admirável Cristozinho, que era pequeno e era grande, tão humanamente morto e divinamente imortal, – entregue também não sei como, não sei porquê, também por baixo preço, a um colega que logo mo namorou, sem acreditar que eu alguma vez lho cedesse. 

José Régio

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