«Girassol»
Girassóis/ Vincent van Gogh
495- «GIRASSOL»
Não sabiam já quanto tempo havia que ambos caminhavam
calados, no descampado imenso e sob o castigo imerecido de um céu abrasador. A
terra, na sua queimada secura, dir-se-ia o rescaldo de um grande incêndio.
Arrastavam-se num passo de fadiga e abandono, as cabeças pendidas sobre o
peito, como se aquela estrada os levasse a um destino que de todo lhes era
indiferente, sem por isso deixar de ser amargo e sofrido. Durante a maior parte
do percurso, nem sequer haviam encontrado a sombra de um ramo seco, e o mundo
parecia-lhes um grande ermo, um lugar de injusta maldição. Tudo o sol abrasava,
e a estrada – infindável rio de alcatrão – negra e quente, corria através dos
campos desertos, até se perder na linha distante e incendiada do horizonte. A
terra exalava um hálito de inferno e por toda a superfície estendia-se uma
irradiação trémula, em que se reflectiam, como numa inquieta miragem, os
recortes longínquos das coisas.
A respiração fazia-se a custo, penosamente, e o ar queimava na boca como se
fosse o próprio fogo. No entanto, eles caminhavam sempre, apesar do andar cada
vez mais arrastado, da atitude de profundo e inconsolável desânimo, tão caídos
e exaustos se mostravam.
Eram ambos velhos, alquebrados, e tudo, pelo aspecto desprezível, nos falava da
história destas criaturas a quem a vida maltratou e acaba por abandonar. Um
trazia o corpo magro coberto de andrajos e por entre os rasgões da roupa suja
viam-se-lhe as carnes secas, mirradas por mil mortificações sofridas. A barba e
o cabelo já ruços faziam em torno da cabeça um volume desconforme e hirsuta,
que lembrava a rama emaranhada das vassouras velhas. Amparava-se a um cajadito
alto, semelhente ao bordão dos peregrinos, e enfiado no braço trazia à
dependura do ombro uma espécie de alforge imundo, onde por certo arrecadava os
seus tesouros, quanto na vida possuía. As mãos eram finas, de dedos longos,
mãos de quem nunca houvesse trabalhado. O outro, o companheiro, tinha as ancas
surradas, o pêlo ralo, baço, crivado de chagas e crostas, como o Lázaro de
todas as histórias sagradas.
Para sumo martírio claudicava de uma das patas
traseiras, que a custo e de leve pousava no chão, para logo a encolher num
movimento repentino, de dor súbita, tal como se fosse de espinhos a terra que
pisava. E assim, aquelas duas criaturas, irmanadas na mesma desventura, levadas
pela mesma miséria, iam estrada em fora, à torreira ardente do Sol, sem talvez
se darem verdadeiramente conta da grandeza de tanta mortificação. Caminhavam
como sonâmbulos, um amparando-se ao cajado, o outro a tropeçar a cada passo na
própria infelicidade, como se a todo o instante ameaçasse cair de gasto e
consumido.
Umas vezes era o cão que se adiantava um tudo nada no caminho, para logo parar,
resfolegando, de língua caída para fora da boca, à espera do dono; outras o
homem que inesperadamente lhe tomava a dianteira, e o bicho, com a perna
encolhida e bamba, via-se forçado a apressar o passo para alcançar o
companheiro, numa corrida desajeitada e grotesca. Só nisto se sentia neles uma
leve diferença de condição. No resto eram iguais, solidários e irmãos,
apodrecidos pelas mesmas chagas e associados na mesma miséria. Estavam
perfeitamente um para o outro, como duas coisas que se igualam e completam.
Apenas em sociedade existem diferenças e preconceitos absurdos, que ignoram os
que vivem à margem dos códigos e do mundo. Já a fábula consagrou algumas destas
histórias.
Se alguém, abruptamente, lhes perguntasse para onde iam, que fito os levava por
aquele caminho, a perturbação seria enorme. Não encontrariam com facilidade
razões nem palavras para responder.
Ao sabor de um puro acaso, haviam tomado aquela estrada, aquela senda de
inferno, sem que isso representasse qualquer decisão pensada. Vagabundos por
natureza, o seu fadário era andar, correr mundo. Apetecera-lhes, sem motivo
determinado, seguir aquela rota, e era tudo. De seu, na vida, só tinham as estradas
para palmilhar. Fora sempre assim: se topavam com uma encruzilhada, ou o dono,
sem pensar, seguia pela estrada que o cão escolhesse, ou o cão aceitava de
boamente a direcção por onde o dono metesse pés ao caminho. Tudo era o mesmo,
pois qualquer destino lhes servia. Às vezes, porém, ficavam os dois pasmados,
sem saberem por onde aventurar os passos – ao que no mundo se resumia, no final
de contas, todo o seu trabalho, toda a responsabilidade. Eram, então, momentos
inexplicavelmente difíceis, em que se apossava deles uma leve angústia, e se
sentiam incapazes de qualquer resolução, em que lhes apetecia desistir e
esperar para ali que chegasse a derradeira hora.
Sentavam-se um ao pé do outro,
um encostado ao outro, inquietos, assustados, com a sensação de que os ameaçava
um perigo desconhecido, e, por fim, como os marinheiros, resolviam aguardar
melhor maré.
Haviam metido por aquela estrada como poderia ter sido por outra... Tudo ou
quase tudo lhes era indiferente, e o próprio cão já ganhara também o jeito de
encolher os ombros à vida e à desventura.
Que querem?!... Agora, por exemplo,
não ambicionavam mais do que uma poça de água, onde refrescar a goela escaldada
e amaciar as duas côdeas de pão ressequido que guardavam na sacola – que até aí
chegara a previdência. Desejavam também uma nesga de sombra para estender e
repousar as carcassas doridas, sem lhes importar como nem onde. Se por milagre
a noite caísse de repente, também isso seria de grande apaziguamento, naquela
hora de verdadeiro inferno. Mas para quê confiar em milagres?! ... Não tinham
toda a vida a atestar que era isso impossível! O resto nada valia.
Nascidos
para a liberdade, só conheciam a prisão da natureza: a fome, a sede e o
cansaço, o frio e o calor, o que não há desprezo nem ânimo que seja capaz de
esquecer.
Mas, pela charneca fora, o rio negro da estrada continuava a estender-se até
para além de onde a vista alcançava, sem se lobrigar a toda a volta, já não
digo vivalma, mas a copa verde de uma árvore, a cor alva de um muro ou de uma
casa. O que lhes importava, pois, era não pensar, não atender ao desespero que
os chamava, e caminhar, caminhar sempre, até que ao longe luzisse a esperança
dalguma miragem. Sede e fome, isso era o prato de cada dia – um dos duros ossos
daquele ofício.
Resignação e paciência, que o caminho por onde seguiam havia de
ter um fim, acabar em algum sítio.
O cão, porém, a certa altura estacou. Como se em vez de uma tivesse as duas
patas doentes, deixou-se tombar sobre os quartos traseiros, descaiu mais a
cabeça, depois de um suspiro de profundo desânimo. Uma luz de súplica
brilhou-lhe nos olhos doces, e ficou amargamente a contemplar o dono.
Este
ainda se lhe adiantou um pedaço no caminho, mas depois parou. Parou e ficou a
olhá-lo também, com uma vaga desconfiança, assim como admirado. Sobre eles, o
sol parecia uma brasa.
– Girassol!
Mas o bicho já não o podia ouvir.
Num instante, o velho compreendeu que tudo acabara. As moscas precipitaram-se
com voracidade, como um enxame de demónios. Furioso, com gestos de louco, o
vagabundo sacudiu-as, mas elas tornavam, numa teima desesperante. Cobriu então
o corpo inanimado com um trapo que tirou do alforge, e por muito tempo ficou
ainda a afagar o focinho do bicho, sem se dar conta da violência cada vez mais
terrível do sol, como já não dava conta da dor aguda que o trespassava.
No céu fosforescente pareceu-lhe que voava um milhafre. O tempo dir-se-ia haver
parado e por um instante sofreu a sensação da infindável eternidade que o
esperava. O coração dizia-lhe que alguma coisa para sempre se acabara, sem
reparação possível. Levantou-se a custo, atravessou o bordão nos braços e sobre
ele depôs o corpo inerte do cão. Com os olhos embaciados de lágrimas,
pareceu-lhe que a estrada acabava já ali, a dois palmos da morte do amigo. Não
seria grande a distância que tinha a percorrer. Ergueu a cabeça com altivez e
firmeza, a encarar o que o destino quisesse dele. Não lhe voltaria o rosto. A
dor tem destes arranques de orgulho... Hesitou ainda um momento, apertando cada
vez mais o bicho contra o peito, e depois caminhou sem arrastar os passos, na
certeza de que já não seria longa a jornada.
Manuel Mendes
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