«Maio Moço»
Conto de Miguel Torga
496- «MAIO MOÇO»
Só quem já passou por elas ou tem imaginação é que pode
fazer ideia do desconsolo que era a vida do Gonçalo em Dornelo, órfão de pai e
mãe, a ser criado por esmola em casa do Anastácio. Fome, pancadaria, e o dia
inteiro atrás do gado na serra como um escravo. Desprezível e sem uma letra,
metia dó. Valia-lhe um pífaro de barro, que trocara por um pião de buxo, que
fizera à podoa, onde contava às fragas a sua melancolia de criança infeliz.
Enquanto as ovelhas, que conhecia uma a uma como se fossem
pessoas, iam tosando o panasco das lombas, soltava ele as suas queixas,
empoleirado nos lapedos. Lamentava-se dum abandono humano que lhe doía no
coração, vazio duma palavra de carinho ou de um gesto de ternura.
Embora recebesse dos montes, sempre abertos e atentos às
suas mágoas, a dádiva duma liberdade difusa, era do próprio bafo da aldeia que
precisava, quente e ritmado a bater-lhe na pele.
Esse calor, porém, estava Dornelo longe de lho dar. A solidão
do pastor entranhara-se de tal modo no quotidiano da povoação, que o viam
entrar à noite e sair de manhã como se ele fosse um borrego do próprio rebanho
que guardava. E o seu nome nunca ocorria a ninguém, quando a arraia miúda tinha
lugar de honra à mesa da gente grande.
Todos os rapazes da idade do Gonçalo guardavam na memória
uma aventura. Um fora de profeta na festa, outro vestira opa e segurara as
borlas do pendão, outro pegara na caldeirinha ao dia de Páscoa. Ele, nada. As
grandes horas de Dornelo passavam-se à margem da sua vida, rota e desamparada.
Nem sequer fizera a primeira comunhão. Sem licença de ir à doutrina, enquanto
os mais, de roupa nova e laço branco na manga do casaco, pisavam solenemente as
lajes da capela, calcorreava o desgraçado as veredas do Cabril.
Assim decorria tão negregada existência, quando o destino
compassivo lhe modificou a catadura de uma maneira inesperada e bonita. Fria já
de si, a Montanha naquele ano encaramelara de vez. Punha-se o nariz fora da
porta, e as espadanas do ribeiro eram lâminas de gelo a trespassar-nos. Mas que
remédio senão levar o gado à serra, a pastar o sincelo!
Ora os nevões, o nevoeiro e o codo são a bem-aventurança dos
lobos. Num desses dias, em que só havia brancura de morte por todos os lados,
de repente, surgido não sabia de onde, o Gonçalo deu com os olhos num a
abocar-lhe uma cordeira.
O cão de guarda ficara-se na povoação, atrás duma cadela na
cainça. Alentado e de poucas festas, era ele que dava paz e segurança ao
rebanho, numa vigilância guerreira, simbolicamente representada na coleira
eriçada de pregos. Por isso, sem aquela protecção, o mesmo terror que
tresmalhou as reses, siderou o pastor. Garanho de frio e de medo, o pobre
coitado mal podia segurar no lódão.
Bambeavam-lhe as pernas, e o coiro da
cabeça queria despegar-se-lhe dos ossos. Mas, subitamente, por mistérios
insondáveis da natureza humana, ergueu-se-lhe dentro do corpo acobardado uma
onda de coragem. E arremeteu com tal fúria sobre o ladrão, que parecia uma fera
a avançar sobre a outra.
- Grande como! - gritou, a dar solidariedade aos berros da
ovelha agadanhada, enquanto levantava o varapau.
Filado à cernelha da churra, o salteador negava-se a largar
a bocada. Ágil e teimoso, tentava arrastar a presa e furtar-se aos golpes. O
gosto doce do sangue exacerbava-lhe a fome e assanhava-lhe a teimosia. Tanto
montava as bordoadas choverem, como nada.
- Cabrão! Cada vez mais desesperado, o cacete ia e vinha,
numa raiva animada de minuto a minuto pela insólita duração da violência.
- Larápio dos infernos! Impávidos, os montes, numa
neutralidade polar, assistiam à luta. Nem os comoviam os balidos lancinantes da
borrega, nem a angústia do garoto a lutar à sobreposse.
- Não a levas, nem que te danes!
O ímpeto inicial, fruto da espontânea reacção a qualquer
desafio que nos é feito, dera lugar a uma serena e voluntariosa consciência
protectora. Rei dos animais pela razão, o pastor perdera o sentido do perigo e
o terror dele. Agora era um inexorável fiscal da ordem a impedir desmandos.
- Excomungado! Num salto imprevisto, o inimigo arredara-se
de uma estadulhada que parecia certeira, e o cajado batera em falso num fragão.
- E esta?
Desiludido com a perícia da emenda, que foi rápida e lhe
assentou em cheio no lombo ‘ o lobo hesitou. Mas quando se resignou a abandonar
a vítima e se dispôs a fugir, o Gonçalo cortou-lhe a retirada.
- Tem paciência: agora ficas aqui! Disse, e redobrou a força
das mocadas.
- Não pões os queixos em mais nenhuma! Derreado, o lobo
arreganhava os dentes inutilmente. Com mais três ou quatro amacios, estava
liquidado, com a espinha quebrada, caído aos pés do vencedor.
Calhou ser dia de feira em S. Lourenço, e o Nicolau
almocreve, que regressava a casa, dar de chofre com aquele espectáculo: o
catraio, pálido de emoção e possuído ainda da fúria vingadora, a migar os ossos
do agressor; este, esquadrilhado, a babar a neve do sangue da agonia.
- Com trinta milheiros de diabos! Tu onde arranjaste tanta
coragem, rapaz?!
O pequeno limpou o ranho do nariz.
- Filho de quem o pariu! Olhe o que ele fez!
Sem vaidade, singelamente, mostrava a mola que o empurrara -
a ovelha morta. O Nicolau, e logo a seguir Dornelo, é que não viam no feito
senão a valentia na sua pureza original. Quantos e quantos, em semelhante
situação, não teriam dado às de vila-diogo!
E a vida do Gonçalo transfigurou-se. Relatada a façanha, e
provada com a presença da bicheza, que percorreu o povoado em procissão, um
outro sol iluminou os seus gestos, as suas palavras, a sua solidão. Todos
passaram a dar-lhe a dignidade que lhe negavam até ali. Os grandes queriam
protegê-lo; os pequenos imitá-lo. A mestra protestou que era uma barbaridade
deixá-lo analfabeto; o abade declarou que Ia ensinar-lhe o catecismo; a ração
aparecia-lhe dobrada no bornal.
Começara entretanto a primavera a despontar da terra e dos
céus. Não havia outeiro encardido que se não cobrisse de lírios, torgas e tojos
em aleluia. O rebanho, farto, anediava. E a flauta de barro trinava de manhã à
noite nos lábios do pastor, curados do cieiro.
- Muito bem toca o demónio do garoto! Herói do povo,
aconchegavam-no orgulhosamente à fibra mais generosa do coração. Inventavam-lhe
façanhas antigas, ditos cheios de graça, habilidades que nunca tivera. Do
deserto monótono de outrora ia surgindo uma biografia rica, divertida, recheada
de peripécias e de sentido. Pareciam abelhas a encher um favo. Ninguém queria
deixar de colaborar na gesta redentora.
- Uma vez vi-o eu, por causa dum ninho, subir ao alto do
negrilho, que até a gente se arrepiava!
Dita, a mentira mudava logo de sinal aos olhos do próprio
mentiroso. Transformava-se numa verdade evidente, óbolo de boa vontade deposto
aos pés do ídolo, passava a fazer parte da sua intangível realidade.
- Tinha ele dez anos, quando deu tamanha capilota à minha
burra! Saltou-lhe para cima do lombo, credo, santo nome de Jesus!
Pouco a pouco, iam tornando sobrenatural tudo quanto fora
medíocre na vida do pequeno. Uma glória sem raízes parecia-lhes inverosímil. E
doiravam-lhe o passado. Forjavam-lhe a perfumada crónica dos que merecem, por
qualquer acção grata aos semelhantes, que se lhes estenda aos pés, desde o
berço à mortalha, um tapete de luz.
Mas nada disso os satisfazia ainda. E as próprias serras
resolveram então propor um remate alegórico àquela azáfama nobilitadora. Cada
vez mais floridas, metiam pelos olhos dentro uma apoteose de cor.
Urdido o
mito, que melhor remate do que nimbar a divindade da alegria conivente da
natureza?
E o Gonçalo até santas mulheres teve ao serviço da sua
causa.
- Para onde levas o gado, hoje? - perguntou-lhe à saída de
casa a filha do patrão, a Sílvia, a olhá-lo numa carícia de Madalena
arrependida.
- Para o Vimieiro.
- Calha bem...
- Porquê?
- Isso é cá um segredo...
Na sua inocência, nem pensou no dia em que estavam, que era
o primeiro de Maio, nem adivinhou a fundura da intenção. Só à tarde, quando
encantava os penedos a arrancar melodias da Wina, é que viu um bando de
raparigas surgir atrás (Num outeiro, como se fossem atraídas pelo som dos seus
trilos.
Carregadas de flores de giesta, rodearam-no e puseram-se a adorná-lo
como um deus.
Submisso, deixou-se vestir e coroar por aquelas mãos
carinhosas e devotadas do oiro que a imaginação há muito lhe prometia, e agora
lhe era finalmente entregue.
E assim, feliz e festivo, entrou em Dornelo.
Miguel Torga
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