«O Cão»
O Cego, a Rapariga e o Cão/ Karl Hofer
512- «O CÃO»
A qualquer momento a mulher ou a sogra poderiam chamá-lo e
ele não estaria lá para mudar uma mesa de lugar, abrir uma janela emperrada,
soldar um cano roto ou pôr uma anilha numa torneira que pingava.
Àquela hora já costumava estar em casa, pensou apressando o
passo, lembrando-se de que a cega podia querer sair e precisar que ele a
ajudasse a atravessar a rua. No entanto, nunca lhe tinha ocorrido que esse
pudesse ser um papel de cão. Nunca até àquele momento em que ele próprio
atravessava a rua pelo meio da faixa, atento ao semáforo, uma tal ideia lhe
atravessara o espírito. Mas agora que a pensara, a ideia perseguia-o, parecia
caminhar a seu lado, colada aos seus passos como uma sombra.
Olhou com curiosidade os cães que passavam perto: de coleira
ao pescoço, presos pela trela. Segura na mão de alguém. De cores e raças
diferentes ― não sabia grande coisa sobre cães, sempre se interessara pouco
pelo assunto. Até então. Pela primeira vez olhava atentamente os pequenos
quadrúpedes que não o olhavam a ele; apenas pareciam apostados em seguir em
determinado sentido, atentos à pressão da trela, que uma mão segurava com mais
ou menos força.
Ali estava justamente um cego, ao lado do seu cão, ambos
esperando a mudança de luz no semáforo em frente. Viu-lhe a cara, assomando
debaixo do chapéu: os olhos vítreos, como água podre, a boca entreaberta num
esgar, ao canto da boca um resto de saliva.
Atravessar a rua com os cegos, pensou outra vez, era um
papel de cão. O que nunca lhe ocorrera, até àquele dia. No entanto, agora que
pensava nisso, tudo parecia ficar claro. O cego era ele, como é que não dera
conta? Era, ao mesmo tempo, cego e cão. De repente o mundo estava cheio de
evidências.
Nunca tinha pensado, por exemplo, que daquela vez que insultara o
director do departamento esse facto se devera a uma enorme raiva acumulada.
Nesse dia, via agora, portara-se como um cão. Só que raivoso. Uivara, ladrara,
ganira, mordera. Ou pelo menos arreganhara os dentes, pronto a morder.
O que lhe custara a carreira, para o resto da vida. Nunca
mais seria promovido, gritara a cega, torcendo as mãos. E ainda tivera sorte em
não ser despedido, com um processo em cima. Não sabia falar, se tinha
reclamações?
Não, não sabia, verificava agora. Desaprendera de falar,
porque ninguém o escutava. Serviam-se dele apenas, como de um objeto útil, que
se põe de parte depois de usado. Falava pouco e muito depressa, como se tivesse
medo de que as pessoas se fossem embora. Vendo que bem, na maior parte das
vezes iam-se de facto embora. Ele atirava duas ou três palavras para dentro das
conversas, mas era sempre demasiado tarde. É verdade em que às vezes pareciam
escutá-lo, mas de repente interrompiam-no com outro assunto, como se ele nunca
tivesse começado a falar, ou como se nem sequer lá estivesse.
E quando foi transferido nenhum dos colegas pareceu
importar-se, e ninguém lhe desejou boa sorte. Como se mudassem para outro
escritório uma peça avulsa de mobília, que tanto fazia estar num lado como
noutro.
Em casa também ninguém lhe perguntou se a mudança lhe
agradava, se o novo lugar era pior ou melhor do que o primeiro. A sogra não fez
perguntas, ficou como sempre vigiando e escutando, a cega só quis saber se
ganhava mais. Quando soube que ganhava o mesmo ficou decepcionada e gritou que
só a ele isso acontecia. O que aliás também ele pensava. De modo que não
respondeu, e as coisas ficaram assim.
Continuou a receber as mesmas pequenas quantias, que a cega
ia tirando do ordenado que ele recebia ao fim do mês e depositava inteiro nas
mãos dela. Ou antes, nas mãos dela e nas da sogra, porque ambas contavam e
recontavam, suspirando, para verificarem sempre que era pouco e nunca chegava,
apesar dos esforços que faziam.
Talvez por isso nunca lhe davam nada no Natal. Embora ele
gostasse de lhes dar presentes. À mulher sobretudo, coisas que ela cobiçava,
perfumes, um lenço de pescoço, um par de sapatos caros. Porque a cega gostava
de vestir-se e enfeitar-se, ainda que não pudesse ver-se ao espelho. Vestidos
novos eram-lhe indispensáveis, mesmo só para ir à mercearia e ao café. Já que
nascera cega e a vida fora tão cruel, algo de bom teria também de lhe caber em
sorte.
Tens um bom marido, ouviu dizer a sogra. Faz o que pode,
coitado.
Mas não sabe mexer-se neste mundo, disse a cega. Vissem o
Chinchas, que começara do nada, encostado à parede das esquinas, e agora tinha
apartamento, carro e empregados. Para já não falar dos anéis de brilhantes no
dedo.
Pois, disse a sogra, mas falava-se de droga e de chulo.
Ora, tornou a cega, eram tudo más-línguas e invejas.
Lá isso, concordou a sogra, o que todos queriam era estar no
lugar dele, que era o lugar dos que mandavam.
Há os que mandam e os paus-mandados, suspirou a cega, e a
conversa continuou como se ele não estivesse a ouvir. Na verdade nenhuma se
preocupara em verificar se ele as ouvia ou não. Estar ou não presente acabava
por ser praticamente igual.
A cega falava agora das tristezas da vida: para além de ser
invisual, moravam naquele bairro suburbano, onde só se alojava quem não tinha
escolha.
De repente ele enfureceu-se com tanta ingratidão, mas não se
atreveu a dizer nada. Só pensou. Era cega e ele não casara com ela, apesar
disso? Não trouxera logo duas mulheres para casa, em vez de uma?
Sim, porque aceitara trazer também a sogra, quantos homens,
no lugar dele, fariam isso?
Então e os lenços, os sapatos e os vestidos? E quantas meias
tinha ele, e em que estado estavam os seus fatos e camisas? Disso ela não
queria saber, nem perguntava. Até porque não via, desculpava-se. Mas ele também
era gente, ora essa. Ou ela pensava que não? Pensava que ele lhe servia para
descarregar a raiva de ser cega e pobre e de viver contra o mundo? Que culpa
tinha ele das desgraças dela?
Passou a estar muito menos em casa, e a ir de vez em quando
ao futebol e ao café. A seguir quis fazer um curso noturno de contabilidade,
mas a cega opôs-se. Queixou-se de que ele a deixava sozinha e andava atrás de
outras mulheres, que não eram cegas como ela. Recusou todas as refeições e
adoeceu.
A seguir foi a mãe que adoeceu. Não se levantaram durante quinze dias
e ele tinha de vir a correr fazer o jantar e deixar-lhes comida para o dia
seguinte, embora a cega tivesse praticamente deixado de comer.
Quando a viu mais calma e a vida se normalizou, começou a
fazer um curso de contabilidade por correspondência. No fim do jantar abria os
livros e os cadernos na mesa da cozinha e punha tampões nos ouvidos para não
ouvir a televisão.
No entanto a cega encontrava sempre pretextos para o
interromper. Chamava-o para colocar um calce no pé da mesa, para descer melhor
as persianas, que deixavam frinchas por onde entrava o frio, para lhe ler as
legendas dos filmes estrangeiros. Ao fim de três semanas meteu no caixote do
lixo os livros e os cadernos e foi beber um copo ao café da esquina, o que a
partir daí se tornou um hábito, depois do jantar. Durante os dias em que a cega
o consentiu. Porque logo pouco depois passou a enchê-lo de recriminações. Se
queria ir ao café, também ela queria. Levasse-a consigo, que era a sua
obrigação, não ia ficar em casa, que nem um trapo deitado fora, enquanto ele se
divertia com outras. Passou a acompanhá-lo a toda a parte. Mesmo ao cinema,
onde ele lhe ia contando o que se passava no ecrã, apesar dos protestos de quem
ficava ao lado.
Por vezes ele fugia, ia sozinho ao cinema, marcava encontros
com um ou outro amigo, e depois ouvia a cega acusá-lo uma semana inteira. Mas
na verdade quase não tinha amigos, porque ela sempre lhe preenchera a vida
toda. E porque quase deixara de falar, desaprendera também a conversa. Nem
mesmo já rir sabia, verificou com espanto. Em vez do riso, fazia um pequeno som
sibilante, como um latido.
Com o tempo desinteressara-se de tudo e deixara de saber o
que se passava no mundo. Nem sabia o que ia pelo bairro, quanto mais no mundo.
Fizera-se um bicho de toca, sentado na poltrona, olhando a
televisão sem ver nada. Nos intervalos em que a cega não o chamava, para tratar
de qualquer coisa. E quando ela chamava, ele ia. Como um cão. Agora via tudo
muito claro e sentia-se outra vez raivoso. Como daquela vez, no escritório.
Um cão não morde no dono. E muito menos o mata, pensou. Mas
ele não era cão. Era essa a diferença.
Levantou-se e apagou a TV.
Vamos sair, disse com doçura. Põe um vestido bonito. E
quando ela perguntou: Aonde? disse apenas:
É surpresa. Com a voz alegre como há
muito tempo não tinha.
Vem, disse-lhe, atravessando a rua quando a luz ficou
vermelha.
Pegou-lhe no braço e abandonou-a de repente, no meio da
faixa, quando o carro se aproximou tanto que não seria mais possível, para ela,
saltar.
Foi só ele quem saltou, no último instante, e se estatelou,
são e salvo, no passeio, caindo de borco, batendo com a cara, ouvindo os
gritos, o ruído confuso de vozes, o chiar dos travões do carro que parou ―
tarde demais.
Teolinda Gersão
Sem comentários:
Enviar um comentário